quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Forrest Gump - Winston Groom



"My name is Forrest. Forrest Gump."

A obra inteira é uma viagem. Uma viagem através da mente de Forrest. Uma viagem histórica por uma América da Guerra Fria, da corrida espacial, da guerra do Vietnã, do surgimento do movimento hippie. Uma história de um sujeito que via o mundo de uma forma completamente diferente que os outros viam, e ele sabia disso.

Forrest Gump é um sujeito um tanto quanto retardado, e segundo o próprio, ser retardado não é nenhuma caixa de chocolates. Seu QI é baixo, e durante e infância sua mãe larga mão de muita coisa pra poder colocar o filho em uma escola decente, e não em uma de retardados. Infelizmente, o plano não dá muito certo. Mas, apesar de ser meio, digamos assim, "lento", Forrest Gump possui algumas capacidades imensas, como por exemplo, uma extrordinária capacidade lógica, fazendo-o jogar xadrex e resolver problemas complexos de matemática como ninguém. Há também a extrema capacidade musical de Forrest, e também sua capacidade atlética, que o faz ser um dos jogadores mais importantes do time de futebol americano da Universidade. Forrest também possui outras capacidades que são maiores que qualquer outra coisa, que são as capacidades de ver as coisas com os olhos que ninguém as vê, a capacidade de sonhar e realmente levar a sério o sonho, o máximo que puder. Forrest encontra o fantástico em cada pedaço da sua trajetória incrível, a capacidade do amor e da certa ingenuidade que olha para tudo. um mundo completamente diferente se encontra através dos olhos de Forrest Gump.

A vida de Forrest Gump acontece junto com os principais acontecimentos da história dos Estados Unidos do século XX, e o autor utiliza Forrest como algo para uma visão completamente inocente e cinica sobre o que foi aquela explosão de eventos pós Segunda Guerra Mundial. Forrest vai pra guerra, toca em bandas hippies, vai pro espaço, conhece presidente americanos (que são mostrados de forma cômica como idiotas), é lutador, é jogador de ping pong, vira empresário do ramo de camarões, é jogador de xadrez. Enfim, simplesmente uma fábula fantástica. E não posso deixar de esquecer que no fundo disto há uma história de amor da maneira mais sincera e ingenua possível. Jenny. Apesar de ter uma vida como qualquer um no mundo gostaria de ter, da forma mais intensa, louca e emocionante, Forrest ainda possuia sonhos, e um deles era poder ficar plenamente com Jenny. Mas sempre acontece algum evento após que faz Forrest revirar totalmente a sua vida e ir parar em outro canto do país ou do mundo. Entendem o que quero dizer?

Eu não poderia de deixar de fazer um pequeno paralelo com o filme, e devo dizer: Ambos são ótimos. Não, meu caro, o livro não é a mesma coisa do filme. Por sinal, o filme e o livro são bem diferentes. Não posso mentir, o livro é bem mais completo que o filme. Possui muito mais eventos, e as histórias e personagens desenrolam-se de maneira bastante diferente do filme. Mas o filme não perde a essência de Forrest Gump, e isso é o mais importante de tudo. O filme é simplesmente genial, assim como o livro. Não tem como dizer que o livro é melhor que o filme, ou ao contrário. A essência é a mesma, a genialidade e maestria são do mesmo tamanho. Mas se você, que assim como eu, é um adepto sem fronteiras daquele maravilhoso filme, não deixe mesmo de ler o livro, afinal, a vida é uma caixinha de chocolates, você nunca sabe o que vai encontrar.

"Vou dizer uma coisa: ser idiota não é nenhuma caixa de chocolates. As pessoas riem, perdem a paciência, são mesquinhas com você. Dizem que se deve ser atencioso com deficientes, mas vou dizer uma coisa: nem sempre é assim. Mas não me queixo, porque levei uma vida muito interessante por assim dizer.
Tenho sido um idiota desde que nasci. Meu QI está próximo de 70, o que me define, segundo eles. É provável que eu seja quase um imbecil ou, talvez, um retardado, mas, pessoalmente, prefiro pensar em mim mesmo como um débil mental, ou algo assim -e não um idiota-, porque quando as pessoas pensam em idiota, é certo pensarem naqueles idiotas mongolóides -aqueles que têm os olhos juntinhos como chineses, e babam à beça, e brincam com eles mesmos.
Bem, eu sou lento, disso não há dúvida, mas provavelmente sou mais inteligente do que as pessoas imaginam, porque o que se passa na minha mente é uma visão bem diferente da que vêem. Por exemplo, posso pensar coisas muito bem, mas quando tento dizer ou escrever, elas saem como uma espécie de gelatina, ou coisa parecida. Vou mostrar o que quero dizer.
Outro dia, eu descia a rua e um homem trabalhava em seu quintal. Ele tinha um monte de arbustos para plantar e me disse: "-Forrest, quer ganhar um dinheirinho?" - e eu disse: "-Ã-hã-", e então ele me põs para remover a sujeira. Foram uns dez ou doze carrinhos de sujeira, na hora mais quente do dia, transportando a torto e direito. Quando acabaei, ele tirou um dólar do bolso. Eu devia mesmo é ter ficado com muita raiva por causa do baixo pagamento, mas em vez disso, peguei o maldito dólar e tudo que disse foi "obrigado", ou algo pateta parecido e continuei a descer a rua, enrolando e desenrolando o dólar na mão, me sentindo um idiota.
Percebem o que quero dizer?"

