sábado, 30 de março de 2013

Toda Poesia - Paulo Leminski



"Cedo, lendo a gente descobre, lá fora existe,não apenas um mundo mas também uma literatura”

Toda Poesia – Paulo Leminski
“A liberdade da minha linguagem...” Leminski sobre Poesia.

Tenho um palpite. Se algum dia eu chegar a falência, será por causa do dinheiro que eu já gastei com livros. E mais: com a editora Companhia das Letras, como diria a Amanda: Companhia te leva a falência. Adivinhem? Eles lançaram uma edição, LINDA, com toda a poesia, já publicada pelo escritor curitibano Paulo Leminski, dos livros que o autor publicou, e até alguns poemas inéditos, onde notamos toda a genialidade do poeta.

“Haja tanto hoje, pra tanto ontem”

Toda Poesia, é uma coletânea, como o título sugere, e como eu acabei de dizer, reúne toda a poesia publicada por Paulo Leminski, os volumes maravilhosos como Distraímos Venceremos (inclusive já resenhado pelo amigo Junior), Não fosse isso e era menos, não fosse tanto e era quase (resenhado por este que vos fala), o raríssimo Quarenta Clics em Curitiba, o delicioso Caprichos e Relaxos, e obras póstumas como Winterverno. A coletânea traz toda a obra poética de Paulo Leminski, e os fãs vão ao delírio. Mesmo você que não é fã, não se preocupe, o livro é simplesmente fantástico e você vai acabar gostando.
Leminski, é um dos grandes nomes da poesia contemporânea, e uma fusão esplêndida de opostos, algo que se nota ao longo de todo o livro. O poeta consegue unir mundos, debater histórias, e trazer universos opostos que deixam o leitor pensativo, a cada poema, a cada livro terminado.

“Teses, antíteses, vê bem onde pises, pode ser meu coração”

Leminski apresenta poemas curtos, mas não menos maravilhosos, apresenta poesias concretas, e faz diversos percursos sobre si mesmo, sobre o amor por Curitiba, sobre o fazer poético, sobre diversos olhares sobre a poesia (inclusive o seu), sobre o mundo, sobre como o poeta encarava o mundo, os anos 80, o amor, a vida, as coisas simples e as coisas complexas, além de deliciosas brincadeiras com a gramática, o uso do coloquial da linguagem e a formalização da mesma.
Leminski, é pura e simplesmente uma união de contrários, uma fusão de opostos, e me faltam mais adjetivos para qualifica-lo como um excelente exemplo de escritor, um dos maiores nomes da literatura brasileira contemporânea. E que pena que ele tenha nos deixado em 1989...

“Confira
tudo que respira
conspira”

Já deu pra perceber, que sim, sou fã do escritor. Já deu pra perceber é claro, que também adoro Literatura brasileira (basta ver as minhas demais resenhas), e que Leminski é um grande exemplo de como a literatura brasileira pode ser maravilhosamente fantástica.
A edição da Companhia te leva a falência é simplesmente fantástica. Linda mesmo, um livro daqueles que vale a pena ter na estante, para abrir mil e uma vezes. E acredite, toda a vez que você abre, dá pra encontrar uma coisa que não se viu na última leitura, dá pra encontrar algo que não se viu da última vez, algo que não conseguiu ser notado da última vez que você leu.
Isto a meu ver, é que torna a poesia de Paulo Leminski ainda mais fantástica, você sempre se surpreende com aquilo que lê, você sempre lê mais de uma vez, e repara em mais do que viu da última vez. E este é o ingrediente principal de boa literatura em geral: o encontrar novidades naquilo que você já leu. É mais ou menos como ler Homero, lido e discutido até hoje, mesmo sendo o inicio da literatura ocidental (muito antes de Leminski sonhar em existir), ainda hoje se estuda, porque? Porque, talvez sua leitura nunca esteja completa, talvez, sempre se encontre coisas que não foram notadas na leitura anterior...
O mesmo acontece com Paulo Leminski, o mesmo acontece com essa coletânea que eu estou resenhando hoje, e acredite, com diversos autores que nós já indicamos aqui na Posso te indicar um livro?. Literatura boa é aquela que nunca se completa, leitura boa é aquela que nunca está acabada. Digo, você chega até o ponto final, aí lê de novo, e o sabor do ponto final é completamente diferente da última leitura. Duvida de mim? Leia qualquer um dos livros já indicados aqui. Ainda duvida? Desafio! Leia o Toda Poesia, e entenda porque você vai acabar concordando comigo.

Como é de praxe, trago um trecho do livro resenhado. Vou quebrar as regras, e vou trazer dois: (mentira, eu trouxe vários ao longo da resenha).

“O assassino era o escriba
Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente.Um pleonasmo, o principal predicado de sua vida,regular como um paradigma da 1ª conjunção.Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial,ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeitoassindético de nos torturar com um aposto.Casou com uma regência.Foi infeliz.Era possessivo como um pronome.E ela era bitransitiva.Tentou ir para os EUA.Não deu.Acharam um artigo indefinido na sua bagagem.A interjeição do bigode declinava partículas expletivas,conectivos e agentes da passiva o tempo todo.Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.”

E agora o segundo trecho, para aí sim, vocês se interessarem ainda mais pelo livro e por toda a obra de Leminski:
“Tudo que eu façoalguém em mim que eu desprezosempre acha o máximoMal rabisco,não dá mais pra mudar nada.Já é um clássico.”

Indicação do Aion
[chega de chegar, depressa é muito devagar]*
*pra quem não sabia, sim, a minha frase de final de resenha é do Leminski.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Guia de Ruas Sem Saída, de Joca Reiners Terron; com desenhos de André Ducci -- Edith, 2011



“Por isso que é tão bacana ler histórias, pois as coisas que a gente sente quando está lendo são de verdade, apesar de a história ser de mentirinha.”

Começa assim: Um homem começa expelir chips eletrônicos e, aparentemente, ouve vozes. Em paralelo, um casal viaja a um país desconhecido para que o marido possa sofrer um transplante.

O primeiro homem é um cartunista que conseguiu muita fama depois de criar o super-herói Homem-Escada, mas perdeu tudo que tinha por não saber lidar com o sucesso. Não consegue lembrar direito o que aconteceu com sua vida e nem como chegou aos lugares em que está. O segundo está em estado quase vegetativo devido à medicação que toma para aguentar as dores decorrentes ao avançado estado de deterioração de seu fígado. Acompanhado da mulher no quarto do hospital, conhece ela tão bem que consegue ler seus pensamentos.

O livro flerta bastante com o surreal, com o absurdo e com o experimental. Tanto na linguagem verbal como na não-verbal. Primeiro porque ele é narrado em primeira pessoa nas duas histórias. Elas se alternam entre os capítulos e cada uma possui um jeito meio esquematizado de aparecer. A primeira costuma ter frases mais curtas, parágrafos de uma frase, onomatopeias e alguns trejeitos de poesia concreta. A segunda é escrita toda em itálico e é mais convencional. Ambas, porém, ficam muito no âmbito de pensamentos das personagens e suas percepções do que está acontecendo ao seu redor. Pelo menos uns dois terços da obra. Isso na parte escrita.

As ilustrações não fazem aquele papel clássico como nos livros infanto-juvenis, mas tomam características dos quadrinhos para complementar a narrativa. Por exemplo: em vez de os desenhos serem uma representação do que estava escrito no livro, eles são uma sequência daquilo. Trata-se de dar uma continuidade sem a utilização de palavras à narrativa. Aí o leitor deve interpretar o que as imagens querem dizer praquela história. O próprio Terron declarou que a ideia veio da influência que ele tem de Valêncio Xavier. Essa coisa de a linguagem não-verbal ser tão importante quanto à linguagem verbal. Isso sem falar que os desenhos são ótimos, meio cubistas, cheios de detalhes, em preto e branco... André Ducci mandou muito bem.

