sábado, 23 de fevereiro de 2013

50 (brinks) RAZÕES PELAS QUAIS VOCÊ NÃO DEVERIA GOSTAR DE 50 TONS DE CINZA



Sim, amados leitores, é tempo de falar desse extremo ao qual o mercado editorial chegou. A senhora dos seus 40 anos que vi no ônibus lendo que me perdoe, mas o seu suspiro pouco ortodoxo que lhe escapou ao virar uma página foi a gota d'água.

Eu vinha suportando muito bem a repulsa a 50 tons de cinza, porque ora, todos aqueles de quem afortunadamente me cerquei sentem-se da mesma forma. Mas há um momento em que uma página séria como a Posso te indicar um livro? não pode deixar de se manifestar e parece ser esse o momento correto. Surpreendentemente, aviso que esta será uma crítica comprida – a despeito da pouquíssima quantidade de coisas que se pode delinear do livro.

Seria importante mencionar que o livro é uma fanfiction da série Twilight, para que se possa esclarecer o perfil dos personagens (afinal, nem isso é idéia original da brilhante E.L. James). Mas eu gostaria de partir do próprio livro, sem estabelecer paralelos. À maneira da minha crítica de Jogos Vorazes, vou me ater apenas ao primeiro livro, uma vez que o texto ficaria demasiado extenso e complexo. E prometo que acabei os avisos da paróquia aqui.

Nós temos Christian Grey, jovem empresário bilionário, que nas palavras de E.L. James pretendia ser um pedaço de rapaz, e Anastasia Steele, jovem garota desajeitada, virgem, tímida e cursando o curso de Letras. Aqui temos o perfeito casal clichê que vem sendo retomado desde o romantismo, sendo ele dotado de todas as qualidades imagináveis que se desejaria num homem e ela basicamente sem nenhum atrativo. Nenhum. Nenhum. Nenhum. Ela gosta de ler, mas vamos pular essa parte para manter as conveniências.

Ele é um pretenso (já vou falar disso) sadomasoquista, um dominador, uma prática sexual e estilo de vida introduzido por E. L. James no livro buscando lhe dar um ar adulto. Conforme um vídeo que assisti, há uma definição da diferença entre Crepúsculo e 50 tons de cinza: no primeiro, as fãs aprendem a conquistar o benquisto galã Edward; em 50 tons de cinza, aprendem o que fazer com ele na cama.

Sem absolutamente motivo algum, ele decide que Anastasia Steele seria sua perfeita submissa. Há um problema aí: ela é virgem. Não tendo a mínima idéia do que seria sexo, Anastasia Steele não poderia ter a mínima idéia em seu imaginário limitado – que a autora tenta fomentar dando-lhe dois personagens interiores: sua consciência e sua "deusa interior" – do que seria ser uma submissa. No entanto, o charme magnético de Grey a faz caminhar um caminho sem volta, no qual os primeiros traços de sua sexualidade vão sendo definidos.

O livro trata-se basicamente da reafirmação de clichês cometidos pela autora de Crepúsculo sem o ar sobrenatural emprestado pelos vampiros e lobos; há a patética anulação da existência de Steele diante de Grey, e pasmem, a autora consegue fazer isso mesmo narrando na primeira pessoa da ingênua jovem e lhe emprestando ainda MAIS DOIS personagens. Você pode me perguntar: se Joaquim Manuel de Macedo podia fazer isso no Romantismo, porque E.L. James não pode?

Ora, por alguns básicos motivos. O primeiro deles é que o século 18 já passou, e a mulher já não se anula perante o homem. Ou pelo menos não deveria ser incitada a isso numa obra que bateu o recorde de mais vendido no espaço de uma semana. Sim, você leu direito. 50 tons de cinza foi o livro que mais vendeu numa semana desde 1998, quando os recordes começaram a ser registrados.

O segundo motivo é que E.L. James consegue ultrapassar as raias da Moreninha. Há um excesso de sublimação e afirmação da não-existência de Steele diante da magnitude de deus do Olimpo de Grey – e isso é tão inverossímil que o seu primeiro impulso é sacudir freneticamente o livro tentando fazer Steele esboçar uma reação – qualquer que seja – que não "Ai, ele é lindo" ou "ai, quero foder com ele".

Numa época onde a mulher era socialmente submissa ao homem, isso seria perfeitamente válido. Mas Grey chega a qualquer limite absurdo que seu dinheiro possa comprar – como perseguir a garota quando esta vai visitar sua mãe – e o pior de tudo é que Steele se compraz disso. As relações deles, longe de um acordo mútuo e consensual que acontece numa relação sadomasoquista, são mais parecidas com algo como um estupro mais ou menos concedido por uma garota que não entende de verdade o que está acontecendo – apenas sente que está perdidamente apaixonada por ele.

Desculpe pelas expressões menos eufemistas – que acredite, são mais obscenas que o livro em si. Uso-as numa tentativa de expor não apenas meu desgosto pela total falta de conteúdo da história, mas também por acreditar que elas expõe argumentos que vão além do: isso é uma droga. Embora seja.