That's all, folks!

Indicação do Luiz A. Jr.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

On the road - Jack Kerouac



"Eu não tenho nada para oferecer a ninguém, exceto minha própria confusão”.

Depois de algumas semanas recomendando algumas obras um pouco mais desconhecidas para alguns (e nem tanto para outros), volto com algo diferente, e de certa forma, até meio amedrontador. Imagino que boa parte aqui já leu On The Road, e a outra parte, ao menos ouvir falar. E deve ter ouvido falar bem. On The Road possui uma fama por ser a bíblia da geração beat (sim sim, aquela geração que além de Kerouac, teve caras como Allen Ginsberg ou William Burroughs). Movido a jazz e velocidade, On The Road é sem dúvidas um dos livros mais aclamados do último século, e é até hoje best-seller no mundo todo. Bem, chega desse blá blá blá clichê.

Alguns dizem que Kerouac escreveu On The Road em 3 semanas. Completamente entorpecido e escrevendo alucinadamente. O livro teve anos de rejeição antes de ser lançado, e dizem que durante a revisão dos quilômetros de papel, toda a gramática e ortografia do livro teve de ser revisada, pois Kerouac não se preocupava muito com vírgulas ou pontos.

Vamos a uma pequena sinopse. Bem na realidade, vou deixar uma sinopse realmente pequena e sucinta, pois esse não é meu objetivo na resenha. Quero deixar impressões. Sinopses podem ser encontradas em qualquer lugar na internet.

Sal Paradise vive com sua tia em Nova York. Universitário e tentando ser escritor, passa por algumas crises de inspiração, e percebe que realmente precisa de experiências neste sentido. Um dia, através de seus amigos, conhece um maluco de Denver chamado Dean Moriarty. Dean é um sujeito insano, rápido, enérgico e magnético. Um cara realmente faz a coisa acontecer. Seu personagem é totalmente intenso, espontâneo e até indiferente. É coberto por urgência e agitação. Desta forma, os dois rapazes com sua ânsia de experiências, deixam Nova York para atravessarem os Estados Unidos (e depois voltar, e atravessar novamente, enfim), e boa parte da jornada feita apenas de caronas. On The Road não é apenas uma viagem pelo país, e sim uma viagem de autoconhecimento.

Em uma linguagem simples, rápida e direta, o livro é uma completa transgressão. Possui um magnetismo incrível. Em cinco viagens descobrimos o estilo de vida do personagem, da geração em si. Coisas desenroladas e temporais, você realmente adentra na onda daquilo e deixa-se levar pelo jazz, bebidas e sexo. Sem falar que possui algo realmente especial, que é de acordo com que Sal vai conhecendo pessoas em sua jornada, ele ouve histórias diferentes, diversificadas. Cada história, cada lugar, cada ser eterno. Sobre qualquer coisa, On The Road significa liberdade, amizade, desprendimento de qualquer tipo de rotina imposta. A ânsia por viver, por ter experiência e simplesmente soltar um "Porra, dane-se, vamos fazer". Alguém me disse que sua narrativa não é como a de um livro, e sim de alguém que está em um bar contando alguma história. É, eu devo concordar com isso. O livro te traz uma impressão que o mundo não gira em seu redor, e aquela vida fechada que você tem, não significa o que realmente existe aí fora. Como diria a frase de Allen Saunders, que depois fora cantada John Lennon (sujeito que foi extremamente influenciado pela geração de Keroauc): "A vida é o que acontece enquanto você está ocupado fazendo outros planos".

"O que me importava? Eu era um jovem escritor e tudo o que eu queria era cair fora"

Poucos sabem, mas On The Road, em seu manuscrito original (que foi lançado pela editora L&PM recentemente, e possui 140 páginas a mais que o livro primeiramente lançado) foi utilizado o nome real dos personagens. Sim, On The Road é uma história real, e além disto, muito de seus personagens são conhecidos, inclusive dois são escritores de sucesso. Por exemplo, separei aqui o nome real de alguns dos principais personagens: Sal Paradise é o próprio Jack Kerouac. Dean Moriarty trata-se de Neal Cassady, que além de amigo e ícone, apareceu em poemas e músicas. Carlo Max não é nada menos que o renomado poeta Allen Ginsgberg, e Old Bull Lee também é o famoso escritor William S. Burroughs.

São inúmeras as influências que On The Road foi para toda uma geração. Inspirou caras como Bob Dylan, Jim Morrison, Hunter Thompson. Segundo Bob Dylan, On The Road é o livro que mudou a sua vida e a de todo mundo, e também foi o livro que leu antes de fugir de casa. Ray Manzarek, tecladista da banda The Doors, diz que: "Se Jack Kerouac nunca tivesse escrito On The Road, The Doors nunca teria existido." A banda Beastie Boys cita On The Road algumas vezes, quando na música 3-Minute Rule é feita uma referencia ao livro. A livro também influenciou na letra da música "High Plains Drifter", da mesma banda. Na televisão, no episódio "Fran Tarkenton" da série Weeds, há diversas referencias a Kerouac e sua obra.