Esperando seu novo órgão, o homem fica a recapitular um pouco de sua vida e o que o fez chegar ali, na sua última tentativa de continuar vivo, depois de perder tudo que tinha para o vício. O cartunista, sem certeza das próprias memórias, sem família nem dinheiro, decide vender os próprios órgãos. Fica incerto se as histórias dos dois homens de fato se cruzam. Acho que há dicas no livro, inclusive nos desenhos, para o que pode ter acontecido. Mas não há uma certeza sobre isso. Inclusive não há certezas do que é real e do que não é.

O livro é, por várias passagens, melancólico e solitário. Principalmente porque os narradores estão falando sozinhos praticamente o tempo todo. Porém algumas vezes eles fazem piada de si mesmo. Da situação na qual se encontram. Pois é, chegar numa rua sem saída é ter que admitir que teremos de dar meia volta. Só que isso não quer dizer que o caminho até lá tenha sido em vão. No caso das personagens, não tendo mais nada a perder, é ainda mais válido aproveitar cada segundo da viagem.

Dois trechos, um de cada narrador:

“Por exemplo: merda.
Sustentava o chão como se fosse o céu prestes a desabar sobre a cabeça. E vomitava. Daí surgiu um chip eletrônico. Lembro do que aconteceu dias atrás.
Foi isso que aconteceu.
Ou não foi.
Por exemplo: foi.(...)O intestino não é mais o mesmo. E o brilho metálico. Um brilho? Enfio a mão, intrigado. Pego um troço. Escapou. Redondo, errado. Espremo outro e o objeto é expelido. É um chip eletrônico. Um circuito integrado. Examino-o sob o lusco-fusco da lâmpada. Cheio de bosta. De onde havia saído já sabia. Como teria chegado?”

“Ela pensa que esta mosca anda me dizendo coisas demais. Ela, digo, minha mulher, não a mosca. Ela também tem sua própria mosca. Todos temos. Ela está pensando que sempre admirou o modo que as moscas fazem amor, sem pressa, coladas umas às outras até enquanto voam, (...) e ela continua pensando que não seria nada mau fazer amor em pleno ar, ela pensa que talvez a mosca seja o verdadeiro rei dos animais, um anjo vingador enviado por alguém, e que o Paraíso deve estar lotado de moscas, que no Paraíso cada animal tem a sua própria mosca, que uma mosca devora um leão enquanto o contrário só acontece se o leão estiver distraído, haha. Ela se identifica com as moscas.”

Indicação do Guilherme
[parangaricutirimírruaro]

quarta-feira, 27 de março de 2013

Hócus Pocus - Kurt Vonnegut


Hócus Pocus é um dos livros menos conhecidos desse químico maluco (com respeito aos químicos, me desculpe pelo quase pleonasmo). Ah sim, o livro é instável. Acontece o que tu menos espera, e sempre da mesma forma sarcástica e cínica de Vonnegut. E acontecem coisas realmente absurdas, desde japoneses comandando os EUA até uma escola de retardados no meio do nada. Vamos ao script: bem, a história se passa em um vilarejo no meio do nada, onde de um lado do lago há uma escola de retardados ricos, e na outra uma prisão sustentada por lucros japoneses. E no meio de tudo isso, um professor veterano da guerra do Vietnã, que neste livro, vai ser absolutamente todas as partes da história. Falo sério.

É um puta livro pra você que gosta de um humor cínico e direto. No fundo de tudo, neste livro, há criticas sociais e politicas, mas bem, colocadas da melhor forma possível. Vonnegut nos faz abrir os olhos do quanto pode ser ridículo o mundo a nossa volta.
"Só porque alguns de nós sabe ler e escrever e fazer umas contas, não significa que merecemos conquistar o universo." 
Indicação do Luiz A. Jr. 

terça-feira, 26 de março de 2013

Precisamos falar sobre o Kevin - Lionel Shriver


Precisamos falar sobre o Kevin não fala apenas de Kevin Khatchadourian. Felizmente – isto tornaria o livro repetitivo e o enredo sem saída, arrastando-se em círculos. Habilmente, Lionel Shriver não fala só do jovem psicopata que assassina seus colegas de escola, mas também de tudo aquilo que concerne à família americana (e porque não, a brasileira). Ao tentar entender, num romance montado em cartas dirigidas a Franklin, seu marido ausente, o que raios deu errado em sua família, Eva Khatchadourian, a mãe de Kevin, vai traçando ao avançar no texto diversas conclusões e escavando novas dúvidas que te deixam meio sem norte.

Não sei se há muito para falar do enredo – afinal de contas, pra quem viu o filme ou ao menos leu a sinopse – ele já está todo exposto. Mais vale guardar as linhas da resenha pra falar de como a autora usa Eva para trazer a tona não só os cada vez mais frequentes massacres escolares, mas também seus bastidores.

Separar Precisamos falar sobre o Kevin da concepção tradicional de família é um erro ao falar do livro. Shriver, por meio de Eva, debate o fato do papel da mulher como “rainha do lar” e da bela família classe alta americana. Eva é uma mulher independente, apaixonada pelo mundo, viajante nata, fundadora da própria empresa: uma executiva de sucesso. Reforçando ainda mais este traço da mulher atual, ela é responsável por uma empresa que publica guias de viagem alternativos, fora das rotas turísticas comuns: albergues, pequenos restaurantes, cultura local de todo o mundo.

Isto faz dela uma mulher que viaja o tempo todo. Quando se casa com Franklin, que é um típico americano: caucasiano, patriota, classe média, retrógrado, machista. Eva de repente é presa no conceito da família tradicional. Resolve, apesar de todas as evidências em contrário, ser mãe. E é aí que seu mundo de vira de cabeça pra baixo.

A autora do livro nem procura sugerir; ela esbofeteia a idéia: uma mãe deve necessariamente, amar seu filho? Amar o ofício de ser mãe? Uma mãe pode não gostar do seu filho? Presa na própria armadilha, Eva se vê mãe de um pequeno monstrinho – Kevin – que parece juntar todas as suas forças desde o nascimento para demonstrar o quanto odeia sua mãe. Eva, ao escrever as cartas para seu quadrado marido, admite a ambivalência de sua maternidade e a influência que teve na criação de seu filho psicopata.

Uma das cenas mais sensacionais do livro, que retrata toda essa ambivalência, é quando Eva está passeando com Kevin, que chora desde o nascimento sem parar, alto e sem motivo nenhum. Na rua, o som das brocas de uma construção abafam por segundos o som do choro de seu filho – e Eva é inundada de alívio. Ao descontruir essa cena na carta para seu marido, a protagonista revê toda uma maternidade insatisfeita, o abandono de sua empresa e de sua vida pelo casamento e pelo filho, traça um retrato tragicômico da família atual, que tenta desesperadamente se manter nos mesmos moldes tradicionais – um total fracasso.

Essencialmente psicológico, o thriller não é dos mais indicados se você está buscando ação do início ao fim. Mas é justamente o livro da semana se você procura fugir pra qualquer cabeça que não a sua. Como poucas pessoas, Lionel consegue construir a essência do devaneio de Eva, nas cartas, sem torna-lo chato e sem sentido. Sem se afogar em um monte de palavras na cabeça de uma mãe de um psicopata, Precisamos falar sobre o Kevin é o retrato exato do que Freud vinha falando desde 1900 – a relação dúbia de mãe e filho.

