quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O Anatomista - Frederico Andahazi


Não sou daquelas que acha que os bons autores não deviam se popularizar. Acredito que todo autor, por mais heterogêneo que seja seu público, gostaria de ver sua obra rendendo frutos – afinal, é para isto exatamente que ele a publica. O argentino Frederico Andahazi colheu seus frutos não pelo sucesso de sua obra, mas sim pelos prêmios com que foi reconhecido no circuito literário de elite. O argentino rompe com facilidade o círculo europeu das grandes obras e numa manobra de ironia, escreve na América latina sobre uma ciência, época, e acontecimentos absolutamente européias.

Infelizmente, obra e autor permanecem lamentavelmente desconhecidos. Não conhecia até recentemente uma edição da LP&M Pocket, que tem mais visibilidade, mas Andahazi, publicado originalmente pela Relume Dumará permanece fadado às prateleiras dos sebos e aos leitores exigentes.

Ora, é hora de falar da obra. O argentino resgata os primórdios europeus da ciência médica com a anatomia num tempo de forte influência da Igreja Católica e principalmente da Inquisição.Neste cenário, Mateo Colombo, um catedrático da Universidade de Pádua e anatomista descobre, à semelhança de seu xará, sua própria América.

O anatomista, que acontece de estar apaixonado pela puta mais refinada de toda a Europa, cujo nome é Mona Sofia, louco pela impossibilidade de possuir seu amor, se dedica a buscar um meio que lhe dê o controle da vontade da mulher. Por acaso, ao atender uma beata conhecida como Inês de Tremolinos, ele descobre o Amor Veneris, o órgão do prazer feminino, cujo controle sobre a mulher é notável – e então Mateo torna-se o possuidor do segredo que permite controlar todas as mulheres com quem repete a experiência de descoberta. Publica o resultado de suas pesquisas em sua Re de anatomica, um compêndio de anatomia, cujo impacto sobre a Igreja Católica e conteúdo herético o fazem réu de um processo no Tribunal do Santo Ofício.

Salvo do processo por um milagre, ele, de posse de sua América, o Amor Veneris, Mateo Colombo corre em busca de sua puta amada. No entanto, o tempo dele já havia acabado.

Não, não vou dar spoiler do livro e queria mesmo que você o lesse, pequeno forasteiro. Ele é não só um tributo à literatura que foge do estilizado triângulo América-Europa-Brasil, como é também tem um estilo de construção e narração formidáveis.

Narrado numa linguagem ágil, mas quase arcaica, quase num documento de época, pecaria se não fosse a graça com que Frederico recobre seu texto. Aqui e ali há um motivo para um risinho e um sorrisinho, há um jogo de palavras e de construção da imagem gráfica do texto que o deixa com uma cara sensacional. Há unidades repetidas que enfatizam aquilo que se desse enfatizar, aquilo que deve passar ignorado fica e o resultado é uma qualidade de escrita assombrosa. Há palavras que não se esperariam ver num texto como esse. Puta é repetido o tempo todo, bem como vara, mastro, amigo, ministro, - coleguinha, bróder, e pintinho amarelinho não tem, mas acho que deu pra entender. Um discurso divertido, sério. Um tesão (e que me perdoem o palavreado)

Não bastasse isso, O Anatomista ainda traz uma discussão extremamente relevante no mundo atual, que é a figura da mulher na sociedade desde a Igreja Católica, que a criminaliza na figura de figura de Eva. Com uma crítica sutil, mas facilmente notável, o autor combate com ironia o tema da proibição do prazer da mulher, sua utilização como objeto sexual e assim por diante.

Por meio da puta, da beata, e da Igreja, Frederico revelea uma habilidade sensacional em discutir esses assuntos, dando ao romance um aspecto TÃO real que você passa a não ter mais certeza se o que lê é ficção ou relato histórico.

Vale a dica.

"Foi durante sua breve estada em Veneza, no outono de 1557, que o anatomista conheceu MonaSofia. Isso ocorreu no palácio de certo duque, por ocasião da festa que o próprio anfitrião ofereceu asi mesmo em louvor ao dia do seu santo. Mona Sofia já era uma mulher adulta e experiente. Tinha quinze anos.
Em conseqüência, talvez, da declaração de Leonardo da Vinci de que não compreendia por que os homens se envergonhavam da sua virilidade e ”ocultavam o próprio sexo em vez de enfeitá-lo com toda a solenidade, como um ministro”, talvez por essa razão, naquele ano havia-se difundido entre os homens a moda de exibir e enfeitar com toda pompa os genitais. Quase todos os convidados,exceto os mais velhos, vestiam calças de tons claros que alardeavam as partes dos seus proprietários mediante o uso de umas faixas que se ajustavam na cintura e nas virilhas, de modo que ressaltassem suas virilidades. Aqueles que tinham motivos maiores para estar agradecidos ao Criador aceitaram aquela moda de muito bom grado.
[...]
Entre os múltiplos enfeites - que iam de uns adornos com pedrinhas emoldurando o ”ministro” a uns atavios de pérolas muito vistosas -, usava-se uma faixacom quatro ou cinco sininhos que delatavam o ânimo de ”sua senhoria”. Assim, as damas podiamsaber da aceitação que suscitavam entre os cavalheiros conforme tinissem os guizos.
[...]
A festa não estava ainda pela metade quando Mona Sofia entrou no salão. Não precisou ser anunciada. Seus dois escravos mouros ajudaram-na a descer da liteira junto ao vão da porta. Se até então três ou quatro mulheres eram as que incitavam a atenção de todos, a mais bela dentre elas não pôde evitar sentir-se uma entrevada, manca ou corcunda em comparação com a recém-chegada.Mona Sofia possuía uma estatura augusta. Usava um vestido aberto nas pernas até o começo das coxas. A seda transluzia perfeitamente todo o seu corpo. Os seios agitavam-se a cada passo nas bordas do decote, que exibia a metade do diâmetro dos mamilos. Em sua testa pendia uma esmeralda cujo objetivo não era outro senão deslustrar-se ante o resplendor dos seus olhos verdes.
Mona Sofia foi recebida por um verdadeiro carrilhão, uma centena de viris badaladas"

Indicação da Amanda

Seeya todos vocês.
[you see, but you don't observe]

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