Para quem não sabe, o livro possui uma adaptação cinematográfica, mas, sinceramente, eu a considero totalmente dispensável. Digo, não é tão ruim assim, mas o filme não capta nem 1/3 da essência do livro. Apesar do diretor ser o brasileiro Walter Salles (que é um cara que gosto de seus filmes), eu já sabia que iria ser assim. Não tem como captar On The Road sem ter ao menos uns 3 ou 5 filmes, um para cada viagem. A única coisa que achei realmente boa foram os atores, pois acho que fizeram um trabalho excepcional. Souberam muito bem interpretar os personagens do livro e seus modos. De qualquer forma, para quem tiver interesse, o filme tem o mesmo nome do livro.

Não sei muito bem o que dizer a vocês no final dessa resenha.

Foi uma das resenhas mais completas que já fiz, e há muito tempo estava a prolongando aqui. Nunca é fácil escrever sobre On The Road.

Minha vontade é de deixar pelo menos uns 15 trechos e aforismos do livro aqui.

"Porque pra mim pessoas mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo agora, aqueles que nunca bocejam e jamais falam chavões, mas queimam, queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício explodindo como constelações"

That's all, folks!

Indicação do Luiz A. Jr.

Me desculpe por não ter postado na semana passada. Rolou uns imprevistos aí.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

O Pagador de promessas - Dias Gomes


"Eu prometi levar a cruz até dentro da igreja, tenho que levar. Andei sete léguas. Não vou me sujar com a santa por causa de meio metro." 

Bem por motivos de força maior, acabei atrasando a resenha de ontem. Prometo, que depois do atraso, não vou me ater aos rodeios. Essa semana eu escolhi falar de outra peça de teatro, e também de outro escritor brasileiro, digamos assim, mais contemporâneo. O dramaturgo da vez é o excelente Dias Gomes.
Como eu prometi, não vou fazer rodeios, e não vou falar da vida do Dias Gomes, por dois motivos, primeiro porque este é o único livro dele que eu li. Segundo, porque ele foi inevitavelmente mais conhecido por seus trabalhos na televisão, e eu poderia falar mil horas a respeito dele, mas fugiria até do tema desta página.
O pagador de promessas, é uma peça de teatro, que conta a história de Zé do Burro, um fazendeiro, por vezes meio turrão, mas que ganha a nossa simpatia ao longo da história. Zé, mora com a esposa Rosa em uma fazenda, e seu burro, seu amado burrico acaba adoecendo. Zé então promete a Iansã (do Candomblé, equivalente a Santa Barbara do Catolicismo) que se o animal se recuperar, vai levar uma cruz, a pé, até a igreja de Santa Barbara.
O animal de recupera, e Zé precisa cumprir sua promessa. A história começa efetivamente com Zé e Rosa chegando em frente a igreja pela manhã, quando falta pouco para Zé terminar de cumprir o que veio fazer.

Pois bem, Dias Gomes, aqui, ao apresentar este enredo relativamente simples, quer discutir diversas coisas comuns a sociedade brasileira, a devoção de todos a santos, e principalmente a intolerância da Igreja Católica. Ao chegar, Zé recebe uma negativa do padre, o religioso não aceita que Zé coloque sua cruz dentro da igreja de Santa Barbara. O motivo? Diz o Padre, que Zé fez a promessa a Iansã, e não a Santa Barbara, o que o padre não sabe, e o que o texto trabalha muito bem, é que Iansã e Santa Barbara, são exatamente a mesma santa, equivalendo para religiões diferentes, aqui se faz presente não só a figura da intolerância, mas o Padre reflete o preconceito de muitas religiões para outras, o padre reflete a opinião de vários brasileiros, que não respeitam, não conhecem, e por não conhecerem saem dizendo que a religião do outro não presta, confundem tudo, e isto é trabalhado muito bem por Dias Gomes.

Zé não desiste, ele precisa cumprir sua promessa, o burro sobreviveu, seu animal favorito está vivo, Zé tem a determinação de colocar a cruz dentro da igreja, e conseguir cumprir a sua promessa, e depois seguir com a sua vida, é somente isso que o protagonista quer. Ele por vezes não apresenta nenhum tipo de outra vontade, ou desejo, ele apenas quer cumprir uma promessa. A intolerância do Padre é tamanha, que ele fecha a porta da igreja a Zé, que decide fazer campana na frente do local, até conseguir cumprir o que veio cumprir.

A movimentação no local, traz outros personagens a história, como Bonitão, que acaba se envolvendo com Rosa, e esta trai seu marido. E a também a chegada de um repórter, que se aproveita da situação de Zé, para noticias coisas bombásticas em seu jornal. O repórter é um dos mais bem delineados personagens, ele aparentemente está muito preocupado com a situação de Zé, se compadece do drama do protagonista, está determinado a ajuda-lo, aparentemente, no entanto, tudo que ele quer é se aproveitar da ingenuidade do personagem para aí, ter um excelente furo de reportagem e fazer a festa com a vendagem do seu jornal no dia seguinte, O repórter, é o retrato de uma mídia brasileira, o drama de espetáculo, se aproveitar da desgraça alheia pra fazer barulho e vender mais jornal. Tema atemporal vide o tratamento que a mídia dá a casos como o da menina Isabela Nardoni...