“Entretanto, a segunda fase dos Fatos da Vida seria sem dúvida bem mais difícil de explicar. “Kevin”, comecei eu, no dia seguinte. “Lembra-se do que nós conversamos ontem? Sobre sexo? Bom, a mãemãe e o papai às vezes também fazem isso.”“Para quê?”“Entre outras coisas, para que você viesse nos fazer companhia. Mas talvez fosse bom você também ter companhia. Você nunca desejou ter alguém por perto, para brincar?”“Não.”Curvei-me sobre a mesa onde Kevin ia sistematicamente quebrando cada um dos lápis de cera de sua caixa Crayola com 64 cores. “Bom, mas você vai ter companhia. Um irmãozinho ou uma irmãzinha. E pode ser que você goste muito disso.”Ele me fitou com um olhar comprido, sombrio, embora não especificamente surpreso. “E se eu não gostar?”“Então você vai acabar se acostumando.”“Só porque você se acostuma com alguma coisa não quer dizer que você goste.” E acrescentou, quebrando o magenta: “você está acostumada comigo.”"

Bjs pra vcs.

Indicação da Amanda
[you see, but you don’t observe]

sábado, 23 de março de 2013

Tudos – Arnaldo Antunes


“ O Silêncio não se lê”
Arnaldo Antunes era vocalista dos Titãs. E você provavelmente conhece ele (isso se você não esteve nos últimos anos morando em Marte). Pois muito bem. Arnaldo Antunes é aquele simpático vocalista que também assinava diversas composições do grupo. Ele deixou os Titãs, a banda seguiu sem ele, e ele seguiu carreira solo, mas isso não nos interessa nem um pouco. O que interessa é que Arnaldo Antunes é um poeta, compositor, brilhante, e o que interessa é que essa semana eu li Tudos, um livro dele, datado de 1990, e foi tão boa a leitura que eu estou indicando aqui nessa sexta-feira.

O livro é daqueles que você lê em 20 minutos, e por Deus, isso não o desmerece de forma alguma, Arnaldo Antunes coloca um novo olhar sobre a poesia concreta, movimento surgido no Brasil na década de 50, pelas mãos de Augusto de Campos. Você que não conhece poesia concreta, devia correr agora até o Google e se deliciar. O livro de Antunes, tem poesia concreta, sim, e tem mais que só apenas isso.

Vale ressaltar, e isto é trabalhado pelo autor por todo o volume: A primeira página contém um ponto de interrogação. É um livro que não tem qualquer resposta de nada, mas está cheio de perguntas, quem o lê vai começar a se perguntar um turbilhão de coisas, o livro desperta a curiosidade, desperta a sagacidade do leitor, porque o livro está falando de muita coisa, ao mesmo tempo que fala de quase nada (e espero que vocês estejam me entendendo).
Como o próprio titulo sugere, o autor quer falar de tudo, e tudo cabe num livro. E então ele faz um caminho bastante interessante pelas páginas do livro. Utiliza a poesia concreta, e faz diversos jogos de palavras que nos levam a virar página a página, o segredo maior de Tudos, está naquilo que Arnaldo Antunes não diz. Naquilo que nós temos que subentender do que foi lido.
O autor abusa de desenhos, e da maneira como as palavras são dispostas por todo o livro, abusa de anáforas, e como eu já disse de jogos de palavras que só engrandecem a obra. Poderia ser uma pretensão enorme, querer falar de Tudo, em um simples livro, porque tudo, a meu ver parece coisa demais, e você deve concordar comigo. Mas, não é que o livro fique pouco aprofundado, não, o barato dele é justamente isso, é aquilo que a gente tem que imaginar da leitura que está fazendo, é aquilo que a gente precisa pensar, refletir, depois de cada palavra que a gente lê.

Se você ainda não se sentiu interessado pelo livro, vale comentar, que o autor além de trabalhar com as dúvidas, e as incertezas, o faz de forma brilhante, bem argumentada, e o que é melhor atentando para as coisas simples, aquelas que fazem parte do nosso dia a dia, mas que nós não nos damos conta, sequer percebemos a diferença imensa que elas podem fazer. E são justamente essas pequenas coisinhas, que no final, ao ler no livro acaba nos deixando pensativos, e envoltos a nós mesmos virarmos aquela interrogação que estava lá na primeira página do livro. E acredite, os vinte minutos gastados com o livro, que é de leitura muito fácil e agradável, valem cada segundo, dá pra dizer que é quase uma viagem filosófica sobre todas as coisas, todas as coisas que estão ao nosso redor.

Eu que nunca tinha lido nada assim do autor, me surpreendi, o livro é mais que eu novo olhar sobre o concretismo, e é mais que simples poesia moderna, é mais que tudo isso, é tudos. (e perdão pelo trocadilho infame).

“Pensamento vem de forae pensa que vem de dentro,pensamento que expectorae que no meu peito penso.Pensamento a mil por hora,tormento a todo o momento.Porque é que penso agorasem o meu consentimento? Se tudo que comemoratem o seu impedimento,se tudo aquilo que choracresce com o seu fermento;pensamento, dê o fora,saia do meu pensamento.Pensamento, vá embora,desapareça no vento.E não jogarei sementesem cima do seu cimento.”

Indicação do Aion.
[chega de chegar, depressa é muito devagar]

quinta-feira, 21 de março de 2013

O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli -- Devir, 2002; Companhia das Letras, 2011



"Todo labirinto tem uma saída."
Um homem que leva a vida comprando os outros. Não propriamente os outros. Mas as coisas que fizeram parte da vida dos outros. Ao contrário do que pensam as pessoas que o procuram, os objetos não têm valor algum para ele além daquele comercial, no qual ele precisa pagar baixo, pra depois vender mais caro. Diariamente ele encara todo tipo de gente que está precisando de dinheiro. Gente que vem de longe e que se dispõe a se desfazer de uma parte do seu passado para tentar sair do vermelho. E o protagonista, que parece aquele cara do comercial do Bombril, as trata simplesmente como (ou até pior do que) as tranqueiras que elas trazem. Ele sabe que as pessoas precisam dele. Do dinheiro dele. Comprando as coisas, ele compra as pessoas. E as histórias vêm junto com elas.

Totalmente tomado por esse âmbito materialista, põe fim ao seu noivado com os convites já na gráfica e apaixona-se por uma bunda num boteco de quinta que ele aguenta apenas pela paisagem. Apesar de a paixão não ser o motivo do término. A razão é porque ele não gosta de ninguém. Nunca gostou. E sua noiva já não tinha mais nada a lhe oferecer. Não vê necessidade em manter relações emotivas com nada nem ninguém. Pagar é mais fácil. Mais direto. E pra ele tá bom assim. Seu pesar, no entanto, é que em seu escritório há um banheirinho com um ralo que exala um cheiro forte de merda. Pra todo “cliente” que chega ele conta que o cheiro vem do ralo e a culpa não é dele. Pensem o que quiserem sobre como ele trata a todos. Desde que não achem que o cheiro do ralo é dele.

Mutarelli levou bastante coisa da sua experiência com quadrinhos na hora de escrever. Os diálogos se misturam as descrições e aos pensamentos do Narrador. Muitas vezes os parágrafos levam apenas uma frase. É tudo muito rápido. Ponto atrás de Ponto. Mas nunca reticências. O próprio autor declarou que seu ingresso na literatura foi devido a ideias em mente nas quais uma linguagem visual, como a que ele usava anteriormente, entregaria demais a intenção da obra. Mesmo assim, ele cria certas imagens na cabeça do leitor, nos dando pistas na maneira como as personagens falam, o que elas levam, como se comportam etc. para que tipo de pessoa ele busca representar.

