“Um dia, eu quase aprendi a fazer cocada.”
Tá. Isso não explica muita coisa. Ou talvez explique. Sei lá.
Reinaldo Moraes tem um jeito tão livre, direto e fluente de escrever que é como se tudo fosse fruto de uma mente devidamente embriaga (ou fumada ou cheirada ou...) e saísse com tanta naturalidade que é quase difícil acreditar que também é dele a frase “Escrever qualquer macaco escreve. O negócio é reescrever”. E é só começar a ler o cara com mais atenção que dá pra perceber isso. Todos os diálogos e descrições são tão precisos e, por que não?, divertidos que a gente percebe o esmero dele em proporcionar prazer ao leitor – ou emular aquele que o narrador deve estar sentindo ele mesmo, na maioria das vezes –, usando um tom nada forçado em cada frase. Por aí dá pra ter uma ideia que a leitura pode ser rápida, principalmente porque não dá vontade de largar.
O livro tem como protagonista Ricardo de Mello. Um jovem que, chegando perto dos seus 30 anos, por acaso do destino, recebe uma bolsa de estudos de um ano em Paris. Ao chegar, no entanto, o rapaz assiste a uma aula aqui, outra ali, e percebe que a cidade tem muito mais a lhe oferecer do que a sala de aula. Morando no seu studiô, recebe visitas de amigos, bebe pra caralho, fuma pra caralho, transa pra caralho e tá sempre pronto pra mais.
Não, não, o livro não é (só) uma putaria generalizada. Muito está nas entrelinhas, nas relações e nos frutos das mesmas que Ricardinho (pra elas) ou Ricardão (pra eles) exerce com as pessoas e com a própria cidade, no fim dos anos 70 e começo dos 80. Além de toda malandragem no jeitão de Ricardo (pra mim), há sua dose de erudição. Sempre pronto pra pontuar sua opinião – por vezes controversa – sobre arte, política, ou até a vida cotidiana. Nunca deixando de estar pautada nos devidos autores, músicos, cineastas, filósofos e todo outro tipo de pensador. Só que não se trata daquele tipo que vomita nomes aos quatro ventos e parece que decorou uma listinha e não conhece nenhum dos caras que tá falando. Nota-se seu conhecimento. Dá pra perceber que ele sacou que masturbação mental demais não cola. Ficar só querendo saber qual o sentido da vida e se esquecer de vivê-la não tem chance com ele, não. Ele pensa, sim. Mas Vive pra valer. Uma erudição desleixada, quase.
Dentre os bares e ruas de Paris, de Mello vai encontrando e adquirindo conhecidos. A vida boêmia com tudo pago era exatamente o que ele sempre quis e tá sabendo aproveitar como ninguém. O segredo dele parece estar em levar tudo numa boa. Praticamente não há tempo ruim com esse cara. E deve ser por isso que dá tanta vontade de continuar lendo e de se envolver nesse mundo regado a drogas, sexo, rock n’ roll, jazz, literatura... Falta de preocupação com o próximo dia. O Carpe Diem sendo narrado em cada linha. Uma entrega que não se pode classificar com outra palavra senão hedonismo, no mais profundo sentido da palavra.
A experimentação das sensações físicas de Ricardo já deve ter ficado clara. Mas não dá pra esquecer das experimentações estilísticas na escrita de Reinaldo Moraes. O que facilita também na velocidade do texto é sua proximidade com a língua falada, na qual, por exemplo, facilmente, “com a mão” vira “ca mão”. Sem falar nos devaneios do protagonista, que realmente parecem seguir um fluxo de pensamento, em que uma frase puxa outra que parece aquela vez que lembra aquele filme daí tá geral falando francês junto com o pessoal de uma festa onde rola uma música e já tá todo mundo c’mon baby light my fire. O narrador, aliás, é dividido: começa em terceira pessoa. Depois fica um tempo em primeira. Quando vê tá em terceira de novo. E essa troca fica rolando até que, num surto, os dois resolvem se encontrar e tirar essa história a limpo. Exatamente. Primeira e Terceira Pessoas Ricardos de Mello se encontram cara a cara pra enfim decidir “cumé que a gente vai narrar essa porra”.