A policia também aparece na peça, e outros sertanejos que entendem o pedido de Zé do Burro, aqui há ainda o choque entre um Brasil urbano e um Brasil rural, e a também a presença da diversidade religiosa, o que confunde a cabeça de Zé do Burro, que fez uma promessa a Santa Barbara, num templo de Iansã. Ele prometeu colocar a cruz dentro da igreja de Santa Barbara, e não quer discussões, ele veio para fazer isto, e só vai sossegar quando o fizer, nem que seja a última coisa que ele faça em sua vida.
Não vou falar mais nada, nem do enredo, nem de nada, nem das criticas sociais muito bem trabalhadas pela peça. Apenas quero dizer, que O pagador de promessas, tem qualidade literária, e excelentes diálogos, como livro, te puxa numa teia da primeira a última página, mesmo que você não seja religioso – ou até nem acredite em Deus – você se pega torcendo por Zé do Burro, você quer que ele consiga o seu intento, que ele possa viver a sua vida, e consiga cumprir a promessa.

Ainda no tempo do cinema em preto e branco, em 1962, foi realizada uma versão cinematográfica da obra, com o ator Leonardo Villar vivendo o personagem Zé do Burro, o filme é praticamente uma representação na telona, igual à peça de teatro de Dias Gomes, o que dá ao filme todos os elogios que eu vim fazendo ao livro, então vale a muito a pena ver.
Como eu sou legal aqui vai o link para o filme, que está disponível completo e online para você ver:http://migre.me/dnJQa , O referido filme recebeu diversos prêmios e uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro.
O livro e o filme são fantásticos, vale muito a pena conferir ambos.
É isso aí, e mais uma vez perdoem o meu atraso.

“REPÓRTER (Entra acompanhado do Fotógrafo) Lá está ele.(Vai a Zé, enquanto o Fotógrafo circula à procura de ângulos. O Repórter é vivo e perspicaz. Dirige um cumprimento entusiasta a Zé-do-Burro) Bom dia, amigo! (Aperta efusivamente a mão de Zé-do-Burro) Parabéns! O senhor é um herói.ZÉ (com estranheza) Herói?REPÓRTER (Com entusiasmo) Sim, sete léguas carregando esta cruz. (Calcula o peso) Pesada, hem? Sete léguas... quarenta e dois quilômetros. A maior marcha que eu fiz foi de vinte e quatro quilômetros, no Serviço Militar. E o fuzil não pesava tanto assim. (Ri, mas seu riso murcha como um balão, ante o ar de desconfiança de Rosa e Zé-do-Burro) Oh, desculpe... eu sei que o senhor fez uma promessa. A comparação não foi muito feliz... (Para o Fotógrafo) Carijó, pode bater uma chapa. (Posa de frente para Zé-do-Burro, de caderno e lápis em punho) Finja que está falando comigo.ZÉ (Começa a impacientar-se) Fingir que estou falando... pra quê?REPÓRTER E dentro de algumas horas o Brasil inteiro vai saber. O senhor vai ficar famoso.ZÉ (Contrariado) Mas eu não quero ficar famoso, eu quero...ROSA (Interrompe, em tom de repreensão) Que é isso, Zé. Seja mais delicado com o moço. Ele é da gazeta...REPÓRTER A que horas chegaram aqui?ROSA Antes das cinco.REPÓRTER Fizeram o percurso então em 24 horas. Com uma cruz que deve pesar?... (Olha interrogativamente para Zé-do-Burro)ZÉ (Contrariado) Não sei, não pesei.REPÓRTER Por menos que pese, é um “record”! Sob este aspecto, podemos considerar umgrande feito esportivo. Uma prova de resistência física... (para Rosa) e de dedicação...Rosa sorri, envaidecida, sentindo-se heroína também.REPÓRTER Mas como nasceu a idéia dessa... peregrinação? (As perguntas são feitas a Zé-do-Burro, mas este recusa-se a respondê-las).ROSA Não nasceu idéia nenhuma. O burro adoeceu, ia morrer - ele fez promessa pra Santa Bárbara.REPÓRTER O burro? Que burro?ROSA O Nicolau.ZÉ (Irritado) Por quê? O senhor também vai achar que o meu burro não vale uma promessa?REPÓRTER Não, de modo algum... eu... eu apenas não sabia... então, tudo isso... quarenta e dois quilômetros... a cruz... tudo por causa de um burro... (Repentinamente, antevendo o Interesse que despertará a reportagem) Fabuloso!ROSA E não foi só isso. Ele prometeu também repartir o sítio com aquela cambada de preguiçosos.ZÉ Que preguiçosos. Gente que quer trabalhar e não tem terra.REPÓRTER Repartir o sítio... diga-me, o senhor é a favor da reforma agrária?ZÉ (Não entende) Reforma agrária? Que é isso?”

Indicação do Aion.
[chega de chegar, depressa é muito devagar]

50 (brinks) RAZÕES PELAS QUAIS VOCÊ NÃO DEVERIA GOSTAR DE 50 TONS DE CINZA



Sim, amados leitores, é tempo de falar desse extremo ao qual o mercado editorial chegou. A senhora dos seus 40 anos que vi no ônibus lendo que me perdoe, mas o seu suspiro pouco ortodoxo que lhe escapou ao virar uma página foi a gota d'água.