Ninguém tem nome. Todos são representados apenas por aquilo que carregam. São as coisas que interessam de verdade. Um dos receios do Narrador, mais a frente, é achar que comprou tanta coisa que ele começou a absorver as histórias que elas continham e isso estava, de alguma forma, afetando sua vida.

No meio de todo esse clima meio denso de desantropomorfização, ele reserva algumas cenas de humor negro. O Narrador inventa histórias para iludir seus clientes. Às vezes por pura diversão, às vezes pra disfarçar os próprios demônios. Mas quase sempre é uma tiração de sarro da cara das pessoas. Uma maneira meio cruel de se divertir à custa dos outros. Fora que também dá pra achar graça em como ele narra seu dia-a-dia cheio de banalidades de maneira tão seca e direita. Sarcástica. Como quando ele fala da pomba que costuma sobrevoar perto de sua janela, a programação da TV, a Revista dos Astros ou seu pai.

Volta e meia o pode causar algum incômodo. Do mesmo jeito que o cheiro. Ou tu enfrenta ou desiste e convive com ele. De fato, o livro te marca de algum jeito. Seja por identificação, por repulsa ou por prazer. Ele até já virou pra mim o que um daqueles objetos virou pra vários personagens. Uma parte de mim ficou posta naquelas linhas. Não somos nós que damos significados pras coisas? Não é por isso que elas valem tanto? Tudo tem uma história. Todos tem alguma coisa pra contar. Só é preciso alguém pra ouvir.

Segue um trecho:

“Ele entra.
Põe o violino em minha mesa. Não fala nada. Nem ‘boa tarde’. Fico em silêncio. Afinal o interesse é dele. Então ele fala: Quanto? Chuto tanto. Ele coça a barba. Esse violino deve ter história, chuto. Ele me olha. Seu olhar me incomoda. Ele pega o violino e sai.
Mas, antes de fechar a porta, solta:
Aqui cheira a merda.
É o ralo.
Não. Não é não.
Claro que é. O cheiro vem do ralo.
Ele entra e fecha a porta.
O cheiro vem de você.
Olha lá. Levanto e caminho até o banheirinho.
Olha lá, o cheiro vem do ralinho.
Ele ri coçando a barba.
Quem usa esse banheiro?
Eu.
Quem mais?
Só eu.
Ele continua com o sorriso no rosto, solta:
E então, de onde vem o cheiro?”


Indicação do Guilherme.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Holocausto - Gerald Green



Estou polêmica essa semana – mentira, sempre fui – e escolhi um livro que vem ao encontro dessa minha peculiaridade. Digo que o Holocausto é um livro polêmico porque esteve envolvido em diversas aclamações e acusações. Um livro brilhante? Sem dúvida. Um livro questionável? Sem dúvida também.

Adaptado pelo próprio autor para uma série de TV que totaliza nove horas de vídeo, com um elenco excelentee um imenso pessoal de apoio, uma produção sensacional e o roteiro bem colocado pelo próprio autor da obra, a série ganhou diversos prêmios, foi aclamada pela crítica e até hoje é lembrada como um veículo de informação histórica sobre o Holocausto. Quase que um tutorial: entenda-você-mesmo.

Mas então, Amanda, porque a polêmica? Ora, pequeno forasteiro. Todo esse sucesso traz alguma crítica. A primeira delas é a de que o imenso faturamento (vulgo lucro) que a série gerou seria uma maneira de “vender” a idéia do Holocausto ou comercializá-la sem fins didáticos, sociais e humanos. A outra acusação foi feita inclusive por um sobrevivente da época, que a acusa de ser irreal, ofensiva e trivial.

Sim, eu estou falando da série. Mas não vejo jeito maneira de desconectá-la da obra literária, até porque, o roteiro foi otimamente adaptado. E é justamente aqui que eu quero fazer o ponto de transição entre as duas obras: ambas são polêmicas. Gerald Green foi muito criticado à época do boom de seu livro porque vendeu cópia pra caralho. E aqui, a velha história da comercialização do Holocausto volta e se coloca num ciclo de discussão sem fim – independente do fato de você ser contra ou indiferente.

Justamente por causa dessa polêmica toda, não quero entrar no mérito da validade histórica da obra e sim na sua construção literária. Obra MUITO bem feita, com recursos literários e de enredo muito bem embutidos no conjunto.

Usando de uma técnica que muitas vezes não dá certo – por incompetência de quem se propõe a fazê-lo – Green dá uma aula de como colocar dois personagens e mundos em oposição numa mesma obra. O livro é narrado por partes antagônicas: o judeu alemão Rudi Weiss e o advogado e major da SS Erik Dorf. E como eu disse, ao contrário de muitas tentativas falhas, os dois personagens são absolutamente distintos (e são narrados em primeira pessoa) transparecendo o talento do autor. Green constrói ambos os personagens sob suas bases familiares e sociais – e cria duas entidades com maestria.

Weiss é um bruto judeu, jogador de futebol, que vive com sua família na Alemanha e cuja história se ambienta pouco antes da promulgação das racistas Leis de Nuremberg. Os grandes eventos pré-holocausto são narrados sob a ótica dele – como a Kristallnacht (a Noite dos Cristais) em que milhares de estabelecimentos, sinagogas e lares judeus foram vandalizados pela SA por membros do NSDAP; também as prisões sem motivos, a realidade dos campos de concentração e a formação dos guetos.

Revoltado, Weiss torna-se um andarilho na Europa a fugir do regime. A trama curiosa de Green explode realmente quando ele cria um paradoxo dos mais inteligentes: no pré-guerra, a família Weiss era uma família abastada, e o pai de Rudi era médico. Já Dorf, o futuro major da SS, era um ariano recém-formado em Direito, pobre e com esposa e filhos. Ambas as famílias, a Weiss e a Dorf, se conheciam de tempos de outrora.

Um dia, Dorf vai pedir ajuda médica para a esposa a Weiss. O judeu, que era um homem generoso, o faz sem maiores considerações. Aqui, metade do paradoxo está construído. Para termina-lo, precisamos passar pelos diários do major, que brilhantemente transformam o tímido advogado em um seco e frio funcionário da SS, na história, braço direito de Heydrich (aqui: http://migre.me/dJJAe), um dos maiores responsáveis pela eufemização do que realmente ocorria com a população judaica da Europa, história contada pela sua ascensão dentro do partido e pelas funções relacionadas ao extermínio que vai acumulando.

Pra terminar as considerações sobre o enredo, vou amarrar o paradoxo quando Dorf vai solicitar que a clínica do dr. Weiss se restrinja aos judeus, apenas – já que ele vinha atendendo gratuitamente uma idosa e pobre alemã. Aqui, Green joga de encontro passado e presente, dando o nó com um laço das transformações individuais. O mesmo advogado, protegido por um uniforme negro, ilustra tantas transformações quantas são possíveis num homem por uma ideologia.

De jovem e tímido a seco e poderoso, Dorf amarra o regime nazista nele próprio, do começo ao fim. Sua construção através dos diários é brilhante. Para Weiss, o autor reserva outra faceta do brilhantismo: abranger a dor humana de uma forma tão crua – e lírica.

Se você não gosta de eufemismos, porém, este é exatamente o livro que você estava procurando sobre a II Guerra.