O recurso pífio de tentar imprimir a confusão irritante e perene de Steele através de sua consciência e sua deusa interior, que "pensam" de maneira completamente diferente da protagonista falha não só por não atingir o objetivo como também por imprimir confusão ao texto – irônico né – que fica ainda mais mal-escrito. Não há uma única palavra mais exigente no léxico do texto. As cenas de sexo são tão mal descritas que Sidney Sheldon, o VERDADEIRO escritor de pornô da mamãe se revira no túmulo. E olha que Sidney Sheldon, apesar da questionabilidade de suas novelas, consegue ser infinitamente mais interessante. Até a coleção da Sabrina consegue atingir melhor o propósito (se é que você me entende) melhor do que E.L. James. Revelando aqui com exclusividade, uma das concorrentes ao cargo de nova indicadora reafirma (ou afirma) meu pensamento ao responder o questionário da página: o livro não consegue nem ser sexualmente excitante.

Não há qualquer importância nos demais personagens – nem no livro e nem no mundo de Steele, que apesar de surtos ocasionais, volta à mesma pamonhice que Grey lhe provoca, ao aviso de um email na caixa de entrada ou qualquer coisa assim. Sim, metade do livro é narrado através de emails; o que seria um recurso interessante perdido na maré de erros se não fosse seu conteúdo totalmente inverossímil.

Um outro viés de crítica do livro é seu próprio tema: uma relação sadomasoquista. É uma pena desavisar as senhorinhas de 40 anos, mas E.L. James vos enganou: não há sadomasoquismo algum na triologia. O que há é um "amarra-e-bate" de um cara neurótico e de uma garota inocente, que nem mesmo ao firmar um relacionamento "sadomasoquista" consegue acertar nos princípios da prática.

Primeiro porque esta não é uma prática de desavisados. No sadomasoquismo da vida real, a relação é um jogo consensual, onde cada um dos participantes tem total domínio do papel que lhe cabe; diferentemente do livro, que reafirma esteriótipos: o dominador como uma pessoa egoísta, cujo interesse sexual é fruto de uma perversão na vida passada e a submissa como uma pessoa anulada e sem domínio algum de seu corpo e subjetividade sexual.

Há igual valor entre dominador e submissa no jogo real: cada um depende do outro para obtenção de seu gozo; o que difere de E.L. James, que propõe uma garota que passa a denegrir-se ao erguer o dominador. A prática sadomasoquista – e aqui eu não defino em nenhum momento suas vertentes diferentes – passa por um criterioso período de ensino, respeito entre as partes e total consciência do que se faz; o que não ocorre em momento algum da trama.

A verdade é que a razão do sucesso do livro é justamente refletir um traço reprimido em seu público: a sexualidade da mulher de meia idade que o lê. Num mundo onde as damas foram ensinadas a entender seu próprio desejo sexual como um pecado, num mundo onde uma esposa não sabe o que é sexo oral e aceita calada que seu marido, insatisfeito pela própria insatisfação da esposa, busque uma fonte de sexo alternativa e por fim num mundo onde uma mulher admitir que o sexo é antes do homem do que de si própria, um livro que retrata as descobertas sexuais de uma jovem que exatamente se ajusta a esses padrões sexuais cai em cheio no gosto da população de leitoras do bestseller. Steele é a possibilidade de um escape, onde milhares de mulheres cuja vida sexual é um desastre a vêm como sortuda por encontrar um homem que a deseja e que não reprime o desejo da própria Steele.

Há centenas de fontes que analisam o sadomasoquismo não como uma perversão esteriotipada (da sociedade) nem como um jogo de amarra-e-bate sem consequências (como no livro) – mesmo fontes científicas. Há ainda vários livros que vem desde o século 19 que falam dessa mesma prática: cito O Marquês de Sade, que não fala de sadomasoquismo na forma atual mas fala do sadismo e do masoquismo enquanto idéias chocantes e surpreendentemente avançadas para o contexto social e religioso da época; ainda, os livros A História de O e Pamela, sendo o primeiro exatamente o livro que você deve ler se quer realmente ler sobre uma relação de dominação, submissão e sexualidade.

A História de O conta a história da jovem O (hehe), que levada por seu amante a um castelo onde ensinam-se mulheres a serem escravas disponíveis a mando do senhor, encontra-se sem nenhuma confusão na prática e embarca pela jornada onde seu prazer vem do prazer do dominador – sem jamais perder a consciência de que manda em si e naqueles que a dominam.

Ficam as dicas. Falar de sexualidade não é falar de uma mulher que se apaga, senhoras – mantenham isso em mente.

A única coisa que sou obrigada a admitir que é boa no livro é o desenterro de compositores clássicos para o público leigo - e as músicas escolhidas são boas, embora neste contexto tão lamentável.

Crítica da Amanda. A resenha do Aion sai amanhã - esses meninos estão mui relapsos essa semana.

[you see, but you don't, you never observe]

Nenhum comentário: