Em 1973, época mais brutal da ditadura - os chamados anos de chumbo do governo de Médici - Rubem Fonseca teve a coragem de realizar sua estreia literária com um texto polêmico, apaixonante, pós-moderno mesmo antes de tal conceito ser popularizado. O livro é um retrato sem tarjas pretas da vida urbana, encharcado de sexo, violência e imoralidades diversas. E ao mesmo tempo é metalinguístico - Paul Morel tece as mais absurdas e geniais considerações sobre a arte, enquanto escreve seu livro.
O retrato que Fonseca faz não deixa de ser rodriguiano - é um instantâneo, uma polaroid da decadência da alta sociedade carioca, ao revelar todo seu artificialismo. Porém, a linguagem é mais moderna e menos publicável, chula e cheia de gírias. O livro se inicia com o artista plástico Paul Morel na prisão, detido por um crime que é descrito quase no final, e tentando escrever uma história que se relaciona intimamente com os eventos que o levaram a ser preso - enquanto permanecemos em dúvida sobre sua culpa . Porém, segundo o protagonista, em sua obra "qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência".
O fio condutor da história é a relação de Morel com Joana, que pode ser descrita como doentia, talvez, e sadomasoquista. Tal relação coloca Morel na cadeia - e do desespero e do tédio que lá sente é que nasce sua primeira obra, entregue página a página ao policial Vilela. Durante o livro (ou melhor, durante os dois livros, o de Morel e o de Fonseca, o que atesta o uso intenso da metalinguagem) se desvenda o assassinato de Joana - contudo, de forma fragmentária, misturada com outras lembranças e reflexões do artista.
É o chamado "romance em construção" - Fonseca revela a totalidade do relato duplicando-o. A narração é feita com múltiplos recursos (cartas, bilhetes, laudos policiais e a transcrição de um vídeo), o que a torna muito mais empolgante que um simples romance policial. O teor do relato é marginal, pela linguagem e pela temática. E a forma como a história de Morel é contada é tão engenhosa e metaficcional que em determinadas horas se desfazem os limites entre autor, texto e leitor - recomendável pra quem se cansou das narrativas muito lineares, que num mundo tão integrado e conectado como o nosso, logo se tornarão obsoletas.
Justamente por isso que o indico pra vocês - é fascinante ler um livro como esse, onde se mergulha em duas histórias (que são uma só, na verdade) ao mesmo tempo, e com tanta intensidade. Quando o encontrei numa biblioteca, comecei a folhear ... E duas horas depois saí de lá bem diferente do que entrei, maravilhada de como alguém conseguiu fazer uma obra de arte dessas.
Trecho:
“Nem sei como começar”, diz Morel. “O Rei disse para Alice 'começa no princípio, depois continua, chega ao fim e para'. Mas onde é o princípio?”
Vilela: “Você também pode começar do fim e terminar no princípio, ou no meio”.
Indicação da Heloisa.
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