“A um sinal do sargento Foltz, as armas trepidaram em curtas rajadas de chama alaranjada. O fedor acre da pólvora me entupiu o nariz. Através da névoa, eu vi os judeus caírem em pilhas disformes. Seus corpos estavam pontilhados por pequenos furos vermelhos.
A garotinha que tinha acabado de perguntar se podia fazer seus deveres escolares estava caída atravessada sobre o corpo de sua mãe. Na morte, elas se abraçavam.
Entreouvi Blobel dizendo:
- Duas balas por judeu, uma porra! - dizia Blobel.- Deixe aquele filho da mãe do Von Reichnau vir aqui para contar os buracos neles, se quiser.
Rapidamente, coloquei um escudo plástico claro sobre os olhos. Eu estava chorando. Não, conscientizei, por simpatia pelos judeus. Eles morrem tão facilmente, tão rapidamente, sem se queixar, que é difícil aceitar que aquilo se trate realmente de morte. Mas chorei devido a uma percepção vaga, imperfeitamente compreendida, das dimensões terríveis de nossa tarefa. Heydrich me convenceu, além de qualquer dúvida, que estamos forjando uma nova civilização. Ações duras e cruéis são necessárias. Eu agora presenciei uma delas.”

Seeya todos vocês, mil bjs.
Indicação da Amanda

[you see, but you don’t observe]

quinta-feira, 14 de março de 2013

Até o dia em que o cão morreu, de Daniel Galera -- Livros do Mal, 2003; Companhia das Letras, 2007


“Eu não sabia dizer por quê, mas naquela hora me pareceu que ele era mais feliz que a maioria das pessoas.”

Fiquei um tempinho pensando se deveria começar a indicação contando algum tipo de premissa do livro. Sabe aquela coisa de contar onde o livro se passa, como o protagonista chegou lá, qual, aparentemente, é a intenção dele...? Então, esse tipo de coisa. Pode não ser má ideia pra vários outros livros. Mas acho que não é o caso. Não que seja difícil, porém me convenci que não é o melhor a se fazer. E vou dizer por que:

A história pode parecer simples demais. Ou dar a impressão que não acontece muita coisa. Talvez soe meio chato. Quem sabe até não crie interesse em ninguém. Mas principalmente, é porque não seria capaz de abranger o que o livro trata.

Não acho muito certo, também, fazer como aquelas orelhas de livro que servem pra marcar as páginas que costumam dizer que tal obra é sobre tal e tal coisa. Pra mim isso estraga um pouco a leitura. A gente já lê querendo achar no texto onde pode estar o tal significado que disseram ter naquele livro sem nem nos darem um spoiler alert.

Com isso dito, acho tudo bem dar uma ideia do que o romance trata:

Um tempo depois de se formar em Letras, Ciro resolve alugar um apartamento vazio no centro de Porto Alegre e morar sozinho.

Eu disse que era simples. Mas tem mais. Ele conhece uma modelo chamada Marcela que entra na sua vida meio a contragosto. Ele tem uma relação com seu cachorro que é quase uma interdependência não assumida. Seu estômago lhe causa dores quase insuportáveis regularmente. O porteiro do seu prédio o fascina com suas pinturas e conversas. Um motoboy vira seu amigo de uma forma inusitada.

Ciro é quem narra a história, o que nos torna mais próximos dele. Não logo de cara, ele vai nos contando o que aconteceu na sua vida nesse período indeciso após receber seu diploma. Indeciso e confuso. Melhor: indeciso, confuso e frustrante. Um momento de encarar que uma fase da sua vida acabou e que é hora de outra começar. Quando as dúvidas costumam existir em maior quantidade do que admitimos.

Ele tenta se isolar do mundo não tendo telefone e mantendo pouco contado com a família. Às vezes ele é meio bruto, mas, quando precisa, é um cara legal. Faz planos de largar tudo, de se virar. Mas sempre precisa recorrer ao pai pra pagar as contas. No entanto, ainda carrega consigo uma arrogância à la Bandini de que está sempre certo e compreende o mundo.

A intenção até poderia ser ficar sozinho. Não ser incomodado. Talvez até pra por a cabeça no lugar. Porém sua vida vai precisando ser remanejada de improviso conforme as coisas vão acontecendo. Parece não entender muito do que se trata e sua autoconfiança é abalada. Mas há momentos que percebe que não está realmente se queixando da situação.

O livro dialoga diretamente com uma geração mais jovem brasileira. É fácil se identificar com os pensamentos e os trejeitos do protagonista. A narrativa flui rapidamente e partilhamos com Ciro de suas preocupações e pensamentos. De certa forma, fazemos o papel do cão. Andamos pela rua, como se não tivéssemos dono, observando. Mas sempre acabamos por arranhar a porta da frente para que ele a abra e nos dê abrigo. E é só depois que morremos, que acabamos o livro, é que o deixamos livre pra lembrar de seus sonhos.

Um trecho pra vocês:

“Acendi um cigarro, sentei no chão do quarto e fiquei observando a Marcela dormir, o rosto avermelhado, a boca expelindo um hálito de garganta inflamada. Tão oposta à figura daquele anúncio. Por um instante, imaginei como seria se ela viesse morar comigo, mas rejeitei a ideia rapidamente. Mesmo com as visitas ocasionais, era comum eu acordar perto do meio-dia depois de uma noite de inteira de fodelança e desejar profundamente que ela não estivesse do meu lado, dormindo na minha cama. Não é que eu não gostasse dela. Eu gostava, até demais. Mas a ideia de que pudéssemos ter um relacionamento, como se diz, me causava repulsa. (...) Com os pais em Caxias do Sul, em Porto Alegre ela só tinha a mim pra pedir apoio. Eu não tinha certeza se essa ideia me agradava. Mas desisti de pensar nessas coisas, apaguei as luzes do apartamento e me deitei ao lado dela. No momento eu tinha alguém pra proteger, e isso era novo.”

quarta-feira, 13 de março de 2013

Suave é a noite - F. Scott Fitzgerald


Fitzgerald foi um autor da geração perdida. Americano, vindo de família católica, e veterano na Primeira Guerra Mundial. Seus livros trabalham com ambientações da época em que viveu. Morreu nos anos 40 decorrente do alcoolismo.

Apesar de ser um livro calmo e até um tanto lírico, a obra trabalha com temas psicológicos humanos, principalmente sobre o passado de uma pessoa, e a forma como aquilo pode acarretar conseqüências em sua vida, assim como também é importante formador de personalidade. O enredo baseia-se em três personagens de classe financeira alta, e que se mostram para terceiros como possuindo uma vida absolutamente feliz e perfeita, Dick, um médico psiquiatra bem sucedido, Nicole, sua esposa que possui problemas psicológicos (que é algo escondido pelo casal, a fim de parecerem realmente felizes a terceiros) e Rosemary, uma jovem atriz de cinema hollywoodiana. Juntos, os três personagens formam um triângulo amoroso. O livro também possui várias histórias paralelas, mas todas de alguma forma acabam se ligando com o enredo principal. Em primeira instância parece ser um livro de história meio boba, mas com a leitura vemos que Fitzgerald trabalha profundamente com temas como o alcoolismo, depravação do homem, psicanálise, atordoamentos emocionais e psicológicos, solidão, adultérios. É um texto que demora para sacarmos realmente qual é da história, e em muitos trechos pode ser até uma leitura entediante, pois os primeiros capítulos são bastante confusos. Isso é proposital de Fitzgerald, pois com o decorrer das páginas são feitas revelações sórdidas e cheias de segredo a respeito da história passada de cada personagem, e assim percebemos (ou ao menos entendemos) o motivo de seus atos atuais, e para um leitor mais observador e astuto, é possível prever até um pouco de seus atos futuros.

Suave é a Noite é uma exploração emocional e psicológica sobre como relações humanas são temporais, assim a desgastante vida de seus personagens na década de 1920. Junto com O Grande Gatsby, é a maior obra do autor.

