sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Anjo Negro – Nelson Rodrigues


“A Casa não tem teto para que a noite possa entrar e possuir os moradores”

Nelson Rodrigues ficou conhecido por seu jeito peculiar de trabalhar com a literatura, com suas obras sempre dotadas de muita crítica social que mostravam personagens, que segundo o autor, nada mais eram do que a verdadeira face das pessoas, e que elas tanto lutam para esconder. Na série de crônicas A vida como ela é, o autor trabalha isto de forma exemplar, mas é no teatro que ele faz isso com mais propriedade.

Vamos parar de lenga lenga, porque a indicação dessa semana é fenomenal, e eu acho assim que depois de terminar de ler a minha resenha você deva correr atrás do exemplar mais próximo e devorá-lo em alguns poucos minutos. Porque? Porque como eu já disse a indicação dessa semana é fenomenal. Estou falando da peça Anjo Negro de Nelson Rodrigues, que figura entre uma das peças míticas do autor.

Anjo Negro, que tem todas as marcações do teatro e já foi encenado diversas vezes pelo Brasil, conta a história do negro Ismael, médico que renega a sua própria cor, usa roupas brancas e é completamente formalizado, um verdadeiro doutor. Pela primeira vez na história da Literatura Brasileira um negro é retratado dessa forma, o que inclusive gerou problemas para a peça com a censura. Pois bem, não foi só isso: peça foi publicada pela primeira vez em 1946, quando pipocavam os discursos sobre preconceito racial, e esta era uma discussão em voga, e tal preconceito ocorria de forma aberta, e não velada como por muitas vezes ocorre atualmente.

Rodrigues, inova ao apresentar o protagonista da peça um personagem negro, e instala em Ismael uma clara crítica ao fazer com que aquele personagem renegue a cor de sua pele. Ismael é casado com Virginia, mulher branca, e aqui, pelo menos da forma que Nelson Rodrigues imaginou sua peça sendo encenada, um só usa roupas brancas e a outra somente roupas pretas. A peça começa com a morte de mais um filho de Ismael, e aqui o jornalista não poupa o espectador e vai trabalhar e levar os sentimentos humanos, e o que as pessoas são capazes de fazer até as últimas consequências. Ismael quer um filho, mas todos os filhos que tem com Virginia nascem negros, a mulher não aceita isso e mata um a um cada filho que nasce, os afogando no tanque. Não se sinta enojado leitor, isto tudo faz parte dos temas que Rodrigues quer tratar (e o faz de forma tão fantástica) na peça. Ninguém, nenhum dos personagens é bom, todos eles tem algum problema, todos eles escondem alguma coisa, todos eles tem momentos bons e ruins. Continuo a falar do enredo, embora ele só seja a mola propulsora a tudo que Nelson Rodrigues quer discutir. Um belo dia, chega a casa de Ismael e Viriginia o irmão de criação de Ismael, Elias, que fora cegado por Ismael quando criança, de pele branca, é na presença desse homem que Virginia percebe uma maneira de ter um filho, e decide que Elias será o pai de seu filho, desta vez branco.

Viriginia engravida de Elias, e para a surpresa dela, acaba tendo uma menina, Ana Maria, e na segunda parte da peça, Ana Maria será envolvida por Ismael, que vai cegar a menina e fazer com que ela se apaixone por ele.

Apresentar uma peça com tantos temas polêmicos, e tratados com tanta propriedade, revela mais uma vez a genialidade de Nelson Rodrigues, e a maneira como ele consegue trabalhar com os opostos, com os dualismos de seus personagens. Virginia é o maior exemplo disso. O texto, publicado em livro da maneira como Nelson queria que representassem é dotado de qualidades estupendas, e discussões ainda relevantes na sociedade em que vivemos. Porque um anjo não pode ser negro? Porque a mulher não pode ter desejos carnais? Ao falar do passado dos personagens, descobrimos que Virginia fora violentada por Ismael, e ao tom bem peculiar do autor, uma cama quebrada onde tudo aconteceu é mantida no cenário, para que o casal central não se esqueça de como se tornaram marido e mulher. Rodrigues, apresenta o retrato de uma sociedade hipócrita e retrógrada, Virginia é tratada como a culpada do estupro que sofreu, toda essa discussão que aparece de forma superior ao enredo e ao texto, torna a peça ainda mais maravilhosa, Vale o que o leitor, ou quem assistir a peça vai pensar, o que é que ele vai refletir, e como vai encarar aquela realidade tão dura que fora apresentada.

Anjo Negro tem todos os ingredientes do que Nelson Rodrigues sabia fazer com tanta propriedade, tem uma tensão que percorre todo o texto, tem traição, sentimentos levados a flor da pele, crítica social bem fundamentada, um enredo bem amarrado e bem construído, uma história épica, como poucas vistas no teatro nacional, e até mesmo, um dos melhores escritos de Nelson Rodrigues por toda a sua carreira.

Que fique claro, dei pouquíssimos spoilers sobre o texto, mas espero sinceramente que você que leu até aqui já esteja pensando em como vai chegar a ler Anjo Negro, e poder comprovar todas as qualidades que eu exaltei aqui. Ahh, e se possível ver o texto de Nelson Rodrigues sendo encenado, melhor ainda, é uma das coisas mais estupendas que eu já fiz.

“ISMAEL – Eu levantei esses muros, te fechei num quarto. E enquanto enterrava meu filho – tu abrias a porta, mandavas entrar um homem que nunca viste...VIRGÍNIA – (como sonâmbula) Abri a porta.ISMAEL – Ainda agora você me disse – pela primeira vez que me amava.VIRGÍNIA – (gelada) DisseISMAEL – RepeteVIRGÍNIA – Você acreditou?ISMAEL – Me amas?VIRGÍNIA – Preciso responder?ISMAEL – Sim ou não?VIRGÍNIA - (recuando um pouco, num crescendo) Não, Bem sabes que não. Bem sabes que tenho horror de ti, que sempre tive, e que não suporto nada que tocas...ISMAEL – É só?VIRGÍNIA – (digna) Só?ISMAEL – E teu amante?VIRGÍNIA (desorienta-se, vacila, mas logo reage) Fugiu, Eu disse a ele “Foge!Foge!” A essa hora está longe, bem longe (apaixonadamente) graças a Deus!ISMAEL – (num crescendo) Teu amante está longe, bem longe, mas o filho ficou, o filho não fugiu (ri brutalmente) Deixa que teu amante fuja. (corta o riso) Mas o filho está aí, ao alcance da minha mão, quase posso acariciá-lo...(E realmente acaricia o ventre da esposa)ISMAEL – Começas a compreender?VIRGÍNIA – (num começo de pânico) Sim.ISMAEL – E não tens medo?VIRGÍNIA – (ferozmente com a mão no próprio ventre, como se quisesse defender o filho futuro) Nesse filho você não toca, nunca, ouviu? nunca! Eu não deixarei. Ele é meu e não teu! Ele é branco – branco!ISMAEL – (numa alegria selvagem) Você não matou meus filhos?VIRGÍNIA – Eu?ISMAEL – Você, sim, um por um. Não matou? Pois o teu – o dele – eu matarei também, (numa alegria de louco) e no tanque. Virgínia, ali (aponta na direção do tanque) Esperarei os nove meses – não nove não são? – e que fosse mais – um ano – eu esperaria (doce) Você não sofrerá nada. Nem Elias, mas ele (aponta para o ventre da mulher) Ainda não tem forma – ainda não é carne – mas já esta condenado!”

Indicação do Aion
[chega de chegar, depressa é muito devagar]



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