quinta-feira, 28 de março de 2013

Guia de Ruas Sem Saída, de Joca Reiners Terron; com desenhos de André Ducci -- Edith, 2011



“Por isso que é tão bacana ler histórias, pois as coisas que a gente sente quando está lendo são de verdade, apesar de a história ser de mentirinha.”

Começa assim: Um homem começa expelir chips eletrônicos e, aparentemente, ouve vozes. Em paralelo, um casal viaja a um país desconhecido para que o marido possa sofrer um transplante.

O primeiro homem é um cartunista que conseguiu muita fama depois de criar o super-herói Homem-Escada, mas perdeu tudo que tinha por não saber lidar com o sucesso. Não consegue lembrar direito o que aconteceu com sua vida e nem como chegou aos lugares em que está. O segundo está em estado quase vegetativo devido à medicação que toma para aguentar as dores decorrentes ao avançado estado de deterioração de seu fígado. Acompanhado da mulher no quarto do hospital, conhece ela tão bem que consegue ler seus pensamentos.

O livro flerta bastante com o surreal, com o absurdo e com o experimental. Tanto na linguagem verbal como na não-verbal. Primeiro porque ele é narrado em primeira pessoa nas duas histórias. Elas se alternam entre os capítulos e cada uma possui um jeito meio esquematizado de aparecer. A primeira costuma ter frases mais curtas, parágrafos de uma frase, onomatopeias e alguns trejeitos de poesia concreta. A segunda é escrita toda em itálico e é mais convencional. Ambas, porém, ficam muito no âmbito de pensamentos das personagens e suas percepções do que está acontecendo ao seu redor. Pelo menos uns dois terços da obra. Isso na parte escrita.

As ilustrações não fazem aquele papel clássico como nos livros infanto-juvenis, mas tomam características dos quadrinhos para complementar a narrativa. Por exemplo: em vez de os desenhos serem uma representação do que estava escrito no livro, eles são uma sequência daquilo. Trata-se de dar uma continuidade sem a utilização de palavras à narrativa. Aí o leitor deve interpretar o que as imagens querem dizer praquela história. O próprio Terron declarou que a ideia veio da influência que ele tem de Valêncio Xavier. Essa coisa de a linguagem não-verbal ser tão importante quanto à linguagem verbal. Isso sem falar que os desenhos são ótimos, meio cubistas, cheios de detalhes, em preto e branco... André Ducci mandou muito bem.

Esperando seu novo órgão, o homem fica a recapitular um pouco de sua vida e o que o fez chegar ali, na sua última tentativa de continuar vivo, depois de perder tudo que tinha para o vício. O cartunista, sem certeza das próprias memórias, sem família nem dinheiro, decide vender os próprios órgãos. Fica incerto se as histórias dos dois homens de fato se cruzam. Acho que há dicas no livro, inclusive nos desenhos, para o que pode ter acontecido. Mas não há uma certeza sobre isso. Inclusive não há certezas do que é real e do que não é.

O livro é, por várias passagens, melancólico e solitário. Principalmente porque os narradores estão falando sozinhos praticamente o tempo todo. Porém algumas vezes eles fazem piada de si mesmo. Da situação na qual se encontram. Pois é, chegar numa rua sem saída é ter que admitir que teremos de dar meia volta. Só que isso não quer dizer que o caminho até lá tenha sido em vão. No caso das personagens, não tendo mais nada a perder, é ainda mais válido aproveitar cada segundo da viagem.

Dois trechos, um de cada narrador:

“Por exemplo: merda.
Sustentava o chão como se fosse o céu prestes a desabar sobre a cabeça. E vomitava. Daí surgiu um chip eletrônico. Lembro do que aconteceu dias atrás.
Foi isso que aconteceu.
Ou não foi.
Por exemplo: foi.(...)O intestino não é mais o mesmo. E o brilho metálico. Um brilho? Enfio a mão, intrigado. Pego um troço. Escapou. Redondo, errado. Espremo outro e o objeto é expelido. É um chip eletrônico. Um circuito integrado. Examino-o sob o lusco-fusco da lâmpada. Cheio de bosta. De onde havia saído já sabia. Como teria chegado?”

“Ela pensa que esta mosca anda me dizendo coisas demais. Ela, digo, minha mulher, não a mosca. Ela também tem sua própria mosca. Todos temos. Ela está pensando que sempre admirou o modo que as moscas fazem amor, sem pressa, coladas umas às outras até enquanto voam, (...) e ela continua pensando que não seria nada mau fazer amor em pleno ar, ela pensa que talvez a mosca seja o verdadeiro rei dos animais, um anjo vingador enviado por alguém, e que o Paraíso deve estar lotado de moscas, que no Paraíso cada animal tem a sua própria mosca, que uma mosca devora um leão enquanto o contrário só acontece se o leão estiver distraído, haha. Ela se identifica com as moscas.”

Indicação do Guilherme
[parangaricutirimírruaro]

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