Sei que o trecho que vou deixar é um tanto quanto longo, porém eu acho que sintetiza bastante sobre o que Fitzgerald trabalhou neste texto.

“Quando ele se sentou na beira da cama, sentiu o quarto, a casa e a noite vazios. No quarto ao lado, Nicole murmurou algo desolada e ele lamentou qualquer que fosse o tipo de solidão que ela sentia em seu sono. Para ele, o tempo permanecia imóvel e então, após alguns anos, aceleravam-se precipitadamente como o rápido rebobinar de um filme, mas para Nicole, os anos esvaíam-se pelo relógio, calendário e aniversário, somados à agonia de sua beleza perecível.Mesmo o último ano e meio em Zugersee parecia tempo perdido para ela, as estações marcadas apenas pelos trabalhadores na estrada que se tornavam rosados em maio, marrons em julho, negros em setembro, brancos outra vez na primavera. Ela emergiu de sua primeira enfermidade cheia de novas esperanças, desejando muito, porém, privada de qualquer subsistência além de Dick, criando filhos que apenas podia fingir amar gentilmente, órfãos orientados. As pessoas de que gostava, a maioria rebeldes, perturbavam-na e eram-lhe nocivas – ela procurava nelas a vitalidade que as tornava independentes ou criativas ou rudes, procurava em vão – pois seus segredos estavam profundamente enterrados em conflitos de infância que elas tinham esquecido. Elas estavam mais interessadas na harmonia e charme exteriores de Nicole, a outra face de sua enfermidade. Ela levava uma vida solitária possuindo Dick que não desejava ser possuído.Muitas vezes ele tentou sem sucesso relaxar sua influência sobre ela. Eles tinham muitos bons momentos juntos, agradáveis conversas entre as paixões das noites insones, mas quando ele se afastava e mergulhava em si mesmo, ele a deixava agarrada ao Vazio que contemplava em suas mãos, ao qual dava vários nomes, mas que ela sabia ser apenas a esperança de que ele logo retornaria.”

Indicação do Luiz A. Jr.

terça-feira, 12 de março de 2013

Como Morrem os Pobres - George Orwell


Todos conhecemos Orwell. Seus livros mais famosos tiveram repercussão mundial, se introduziram em nosso vocabulário, em nossas aulas de história... enfim, de 1984 e Revolução dos Bichos, entre outros, já conhecemos quase tudo. Mas não é da faceta romancista de nosso escritor inglês que vou tratar: "Como Morrem os Pobres" é uma demonstração de seu talento como cronista/contista.

A edição que tenho em mãos, da Companhia das Letras, não deixa de estar dividida em alguns eixos: uma parte fala das experiências do autor em meio aos mendigos, andarilhos, colhedores de lúpulo (inclusive esses textos não foram assinados usando o pseudônimo George Orwell - e sim o nome verdadeiro dele, Eric Blair); outra são ensaios que tratam do emprego da linguagem e da honestidade intelectual; a última, de costumes ingleses e assuntos mais inconsequentes.

A primeira parte é minha favorita, pelo tema. Muitas pessoas gostam de usar o livro como um tampão, interpondo-o à "vida que acontece lá fora". Essa mania parnasiana não deixa de ser lamentável, e a praticamos de forma inconsciente. Por isso é muito interessante ter contato com outra realidade social por meio de crônicas como as de Orwell, que falam da realidade dos andarilhos ingleses. É apenas triste observar que lendo-as, temos a impressão de que a situação no Brasil atual é a mesma.

Da segunda parte pode-se dizer que é composta de ensaios. Há neles a defesa de uma linguagem mais concisa, menos empolada e burocrática - outro aspecto que infelizmente sobrevive. Muita coisa mudou dos anos 30 pra cá: entretanto, a tentação de parecer inteligente à custa da lógica e da compreensão (do que se diz) sobrevive.

A terceira é deliciosamente "fútil": fala de costumes ingleses como a preparação de um bom chá, como seria o pub ideal, sobre o esporte na Inglaterra (aqui vemos uma reflexão mais séria, acerca de como as competições esportivas acirram o nacionalismo). Contudo, não quero que pareça assim que o resto do livro é cansativo, ou algo assim: é sempre um prazer ver uma pessoa defender suas posições tão claramente como Orwell.

É nisso que consiste toda a admiração que as pessoas nutrem por ele: George (sintam a pretensa intimidade) não é um gênio de sua geração, não tem um estilo de escrita inovador ou algo assim. Ele simplesmente diz tudo (e mais um pouco) que gostaríamos de dizer também, sem a arrogância típica de grande parte dos ensaístas.

Enfim, quero ser George Orwell quando crescer.

"Em nosso tempo, o discurso e a escrita política são, em grande medida, a defesa do indefensável. Podem-se defender coisas como a continuação do domínio britânico na Índia, os expurgos e as deportações russas, as bombas atômicas jogadas sobre o Japão, mas somente com argumentos que são brutais demais para a maioria das pessoas e que não estão de acordo com os objetivos declarados dos partidos políticos. Desse modo, a linguagem política precisa constituir, em larga medida, em eufemismos, argumentos circulares e pura imprecisão nebulosa. (...) Mas, se o pensamento corrompe a linguagem, a linguagem também pode corromper o pensamento. "

(Trecho do ensaio "A Política e a língua inglesa")

Indicado por Heloisa.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Assassinato na biblioteca – Helena Gomes


“Mistério, suspense e anos de chumbo.”

Igor é um moleque desajustado. Seu pai morreu, a mãe está namorando um sujeito com o qual ele não simpatiza nem um pouco, ele reprovou de ano, viu todos os amigos irem para a série seguinte e ainda foi obrigado a trocar de cidade, tornando-se um cara isolado.
E numa bela manhã decide gazear aula na biblioteca.

Lara é uma jovem que vive nos anos 60, conhecemos sua história mais precisamente em 1968, quando, e espero que todo mundo saiba, anunciou-se o AI-5.

O gancho inicial desta deliciosa aventura assinada pela escritora Helena Gomes (desconhecida inclusive por mim que só li este livro da autora) é o assassinato da bibliotecária, justamente na manhã em que Igor está lá, no lugar errado e na hora errada. É nessa hora que os destinos de Igor e Lara se cruzam, como e por quê? Lara também fora assassinada naquela mesma biblioteca.

Igor começa uma busca incessante, não só por quem matou, mas porque a bibliotecária, inofensiva, teria sido assassinada, para isso, o jovem conta com a ajuda do fantasma de Lara, que se torna a única amiga de Igor, e a única pessoa com quem ele pode contar.

A história é muito bem construída nesse ponto, o fantasma, embora inverossímil, é a conexão da enredo que se preocupa em retratar os anos de chumbo, e mais, a morte da bibliotecária obviamente tem alguma coisa relacionada a isso. Todo esse enredo, em poucos capítulos construído, te prende a leitura, que flui com uma facilidade gigantesca, tem tudo que os bons livros de mistério precisam ter, tem suspense, reviravoltas, surpresas, pistas jogadas aos cantos, coisas que passam despercebidas, e que modificam o rumo dos acontecimentos, e o casamento mais que feliz de duas épocas diferentes.

O livro começa com Lara, correndo de alguém ou alguma coisa, nos tempos difíceis do AI-5. A autora é muito feliz ao apresentar a personagem, e mais feliz ainda ao ambientar a história num período tão conturbado da história recente brasileira. Lara tem 14 anos, não sabe direito o que está acontecendo, comenta consigo que o silêncio que sua família faz a respeito do Ato Institucional fala por si, ela sente-se acuada, perdida. Por coincidência do destino, muitos anos depois, o jovem Igor, de quem eu falei lá no inicio da resenha, vem a estudar na mesma escola de Lara.

