quinta-feira, 21 de março de 2013

O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli -- Devir, 2002; Companhia das Letras, 2011



"Todo labirinto tem uma saída."
Um homem que leva a vida comprando os outros. Não propriamente os outros. Mas as coisas que fizeram parte da vida dos outros. Ao contrário do que pensam as pessoas que o procuram, os objetos não têm valor algum para ele além daquele comercial, no qual ele precisa pagar baixo, pra depois vender mais caro. Diariamente ele encara todo tipo de gente que está precisando de dinheiro. Gente que vem de longe e que se dispõe a se desfazer de uma parte do seu passado para tentar sair do vermelho. E o protagonista, que parece aquele cara do comercial do Bombril, as trata simplesmente como (ou até pior do que) as tranqueiras que elas trazem. Ele sabe que as pessoas precisam dele. Do dinheiro dele. Comprando as coisas, ele compra as pessoas. E as histórias vêm junto com elas.

Totalmente tomado por esse âmbito materialista, põe fim ao seu noivado com os convites já na gráfica e apaixona-se por uma bunda num boteco de quinta que ele aguenta apenas pela paisagem. Apesar de a paixão não ser o motivo do término. A razão é porque ele não gosta de ninguém. Nunca gostou. E sua noiva já não tinha mais nada a lhe oferecer. Não vê necessidade em manter relações emotivas com nada nem ninguém. Pagar é mais fácil. Mais direto. E pra ele tá bom assim. Seu pesar, no entanto, é que em seu escritório há um banheirinho com um ralo que exala um cheiro forte de merda. Pra todo “cliente” que chega ele conta que o cheiro vem do ralo e a culpa não é dele. Pensem o que quiserem sobre como ele trata a todos. Desde que não achem que o cheiro do ralo é dele.

Mutarelli levou bastante coisa da sua experiência com quadrinhos na hora de escrever. Os diálogos se misturam as descrições e aos pensamentos do Narrador. Muitas vezes os parágrafos levam apenas uma frase. É tudo muito rápido. Ponto atrás de Ponto. Mas nunca reticências. O próprio autor declarou que seu ingresso na literatura foi devido a ideias em mente nas quais uma linguagem visual, como a que ele usava anteriormente, entregaria demais a intenção da obra. Mesmo assim, ele cria certas imagens na cabeça do leitor, nos dando pistas na maneira como as personagens falam, o que elas levam, como se comportam etc. para que tipo de pessoa ele busca representar.

Ninguém tem nome. Todos são representados apenas por aquilo que carregam. São as coisas que interessam de verdade. Um dos receios do Narrador, mais a frente, é achar que comprou tanta coisa que ele começou a absorver as histórias que elas continham e isso estava, de alguma forma, afetando sua vida.

No meio de todo esse clima meio denso de desantropomorfização, ele reserva algumas cenas de humor negro. O Narrador inventa histórias para iludir seus clientes. Às vezes por pura diversão, às vezes pra disfarçar os próprios demônios. Mas quase sempre é uma tiração de sarro da cara das pessoas. Uma maneira meio cruel de se divertir à custa dos outros. Fora que também dá pra achar graça em como ele narra seu dia-a-dia cheio de banalidades de maneira tão seca e direita. Sarcástica. Como quando ele fala da pomba que costuma sobrevoar perto de sua janela, a programação da TV, a Revista dos Astros ou seu pai.

Volta e meia o pode causar algum incômodo. Do mesmo jeito que o cheiro. Ou tu enfrenta ou desiste e convive com ele. De fato, o livro te marca de algum jeito. Seja por identificação, por repulsa ou por prazer. Ele até já virou pra mim o que um daqueles objetos virou pra vários personagens. Uma parte de mim ficou posta naquelas linhas. Não somos nós que damos significados pras coisas? Não é por isso que elas valem tanto? Tudo tem uma história. Todos tem alguma coisa pra contar. Só é preciso alguém pra ouvir.

Segue um trecho:

“Ele entra.
Põe o violino em minha mesa. Não fala nada. Nem ‘boa tarde’. Fico em silêncio. Afinal o interesse é dele. Então ele fala: Quanto? Chuto tanto. Ele coça a barba. Esse violino deve ter história, chuto. Ele me olha. Seu olhar me incomoda. Ele pega o violino e sai.
Mas, antes de fechar a porta, solta:
Aqui cheira a merda.
É o ralo.
Não. Não é não.
Claro que é. O cheiro vem do ralo.
Ele entra e fecha a porta.
O cheiro vem de você.
Olha lá. Levanto e caminho até o banheirinho.
Olha lá, o cheiro vem do ralinho.
Ele ri coçando a barba.
Quem usa esse banheiro?
Eu.
Quem mais?
Só eu.
Ele continua com o sorriso no rosto, solta:
E então, de onde vem o cheiro?”


Indicação do Guilherme.

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