Eu vinha suportando muito bem a repulsa a 50 tons de cinza, porque ora, todos aqueles de quem afortunadamente me cerquei sentem-se da mesma forma. Mas há um momento em que uma página séria como a Posso te indicar um livro? não pode deixar de se manifestar e parece ser esse o momento correto. Surpreendentemente, aviso que esta será uma crítica comprida – a despeito da pouquíssima quantidade de coisas que se pode delinear do livro.

Seria importante mencionar que o livro é uma fanfiction da série Twilight, para que se possa esclarecer o perfil dos personagens (afinal, nem isso é idéia original da brilhante E.L. James). Mas eu gostaria de partir do próprio livro, sem estabelecer paralelos. À maneira da minha crítica de Jogos Vorazes, vou me ater apenas ao primeiro livro, uma vez que o texto ficaria demasiado extenso e complexo. E prometo que acabei os avisos da paróquia aqui.

Nós temos Christian Grey, jovem empresário bilionário, que nas palavras de E.L. James pretendia ser um pedaço de rapaz, e Anastasia Steele, jovem garota desajeitada, virgem, tímida e cursando o curso de Letras. Aqui temos o perfeito casal clichê que vem sendo retomado desde o romantismo, sendo ele dotado de todas as qualidades imagináveis que se desejaria num homem e ela basicamente sem nenhum atrativo. Nenhum. Nenhum. Nenhum. Ela gosta de ler, mas vamos pular essa parte para manter as conveniências.

Ele é um pretenso (já vou falar disso) sadomasoquista, um dominador, uma prática sexual e estilo de vida introduzido por E. L. James no livro buscando lhe dar um ar adulto. Conforme um vídeo que assisti, há uma definição da diferença entre Crepúsculo e 50 tons de cinza: no primeiro, as fãs aprendem a conquistar o benquisto galã Edward; em 50 tons de cinza, aprendem o que fazer com ele na cama.

Sem absolutamente motivo algum, ele decide que Anastasia Steele seria sua perfeita submissa. Há um problema aí: ela é virgem. Não tendo a mínima idéia do que seria sexo, Anastasia Steele não poderia ter a mínima idéia em seu imaginário limitado – que a autora tenta fomentar dando-lhe dois personagens interiores: sua consciência e sua "deusa interior" – do que seria ser uma submissa. No entanto, o charme magnético de Grey a faz caminhar um caminho sem volta, no qual os primeiros traços de sua sexualidade vão sendo definidos.

O livro trata-se basicamente da reafirmação de clichês cometidos pela autora de Crepúsculo sem o ar sobrenatural emprestado pelos vampiros e lobos; há a patética anulação da existência de Steele diante de Grey, e pasmem, a autora consegue fazer isso mesmo narrando na primeira pessoa da ingênua jovem e lhe emprestando ainda MAIS DOIS personagens. Você pode me perguntar: se Joaquim Manuel de Macedo podia fazer isso no Romantismo, porque E.L. James não pode?

Ora, por alguns básicos motivos. O primeiro deles é que o século 18 já passou, e a mulher já não se anula perante o homem. Ou pelo menos não deveria ser incitada a isso numa obra que bateu o recorde de mais vendido no espaço de uma semana. Sim, você leu direito. 50 tons de cinza foi o livro que mais vendeu numa semana desde 1998, quando os recordes começaram a ser registrados.

O segundo motivo é que E.L. James consegue ultrapassar as raias da Moreninha. Há um excesso de sublimação e afirmação da não-existência de Steele diante da magnitude de deus do Olimpo de Grey – e isso é tão inverossímil que o seu primeiro impulso é sacudir freneticamente o livro tentando fazer Steele esboçar uma reação – qualquer que seja – que não "Ai, ele é lindo" ou "ai, quero foder com ele".

Numa época onde a mulher era socialmente submissa ao homem, isso seria perfeitamente válido. Mas Grey chega a qualquer limite absurdo que seu dinheiro possa comprar – como perseguir a garota quando esta vai visitar sua mãe – e o pior de tudo é que Steele se compraz disso. As relações deles, longe de um acordo mútuo e consensual que acontece numa relação sadomasoquista, são mais parecidas com algo como um estupro mais ou menos concedido por uma garota que não entende de verdade o que está acontecendo – apenas sente que está perdidamente apaixonada por ele.

Desculpe pelas expressões menos eufemistas – que acredite, são mais obscenas que o livro em si. Uso-as numa tentativa de expor não apenas meu desgosto pela total falta de conteúdo da história, mas também por acreditar que elas expõe argumentos que vão além do: isso é uma droga. Embora seja.

O recurso pífio de tentar imprimir a confusão irritante e perene de Steele através de sua consciência e sua deusa interior, que "pensam" de maneira completamente diferente da protagonista falha não só por não atingir o objetivo como também por imprimir confusão ao texto – irônico né – que fica ainda mais mal-escrito. Não há uma única palavra mais exigente no léxico do texto. As cenas de sexo são tão mal descritas que Sidney Sheldon, o VERDADEIRO escritor de pornô da mamãe se revira no túmulo. E olha que Sidney Sheldon, apesar da questionabilidade de suas novelas, consegue ser infinitamente mais interessante. Até a coleção da Sabrina consegue atingir melhor o propósito (se é que você me entende) melhor do que E.L. James. Revelando aqui com exclusividade, uma das concorrentes ao cargo de nova indicadora reafirma (ou afirma) meu pensamento ao responder o questionário da página: o livro não consegue nem ser sexualmente excitante.