A angústia de Lara é muito bem trabalhada no primeiro capítulo, os mistérios que envolvem a morte dela também. A personagem morre de maneira abrupta e o livro faz um salto no tempo, para assim explicar os acontecimentos seguintes. Igor, curioso, quer de todo o jeito encontrar o culpado pela morte da bibliotecária. Lara, fantasma, que ficou todo esse tempo na biblioteca decide ajudar o rapaz, e sim, um romance nada convencional surge ali.

Há na escola, todos os tipos de suspeitos. Igor não gosta do namorado da mãe Gustavo, não é querido por ninguém na escola, e a única pessoa que simpatizou com ele, a bibliotecária, apareceu morta na sua frente. O rapaz tem todos os motivos do mundo para surtar, mas com o apoio de Lara não o faz. O suspense se cria logo em seguida, quando Lara aos poucos vai lembrando-se das circunstâncias relacionadas a sua própria morte, tudo somado às pistas que Igor vai encontrando sobre o assassinato da bibliotecária, e estranhamente as duas mortes estão relacionadas. A ainda outra coisa bem trabalhada na história, o amor que Igor tem por Ciências, e a sua atenção exagerada aos detalhes. Pouco a pouco, ele começa a montar o quebra-cabeça.
O livro é indicado ao publico infanto-juvenil, mas, nós (mais velhinhos) também podemos ler, não é proibido e, diga-se de passagem, vale muitíssimo a pena e se engana quem diz: ah o livro não tem profundidade. Sim, ele flui facilmente, porque a escrita é de fácil entendimento, o que não significa que a técnica seja ruim, o livro é bem amarrado, a contextualização histórica atrelada aos mistérios do presente e do passado, tornam o livro fantasticamente bem escrito, da primeira a última página.

Não diria eu que é um mistério do nível de Agatha Christie, mas é um enredo bem construído, que faz uso de clichês ao seu favor, mesmo Igor sendo bem chato e insuportável ao longo de todo o livro, sua perspicácia e inteligência fazem com que compremos o seu drama, e quando nos damos conta já estamos até torcendo por ele e partilhando de suas opiniões.

Lara, uma espécie de coadjuvante na segunda parte do livro, é a verdadeira guerreira da história; é ela que dá os conselhos a Igor, é ela quem acredita no rapaz, mesmo quando ninguém mais acredita, o que acontece com frequência no decorrer da história, a paixão dos dois, embora completamente impossível é algo bem trabalhado, os dois jovens, separados por anos de distância, tem muitas coisas em comum, principalmente a solidão em que ambos se encontram, em certo momento da história a busca pelo assassino da bibliotecária se faz mais forte e necessária para que os dois fiquem mais tempo juntos.

Um último comentário: acho muito bacana, pensando em que se trata de um livro dedicado aos jovens, a preocupação da autora em apresentar um contexto histórico como a ditadura militar brasileira – é sempre tempo de alertar as pessoas sobre o que aconteceu naquela época, e tentar fazer com que o mundo saia da inércia.
Enfim é isso aí, Espero que vocês se interessem pelo livro. Vale muito a pena! Eu garanto.

“Tempos difíceis. E perigosos. Tempos de AI-5. Lara não sabia o que a sigla significava, mais a temia pelo que não se falava sobre ela. O silêncio das pessoas dizia tudo o que precisava ser dito. O AI-5 era uma forma que o governo militar havia encontrado para perseguir as pessoas consideradas inimigas do país. E nesta lista negra entrava qualquer um: professores, sindicalistas, estudantes, escritores, cantores, enfim, todo mundo que não concordasse com as decisões do governo militar.Lara foi a pé para a escola, como sempre fazia. Desta vez, no entanto, o medo a acompanhava como uma sombra invisível. Havia uma sensação gelada, que ganhava força com a ameaça trazida pelo desconhecido, pelo que podia acontecer. Não temia por ela e sim por Luke, o irmão seis anos mais velhos. Não sabia se ele estava na lista de perseguição iniciada pelo AI-5.[...]Naquela manhã, a garota não prestou atenção em nada, nem no bonde 42 que parava para pegar passageiros no ponto logo adiante. Em breve, Santos perderia todos os seus bondes para dar lugar aos ônibus que já circulavam em números cada vez maior. Sinal dos novos tempos, acreditavam alguns. é a modernidade, reforçavam outros. Lara, com seus 14 anos, gostava de bondes, mas não podia deixar de admirar as novidades em um mundo que parecia mais e mais veloz. No ano anterior, um americano, Neil Armstrong, havia pisado na Lua pela primeira vez. A avó de Lara não cansava de repetir que as imagens que a TV tinha exibido para mostrar o astronauta caminhando sobre a superficial lunar não passava de mentira. "Tudo truque!", retrucava ela, com raiva dos Estados Unidos. Não era esse o país que havia incentivado o golpe militar no Brasil? Como Luke explicaria uma vez, em voz baixa e apenas à irmã Lara e à avó, os agentes da CIA tinham ensinado métodos de tortura aos policiais e militares brasileiros, os mesmos métodos hoje aplicados sem piedade aos prisioneiros do regime.Lara pensou em Caetano Veloso e Gilberto Gil. Luke contara que os dois haviam sido presos, um ano antes, numa boate do Rio de Janeiro, quando faziam espetáculo. Após dois meses na prisão, tinham partido para o exílio, na Inglaterra. E se isso também acontecesse ao Luke? Lara tinha medo de que ela também acabasse preso, que fosse torturado e tivesse que ir embora do país. O que seria dela e da avó? As duas já morriam de saudades desde que ele trocara Santos e fora morar em São Paulo para estudar filosofia na USP. Já imaginou se o rapaz fosse obrigado a viver no exterior?A garota respirou fundo e apertou os cadernos que carregava contra o peito. Espremido entre duas páginas, estava o dinheiro que entregaria ao irmão. Era tudo o que a avó conseguira arrumar. Luke não dera detalhes sobre o que estava acontecendo com ele. Ligara na véspera, pedindo para a irmã levar o dinheiro e encontrá-lo na biblioteca da escola onde ela estudava. O rapaz estava em perigo. Há tempos, Lara desconfiava de que o irmão estava fazendo mais do que participar de passeatas contra o governo, o que, aliás, agora era proibido. A avó queria levar pessoalmente o dinheiro, mas ele argumentara que a irmã não despertaria nenhuma suspeita. Afinal, ela estava apenas indo para a escola, dentro de sua rotina de sempre.”

Indicação do Aion.
[chega de chegar, depressa é muito devagar]

quinta-feira, 7 de março de 2013

Tanto Faz, de Reinaldo Moraes -- Brasiliense,1981; Azougue, 2003; Companhia das Letras 2011



“Um dia, eu quase aprendi a fazer cocada.”

Tá. Isso não explica muita coisa. Ou talvez explique. Sei lá.

Reinaldo Moraes tem um jeito tão livre, direto e fluente de escrever que é como se tudo fosse fruto de uma mente devidamente embriaga (ou fumada ou cheirada ou...) e saísse com tanta naturalidade que é quase difícil acreditar que também é dele a frase “Escrever qualquer macaco escreve. O negócio é reescrever”. E é só começar a ler o cara com mais atenção que dá pra perceber isso. Todos os diálogos e descrições são tão precisos e, por que não?, divertidos que a gente percebe o esmero dele em proporcionar prazer ao leitor – ou emular aquele que o narrador deve estar sentindo ele mesmo, na maioria das vezes –, usando um tom nada forçado em cada frase. Por aí dá pra ter uma ideia que a leitura pode ser rápida, principalmente porque não dá vontade de largar.

