Sempre que relembro de Dentes ao Sol ou resolvo lê-lo novamente, tenho a sensação de que este é um livro escondido. É o terceiro romance de Loyola e em minha opinião, aquele em que o autor se solidifica e explode na sua cara com todo o talento que se torna evidente nas próximas obras. Digo que é um livro escondido porque não há maneira de se compreendê-lo da primeira vez, nem da segunda nem terceira (aliás, desafio-o a achar uma sinopse consistente dele na internet). É como se Loyola não quisesse definitivamente entregar a essência do texto ao leitor – sempre supondo que há uma.
Primeiro, o texto não é narrado em ordem cronológica, e sim, em blocos que vão se intercalando: as Memórias e os Fatos. Cada bloco depende um do outro para um universo maior, mas não se perde nada os analisando em separado. Tanto que se pode abrir o livro num dia de chuva, ler duas ou três páginas e terminar com um AVC, se você for um daqueles leitores mais propensos a um mindblowing.
Mas vamos aos fatos – e que esse péssimo trocadilho seja perdoado. O romance conta a história de um habitante de Araraquara, que encontramos exilado da população e da cidade, um pária. A grande dúvida do livro é saber se a amargura do protagonista é válida e a cidade realmente o rejeitou ou foi ele quem se auto-exilou.
Têm-se a partir daí uma proposta interessantíssima. Trabalhando amargura, rancor, um sarcasmo venenoso e a ironia extremamente bem, e surpreendentemente, pontos de doçura como quadradinhos de açúcar, Loyola constrói o microcosmo da cidade de Araraquara com total controle e brilhantismo.
Somos guiados em primeira pessoa por um personagem potencialmente instável, e isso cria um clima de loucura implícita. Ele nos narra acontecimentos bizarros da cidade, como o cara que de repente se vê com uma plantação incontrolável de arame no seu quintal ou a piscina que engolia todos os que nela mergulhavam – sem esquecer do casal de velhinhos que foi varrido (junto com sua casa) por um pé-de-vento sem origem definida. Esses acontecimentos contribuem para a construção de Araraquara, uma cidade amarga de gente amarga, e do personagem, igualmente importantes, deixando você em dúvida se tudo aquilo é um delírio de um cara amargurado e cheio de ódio ou se são fatos.
Não há maneira de resumir a história, posto que não há uma definida, e sim várias. O protagonista – que você já deve ter percebido que não tem um nome evidente (estou mais propensa a acreditar que é Paulo) – é tanto um fruto de sua realidade como de suas memórias, divorciado e com um filho, prisioneiro da frustração de permanecer em Araraquara e não ter corrido atrás do sucesso em São Paulo, como todos os seus amigos haviam feito anos atrás.
Resta-me então falar da técnica de Loyola. Com os blocos curtos, sempre com subtítulos, e capítulos maiores, o livro vai trançando uma renda pela cabeça do protagonista e pela história da cidade. Com reflexões que abandonam a filosofia dos grandes mestres e abraçam aquela filosofia cotidiana, flashes de pensamentos que temos no ônibus, ou em casa, ou no banho, o autor cria o livro com o clima de que este foi escrito em guardanapos de bares.
Trechos impactantes – ou motivos para AVCs, como preferirem – com bizarrices narradas com ar de Jornal Nacional e frivolidades narradas a Lewis Carrol, fazem de Dentes ao Sol – e não me peça pra explicar o título – a grande obra pela qual você deve começar a ler Loyola.
Relendo, percebi que esse texto todo não tem pé nem cabeça. Melhor assim. Loyola aprovaria.
“Os fatosO HOMEM QUE NÃO VEIO SENTA-SE À PRAÇA TODAS AS TARDES
-Me dê uma palavra com X.-Maleita.-Maleita é com M.-É com X.-Então me dê uma palavra com M.-Pacote.-É com P.-É com M.-E quanto é 10 vezes 10?-É 165.-E 76 menos 18?-985.
Assim era, todos os dias. Ele sentava-se no Largo da Câmara. Os meninos em volta faziam perguntas. Ele, respondia. Era o divertimento ali, onde não havia cinema, televisão, rádio, trem. O homem chegara, uma tarde. Se instalara, ficara. Magro, subnutrido, pele seca e repuxada como a dos nortistas, barba rala, olhos amarelos. Conhecia coisas que ninguém conhecia. Falava o português novo, com palavras que ainda viriam, expressões que não tinham sido inventadas, letras que surgiriam mais tarde. Ele conhecia novos números. Sabia somar, dividindo. Multiplicar, diminuindo. Diminuir, somando. Podia ver, de olhos fechados. Dormir, de olhos abertos. Podia viver morto, chorar rindo, ouvir com o nariz, cheirar com os olhos, comer com os ouvidos, ouvir com os dedos, correr parado. Quem era, ele não dizia. De onde viera, não contava. Quantos anos, se era casado, se tinha feito o exército, sua profissão, marcas particulares, filiação. Ele se calava. E os meninos, curiosos. Até que o professor de matemática foi conversar com ele. Falaram a respeito dos números ao comprido, e dos números ao contrário, das curvas, que eram o menor caminho entre três pontos, das paralelas divergentes e dos triângulos sem vértice. E então, ao fim da conversa, olhando nos olhos do homem que refletiam os olhos das crianças, o professor de matemática compreendeu.”
Indicação da Amanda
Seeyabjsgalera.
[you see, but you don’t observe]
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