Não há qualquer importância nos demais personagens – nem no livro e nem no mundo de Steele, que apesar de surtos ocasionais, volta à mesma pamonhice que Grey lhe provoca, ao aviso de um email na caixa de entrada ou qualquer coisa assim. Sim, metade do livro é narrado através de emails; o que seria um recurso interessante perdido na maré de erros se não fosse seu conteúdo totalmente inverossímil.

Um outro viés de crítica do livro é seu próprio tema: uma relação sadomasoquista. É uma pena desavisar as senhorinhas de 40 anos, mas E.L. James vos enganou: não há sadomasoquismo algum na triologia. O que há é um "amarra-e-bate" de um cara neurótico e de uma garota inocente, que nem mesmo ao firmar um relacionamento "sadomasoquista" consegue acertar nos princípios da prática.

Primeiro porque esta não é uma prática de desavisados. No sadomasoquismo da vida real, a relação é um jogo consensual, onde cada um dos participantes tem total domínio do papel que lhe cabe; diferentemente do livro, que reafirma esteriótipos: o dominador como uma pessoa egoísta, cujo interesse sexual é fruto de uma perversão na vida passada e a submissa como uma pessoa anulada e sem domínio algum de seu corpo e subjetividade sexual.

Há igual valor entre dominador e submissa no jogo real: cada um depende do outro para obtenção de seu gozo; o que difere de E.L. James, que propõe uma garota que passa a denegrir-se ao erguer o dominador. A prática sadomasoquista – e aqui eu não defino em nenhum momento suas vertentes diferentes – passa por um criterioso período de ensino, respeito entre as partes e total consciência do que se faz; o que não ocorre em momento algum da trama.

A verdade é que a razão do sucesso do livro é justamente refletir um traço reprimido em seu público: a sexualidade da mulher de meia idade que o lê. Num mundo onde as damas foram ensinadas a entender seu próprio desejo sexual como um pecado, num mundo onde uma esposa não sabe o que é sexo oral e aceita calada que seu marido, insatisfeito pela própria insatisfação da esposa, busque uma fonte de sexo alternativa e por fim num mundo onde uma mulher admitir que o sexo é antes do homem do que de si própria, um livro que retrata as descobertas sexuais de uma jovem que exatamente se ajusta a esses padrões sexuais cai em cheio no gosto da população de leitoras do bestseller. Steele é a possibilidade de um escape, onde milhares de mulheres cuja vida sexual é um desastre a vêm como sortuda por encontrar um homem que a deseja e que não reprime o desejo da própria Steele.

Há centenas de fontes que analisam o sadomasoquismo não como uma perversão esteriotipada (da sociedade) nem como um jogo de amarra-e-bate sem consequências (como no livro) – mesmo fontes científicas. Há ainda vários livros que vem desde o século 19 que falam dessa mesma prática: cito O Marquês de Sade, que não fala de sadomasoquismo na forma atual mas fala do sadismo e do masoquismo enquanto idéias chocantes e surpreendentemente avançadas para o contexto social e religioso da época; ainda, os livros A História de O e Pamela, sendo o primeiro exatamente o livro que você deve ler se quer realmente ler sobre uma relação de dominação, submissão e sexualidade.

A História de O conta a história da jovem O (hehe), que levada por seu amante a um castelo onde ensinam-se mulheres a serem escravas disponíveis a mando do senhor, encontra-se sem nenhuma confusão na prática e embarca pela jornada onde seu prazer vem do prazer do dominador – sem jamais perder a consciência de que manda em si e naqueles que a dominam.

Ficam as dicas. Falar de sexualidade não é falar de uma mulher que se apaga, senhoras – mantenham isso em mente.

A única coisa que sou obrigada a admitir que é boa no livro é o desenterro de compositores clássicos para o público leigo - e as músicas escolhidas são boas, embora neste contexto tão lamentável.

Crítica da Amanda. A resenha do Aion sai amanhã - esses meninos estão mui relapsos essa semana.

[you see, but you don't, you never observe]

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O Anatomista - Frederico Andahazi


Não sou daquelas que acha que os bons autores não deviam se popularizar. Acredito que todo autor, por mais heterogêneo que seja seu público, gostaria de ver sua obra rendendo frutos – afinal, é para isto exatamente que ele a publica. O argentino Frederico Andahazi colheu seus frutos não pelo sucesso de sua obra, mas sim pelos prêmios com que foi reconhecido no circuito literário de elite. O argentino rompe com facilidade o círculo europeu das grandes obras e numa manobra de ironia, escreve na América latina sobre uma ciência, época, e acontecimentos absolutamente européias.

Infelizmente, obra e autor permanecem lamentavelmente desconhecidos. Não conhecia até recentemente uma edição da LP&M Pocket, que tem mais visibilidade, mas Andahazi, publicado originalmente pela Relume Dumará permanece fadado às prateleiras dos sebos e aos leitores exigentes.