O livro tem como protagonista Ricardo de Mello. Um jovem que, chegando perto dos seus 30 anos, por acaso do destino, recebe uma bolsa de estudos de um ano em Paris. Ao chegar, no entanto, o rapaz assiste a uma aula aqui, outra ali, e percebe que a cidade tem muito mais a lhe oferecer do que a sala de aula. Morando no seu studiô, recebe visitas de amigos, bebe pra caralho, fuma pra caralho, transa pra caralho e tá sempre pronto pra mais.

Não, não, o livro não é (só) uma putaria generalizada. Muito está nas entrelinhas, nas relações e nos frutos das mesmas que Ricardinho (pra elas) ou Ricardão (pra eles) exerce com as pessoas e com a própria cidade, no fim dos anos 70 e começo dos 80. Além de toda malandragem no jeitão de Ricardo (pra mim), há sua dose de erudição. Sempre pronto pra pontuar sua opinião – por vezes controversa – sobre arte, política, ou até a vida cotidiana. Nunca deixando de estar pautada nos devidos autores, músicos, cineastas, filósofos e todo outro tipo de pensador. Só que não se trata daquele tipo que vomita nomes aos quatro ventos e parece que decorou uma listinha e não conhece nenhum dos caras que tá falando. Nota-se seu conhecimento. Dá pra perceber que ele sacou que masturbação mental demais não cola. Ficar só querendo saber qual o sentido da vida e se esquecer de vivê-la não tem chance com ele, não. Ele pensa, sim. Mas Vive pra valer. Uma erudição desleixada, quase.

Dentre os bares e ruas de Paris, de Mello vai encontrando e adquirindo conhecidos. A vida boêmia com tudo pago era exatamente o que ele sempre quis e tá sabendo aproveitar como ninguém. O segredo dele parece estar em levar tudo numa boa. Praticamente não há tempo ruim com esse cara. E deve ser por isso que dá tanta vontade de continuar lendo e de se envolver nesse mundo regado a drogas, sexo, rock n’ roll, jazz, literatura... Falta de preocupação com o próximo dia. O Carpe Diem sendo narrado em cada linha. Uma entrega que não se pode classificar com outra palavra senão hedonismo, no mais profundo sentido da palavra.

A experimentação das sensações físicas de Ricardo já deve ter ficado clara. Mas não dá pra esquecer das experimentações estilísticas na escrita de Reinaldo Moraes. O que facilita também na velocidade do texto é sua proximidade com a língua falada, na qual, por exemplo, facilmente, “com a mão” vira “ca mão”. Sem falar nos devaneios do protagonista, que realmente parecem seguir um fluxo de pensamento, em que uma frase puxa outra que parece aquela vez que lembra aquele filme daí tá geral falando francês junto com o pessoal de uma festa onde rola uma música e já tá todo mundo c’mon baby light my fire. O narrador, aliás, é dividido: começa em terceira pessoa. Depois fica um tempo em primeira. Quando vê tá em terceira de novo. E essa troca fica rolando até que, num surto, os dois resolvem se encontrar e tirar essa história a limpo. Exatamente. Primeira e Terceira Pessoas Ricardos de Mello se encontram cara a cara pra enfim decidir “cumé que a gente vai narrar essa porra”.

A não-linearidade também come solta. Volta e meia Ricardo ou algum amigo seu se lembram da vida em São Paulo e contam alguma coisa. Alguns capítulos são curtos, por vezes de uma frase, como se fossem apenas anotações do notebook, tão falado durante o livro, sempre no bolso e sempre à mão pra Ricardo anotar o que merece ser lembrado (já que nem sempre, no estado que ele está, dá pra lembrar de tudo). De vez em quando ele até começa a compor um sambinha, mas aí deixa pra depois. De repente tá pensando em mais um verso, uns tantos capítulos mais pra frente, e faz questão de nos mostrar. Porque também rola uma interação com o leitor. Aquela metalinguagem de estar-escrevendo e de estar-sendo-lido. Rolando até umas confissões de como tal capítulo é uma historinha que ele escreveu depois de um hash e acabou ficando sem pé nem cabeça, mas que ele nos dá uma chance de ler e tirarmos nossas próprias conclusões. Assim como vários diálogos das personagens sobre um tal romance que o de Mello estaria escrevendo, como se ele soubesse que todas essas experiências iriam acabar no papel. Moraes também não economiza nos neologismos pra formar frases de efeito no meio do papo com aquela mina que ele tá investindo ou no discurso empolgado na mesa do bar ou pra explicar o que a personagem tá sentido. O que faz sentido, já que, quase sempre, aquela sensação também é nova. Nunca perdendo o bom humor e as sacadas inteligentes, possivelmente resultadas de uma miscigenação narcótica e, claro, de toda a bagagem cultural e intelectual que o Ricardo carrega consigo.

Tanto Faz marcou a geração jovem brasileira do começo da abertura política, no fim da ditadura. Falou e mostrou e viveu o que muita gente queria ter dito e visto e vivido, com toda sua ginga e inteligência. Já se disse muito sobre o que foi a sensação de liberdade em ter aquela potência literária toda em mãos. E esse sentimento continua ali, com força total. Chega a dar uma invejinha que um cara possa narrar tantas peripécias em terras estrangeiras, e a gente aqui vendo a boiada passar. Mas o barato, se pá, tá em ver que tem como curtir a vida um pouco mais.

Foi o primeiro romance de Reinaldo Moraes e o fez estourar no mercado editorial. Damos boas risadas e entramos de cabeça nesse universo boêmio e desvairado que Moraes soube retratar com maestria.

No momento que o Brasil vivia, estávamos precisando de um Reinaldo Moraes pra nos mostrar que a arte não precisa ser tão careta. O que até me lembra de uma música do Tom Zé, que pode ser transferida para a literatura: “Todo compositor brasileiro/ é um complexado// Por que então essa mania danada,/ essa preocupação/ de falar tão sério/ de parecer tão sério/ de ser tão sério/ de sorrir tão sério/ de chorar tão sério/ de brincar tão sério/ de amar tão sério?// Ai, meu Deus do céu/ vai ser sério assim no inferno!”

Um trechinho, então:

“Batem na porta. Ricardo vai abrir de cigarro na mão, deixando cair a cinza no carpete, que, aliás, padece de várias doenças dermatológicas incuráveis. Chico, entrando:

– Ó de Mello, quer dizer que as musas te deixaram no toco, bicho?
– É uma merda. Mas até o Thomas Mann deve ter brochado muito no teclado. Tenho certeza disso.(...)– A inspiração é uma longa bobagem. Oswald de Andrade. Esse negócio de abrir a janela, pálido de espanto, é coisa de viado, Rica. Não perde tempo na tocaia da inspiração, que você não consegue nem redigir cartão de boas-festas.Gozado, é segunda vez que o Chico me fala em janela, hoje, pensa Ricardo. E replica:– Pra começar, o Oswald disse que o gênio é que é uma longa bobagem, não a inspiração. Pega os contos dos Carlinhos, por exemplo: geniais. E loucamente intrincados, quase ilegíveis. Melhor ler Heidegger em alemão duma vez. E, depois, é o seguinte: não se trata de inspiração e sim de piração mesmo. O trocadilho é uma merda, mas é vero. Remember Platão: A poesia dos loucos sempre eclipsará a dos sensatos. E você não sabe quanto eu demorei pra falar direito esse eclipsará.”
Indicação do Guilherme
[parangaricutirimírruaro]