A não-linearidade também come solta. Volta e meia Ricardo ou algum amigo seu se lembram da vida em São Paulo e contam alguma coisa. Alguns capítulos são curtos, por vezes de uma frase, como se fossem apenas anotações do notebook, tão falado durante o livro, sempre no bolso e sempre à mão pra Ricardo anotar o que merece ser lembrado (já que nem sempre, no estado que ele está, dá pra lembrar de tudo). De vez em quando ele até começa a compor um sambinha, mas aí deixa pra depois. De repente tá pensando em mais um verso, uns tantos capítulos mais pra frente, e faz questão de nos mostrar. Porque também rola uma interação com o leitor. Aquela metalinguagem de estar-escrevendo e de estar-sendo-lido. Rolando até umas confissões de como tal capítulo é uma historinha que ele escreveu depois de um hash e acabou ficando sem pé nem cabeça, mas que ele nos dá uma chance de ler e tirarmos nossas próprias conclusões. Assim como vários diálogos das personagens sobre um tal romance que o de Mello estaria escrevendo, como se ele soubesse que todas essas experiências iriam acabar no papel. Moraes também não economiza nos neologismos pra formar frases de efeito no meio do papo com aquela mina que ele tá investindo ou no discurso empolgado na mesa do bar ou pra explicar o que a personagem tá sentido. O que faz sentido, já que, quase sempre, aquela sensação também é nova. Nunca perdendo o bom humor e as sacadas inteligentes, possivelmente resultadas de uma miscigenação narcótica e, claro, de toda a bagagem cultural e intelectual que o Ricardo carrega consigo.
Tanto Faz marcou a geração jovem brasileira do começo da abertura política, no fim da ditadura. Falou e mostrou e viveu o que muita gente queria ter dito e visto e vivido, com toda sua ginga e inteligência. Já se disse muito sobre o que foi a sensação de liberdade em ter aquela potência literária toda em mãos. E esse sentimento continua ali, com força total. Chega a dar uma invejinha que um cara possa narrar tantas peripécias em terras estrangeiras, e a gente aqui vendo a boiada passar. Mas o barato, se pá, tá em ver que tem como curtir a vida um pouco mais.
Foi o primeiro romance de Reinaldo Moraes e o fez estourar no mercado editorial. Damos boas risadas e entramos de cabeça nesse universo boêmio e desvairado que Moraes soube retratar com maestria.
No momento que o Brasil vivia, estávamos precisando de um Reinaldo Moraes pra nos mostrar que a arte não precisa ser tão careta. O que até me lembra de uma música do Tom Zé, que pode ser transferida para a literatura: “Todo compositor brasileiro/ é um complexado// Por que então essa mania danada,/ essa preocupação/ de falar tão sério/ de parecer tão sério/ de ser tão sério/ de sorrir tão sério/ de chorar tão sério/ de brincar tão sério/ de amar tão sério?// Ai, meu Deus do céu/ vai ser sério assim no inferno!”
Um trechinho, então:
“Batem na porta. Ricardo vai abrir de cigarro na mão, deixando cair a cinza no carpete, que, aliás, padece de várias doenças dermatológicas incuráveis. Chico, entrando:Indicação do Guilherme
– Ó de Mello, quer dizer que as musas te deixaram no toco, bicho?
– É uma merda. Mas até o Thomas Mann deve ter brochado muito no teclado. Tenho certeza disso.(...)– A inspiração é uma longa bobagem. Oswald de Andrade. Esse negócio de abrir a janela, pálido de espanto, é coisa de viado, Rica. Não perde tempo na tocaia da inspiração, que você não consegue nem redigir cartão de boas-festas.Gozado, é segunda vez que o Chico me fala em janela, hoje, pensa Ricardo. E replica:– Pra começar, o Oswald disse que o gênio é que é uma longa bobagem, não a inspiração. Pega os contos dos Carlinhos, por exemplo: geniais. E loucamente intrincados, quase ilegíveis. Melhor ler Heidegger em alemão duma vez. E, depois, é o seguinte: não se trata de inspiração e sim de piração mesmo. O trocadilho é uma merda, mas é vero. Remember Platão: A poesia dos loucos sempre eclipsará a dos sensatos. E você não sabe quanto eu demorei pra falar direito esse eclipsará.”
[parangaricutirimírruaro]
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