Ora, é hora de falar da obra. O argentino resgata os primórdios europeus da ciência médica com a anatomia num tempo de forte influência da Igreja Católica e principalmente da Inquisição.Neste cenário, Mateo Colombo, um catedrático da Universidade de Pádua e anatomista descobre, à semelhança de seu xará, sua própria América.

O anatomista, que acontece de estar apaixonado pela puta mais refinada de toda a Europa, cujo nome é Mona Sofia, louco pela impossibilidade de possuir seu amor, se dedica a buscar um meio que lhe dê o controle da vontade da mulher. Por acaso, ao atender uma beata conhecida como Inês de Tremolinos, ele descobre o Amor Veneris, o órgão do prazer feminino, cujo controle sobre a mulher é notável – e então Mateo torna-se o possuidor do segredo que permite controlar todas as mulheres com quem repete a experiência de descoberta. Publica o resultado de suas pesquisas em sua Re de anatomica, um compêndio de anatomia, cujo impacto sobre a Igreja Católica e conteúdo herético o fazem réu de um processo no Tribunal do Santo Ofício.

Salvo do processo por um milagre, ele, de posse de sua América, o Amor Veneris, Mateo Colombo corre em busca de sua puta amada. No entanto, o tempo dele já havia acabado.

Não, não vou dar spoiler do livro e queria mesmo que você o lesse, pequeno forasteiro. Ele é não só um tributo à literatura que foge do estilizado triângulo América-Europa-Brasil, como é também tem um estilo de construção e narração formidáveis.

Narrado numa linguagem ágil, mas quase arcaica, quase num documento de época, pecaria se não fosse a graça com que Frederico recobre seu texto. Aqui e ali há um motivo para um risinho e um sorrisinho, há um jogo de palavras e de construção da imagem gráfica do texto que o deixa com uma cara sensacional. Há unidades repetidas que enfatizam aquilo que se desse enfatizar, aquilo que deve passar ignorado fica e o resultado é uma qualidade de escrita assombrosa. Há palavras que não se esperariam ver num texto como esse. Puta é repetido o tempo todo, bem como vara, mastro, amigo, ministro, - coleguinha, bróder, e pintinho amarelinho não tem, mas acho que deu pra entender. Um discurso divertido, sério. Um tesão (e que me perdoem o palavreado)

Não bastasse isso, O Anatomista ainda traz uma discussão extremamente relevante no mundo atual, que é a figura da mulher na sociedade desde a Igreja Católica, que a criminaliza na figura de figura de Eva. Com uma crítica sutil, mas facilmente notável, o autor combate com ironia o tema da proibição do prazer da mulher, sua utilização como objeto sexual e assim por diante.

Por meio da puta, da beata, e da Igreja, Frederico revelea uma habilidade sensacional em discutir esses assuntos, dando ao romance um aspecto TÃO real que você passa a não ter mais certeza se o que lê é ficção ou relato histórico.

Vale a dica.

"Foi durante sua breve estada em Veneza, no outono de 1557, que o anatomista conheceu MonaSofia. Isso ocorreu no palácio de certo duque, por ocasião da festa que o próprio anfitrião ofereceu asi mesmo em louvor ao dia do seu santo. Mona Sofia já era uma mulher adulta e experiente. Tinha quinze anos.
Em conseqüência, talvez, da declaração de Leonardo da Vinci de que não compreendia por que os homens se envergonhavam da sua virilidade e ”ocultavam o próprio sexo em vez de enfeitá-lo com toda a solenidade, como um ministro”, talvez por essa razão, naquele ano havia-se difundido entre os homens a moda de exibir e enfeitar com toda pompa os genitais. Quase todos os convidados,exceto os mais velhos, vestiam calças de tons claros que alardeavam as partes dos seus proprietários mediante o uso de umas faixas que se ajustavam na cintura e nas virilhas, de modo que ressaltassem suas virilidades. Aqueles que tinham motivos maiores para estar agradecidos ao Criador aceitaram aquela moda de muito bom grado.
[...]
Entre os múltiplos enfeites - que iam de uns adornos com pedrinhas emoldurando o ”ministro” a uns atavios de pérolas muito vistosas -, usava-se uma faixacom quatro ou cinco sininhos que delatavam o ânimo de ”sua senhoria”. Assim, as damas podiamsaber da aceitação que suscitavam entre os cavalheiros conforme tinissem os guizos.
[...]
A festa não estava ainda pela metade quando Mona Sofia entrou no salão. Não precisou ser anunciada. Seus dois escravos mouros ajudaram-na a descer da liteira junto ao vão da porta. Se até então três ou quatro mulheres eram as que incitavam a atenção de todos, a mais bela dentre elas não pôde evitar sentir-se uma entrevada, manca ou corcunda em comparação com a recém-chegada.Mona Sofia possuía uma estatura augusta. Usava um vestido aberto nas pernas até o começo das coxas. A seda transluzia perfeitamente todo o seu corpo. Os seios agitavam-se a cada passo nas bordas do decote, que exibia a metade do diâmetro dos mamilos. Em sua testa pendia uma esmeralda cujo objetivo não era outro senão deslustrar-se ante o resplendor dos seus olhos verdes.
Mona Sofia foi recebida por um verdadeiro carrilhão, uma centena de viris badaladas"

Indicação da Amanda

Seeya todos vocês.
[you see, but you don't observe]

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A menina que roubava livros - Markus Zusak


"EIS UM PEQUENO FATOVocê vai morrer."

