Precisamos falar sobre o Kevin não fala apenas de Kevin Khatchadourian. Felizmente – isto tornaria o livro repetitivo e o enredo sem saída, arrastando-se em círculos. Habilmente, Lionel Shriver não fala só do jovem psicopata que assassina seus colegas de escola, mas também de tudo aquilo que concerne à família americana (e porque não, a brasileira). Ao tentar entender, num romance montado em cartas dirigidas a Franklin, seu marido ausente, o que raios deu errado em sua família, Eva Khatchadourian, a mãe de Kevin, vai traçando ao avançar no texto diversas conclusões e escavando novas dúvidas que te deixam meio sem norte.
Não sei se há muito para falar do enredo – afinal de contas, pra quem viu o filme ou ao menos leu a sinopse – ele já está todo exposto. Mais vale guardar as linhas da resenha pra falar de como a autora usa Eva para trazer a tona não só os cada vez mais frequentes massacres escolares, mas também seus bastidores.
Separar Precisamos falar sobre o Kevin da concepção tradicional de família é um erro ao falar do livro. Shriver, por meio de Eva, debate o fato do papel da mulher como “rainha do lar” e da bela família classe alta americana. Eva é uma mulher independente, apaixonada pelo mundo, viajante nata, fundadora da própria empresa: uma executiva de sucesso. Reforçando ainda mais este traço da mulher atual, ela é responsável por uma empresa que publica guias de viagem alternativos, fora das rotas turísticas comuns: albergues, pequenos restaurantes, cultura local de todo o mundo.
Isto faz dela uma mulher que viaja o tempo todo. Quando se casa com Franklin, que é um típico americano: caucasiano, patriota, classe média, retrógrado, machista. Eva de repente é presa no conceito da família tradicional. Resolve, apesar de todas as evidências em contrário, ser mãe. E é aí que seu mundo de vira de cabeça pra baixo.
A autora do livro nem procura sugerir; ela esbofeteia a idéia: uma mãe deve necessariamente, amar seu filho? Amar o ofício de ser mãe? Uma mãe pode não gostar do seu filho? Presa na própria armadilha, Eva se vê mãe de um pequeno monstrinho – Kevin – que parece juntar todas as suas forças desde o nascimento para demonstrar o quanto odeia sua mãe. Eva, ao escrever as cartas para seu quadrado marido, admite a ambivalência de sua maternidade e a influência que teve na criação de seu filho psicopata.
Uma das cenas mais sensacionais do livro, que retrata toda essa ambivalência, é quando Eva está passeando com Kevin, que chora desde o nascimento sem parar, alto e sem motivo nenhum. Na rua, o som das brocas de uma construção abafam por segundos o som do choro de seu filho – e Eva é inundada de alívio. Ao descontruir essa cena na carta para seu marido, a protagonista revê toda uma maternidade insatisfeita, o abandono de sua empresa e de sua vida pelo casamento e pelo filho, traça um retrato tragicômico da família atual, que tenta desesperadamente se manter nos mesmos moldes tradicionais – um total fracasso.
Essencialmente psicológico, o thriller não é dos mais indicados se você está buscando ação do início ao fim. Mas é justamente o livro da semana se você procura fugir pra qualquer cabeça que não a sua. Como poucas pessoas, Lionel consegue construir a essência do devaneio de Eva, nas cartas, sem torna-lo chato e sem sentido. Sem se afogar em um monte de palavras na cabeça de uma mãe de um psicopata, Precisamos falar sobre o Kevin é o retrato exato do que Freud vinha falando desde 1900 – a relação dúbia de mãe e filho.
“Entretanto, a segunda fase dos Fatos da Vida seria sem dúvida bem mais difícil de explicar. “Kevin”, comecei eu, no dia seguinte. “Lembra-se do que nós conversamos ontem? Sobre sexo? Bom, a mãemãe e o papai às vezes também fazem isso.”“Para quê?”“Entre outras coisas, para que você viesse nos fazer companhia. Mas talvez fosse bom você também ter companhia. Você nunca desejou ter alguém por perto, para brincar?”“Não.”Curvei-me sobre a mesa onde Kevin ia sistematicamente quebrando cada um dos lápis de cera de sua caixa Crayola com 64 cores. “Bom, mas você vai ter companhia. Um irmãozinho ou uma irmãzinha. E pode ser que você goste muito disso.”Ele me fitou com um olhar comprido, sombrio, embora não especificamente surpreso. “E se eu não gostar?”“Então você vai acabar se acostumando.”“Só porque você se acostuma com alguma coisa não quer dizer que você goste.” E acrescentou, quebrando o magenta: “você está acostumada comigo.”"
Bjs pra vcs.
Indicação da Amanda
[you see, but you don’t observe]
Nenhum comentário:
Postar um comentário