Confesso: ignorei A Menina que Roubava Livros durante muito tempo e deliberadamente. De algum modo, antes mesmo de ler a sinopse julguei o livro pela capa (ou pela popularidade e o público predominantemente feminino e adolescente) e não parei pra ler uma história contada pela Morte.

O que foi um grande erro. Independentemente da sua maturidade literária, há uma série de elementos que fazem de A Menina que Roubava Livros um livro comovente e dificilmente igualável. Markus Zusak resgata duas coisas de fundamental importância e facilmente esquecidas por nós, quais sejam: a importância das palavras e a capacidade dessas mesmas palavras de construirem algo extremamente simples, mas poderosamente belo.

O lugar é a Alemanha nazista. A protagonista, Liesel Meminger, a roubadora de livros. A narradora, numa brilhante sacada do autor, é a própria Morte, que deve ter mais histórias pra contar do que qualquer um de nós. Precisamente, é a Morte num tempo em que estava realmente cotada.

Liesel está vindo para morar com seus novos pais adotivos, o adorável papai Hans de olhos prateados e a detestável (só por enquanto) mamãe Rosa, e é exatamente aí que vai sofrer, com olhos de criança, toda as consequências de uma detestável guerra. Faz amizade com um lutador judeu, escondido em seu porão, Max, sente na barriga o resultado do racionamento e joga futebol com os meninos da rua – quando não tem que frequentar a juventude hitlerista. Não julgo nada importante que se conte o enredo, até porque ele é percebido e descoberto na sua intimidade com o livro.

Gostaria apenas de ressaltar o quão comovente pode ser esquecer todo o vocabulário empolado, a ciência e o estudo pra se falar de um assunto que é tão humano. A Menina que Roubava Livros consegue resgatar sobre como palavras simples podem tornar tão cru aquilo de que se fala, sobre como a simplicidade consegue descrever tão bem aquilo que estamos acostumados a compreender com páginas e mais páginas.

A mensagem do livro é fazer você esquecer de fatos, dados, complexidade histórica sobre o imenso conflito e resgatar sua humanidade. Resgatar os momentos de bela simplicidade que florescem no meio de um imenso tempo de sangue. Através da visão de uma criança, narrada pela Morte, é possível embarcar tão profundamente que é impossível não se emocionar.

O autor constrói, por meio da Morte, um texto leve e de elementos dificilmente tão bem compilados, que deixa a leitura gostosa e fresca como um punhado de neve – posto que tão gelado que seu coração só irá descongelar depois de uma semana ou duas.

E nunca, nunca deixe de ler um livro narrado pela Morte.

"Um começo.Onde estão meus bons modos?Eu poderia me apresentar apropriadamente, mas, na verdade, isso não é necessário. Você me conhecerá o suficiente e bem depressa, dependendo de uma gama diversificada de variáveis. Basta dizer que, em algum ponto do tempo, eu me erguerei sobre você, com toda a cordialidade possível. Sua alma estará em meus braços. Haverá uma cor pousada em meu ombro. E levarei você embora gentilmente.Nesse momento, você estará deitado(a). (Raras vezes encontro pessoas de pé.) Estará solidificado(a) em seu corpo. Talvez haja uma descoberta; um grito pingará pelo ar. O único som que ouvirei depois disso será minha própria respiração, além do som do cheiro de meus passos.A pergunta é: qual será a cor de tudo nesse momento em que eu chegar para buscar você? Que dirá o céu?Pessoalmente, gosto do céu cor de chocolate. Chocolate escuro, bem escuro. As pessoas dizem que ele condiz comigo. Mas procuro gostar de todas as cores que vejo — o espectro inteiro. Um bilhão de sabores, mais ou menos, nenhum deles exatamente igual, e um céu para chupar devagarinho. Tira a contundência da tensão. Ajuda-me a relaxar."

Seeya todos vocês.
Indicação da Amanda.
[you see, but you don't, you never observe]

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

A Vida como ela é... – Nelson Rodrigues


Desde a minha segunda, talvez terceira resenha, aqui para a Posso te indicar um livro? tomei o costume, assim como a Amanda e o Junior, de fazer pequenas tradições, comuns a todas as resenhas, como vocês devem ter percebido. Todos nós terminamos a resenha com uma citação do livro indicado, e depois uma frase que se repete ao final de cada resenha. O Junior tem o costume de colocar o ano e a edição do livro resenhado, a Amanda, não se deixando levar pelos rodeios, vai direto ao ponto. Eu, por outro lado, antes do titulo do livro resenhado sempre trago uma frase, algo que remeta ao livro como um todo. Bem, quando decidi fazer a resenha que lhes apresento nessa semana, descobri que conseguir uma frase que remeta ao livro que estou resenhando como um todo foi impossível, e logo, vou abandonar essa tradição essa semana. E mais a frente, querido leitor, você vai entender porque esta simples frase, tradição semanal, não foi possível de ser completada.

Bem, antes de começar a resenhar, e você deve estar adorando chegar no segundo parágrafo onde eu não disse nada de produtivo, e agora deve estar querendo me matar, se acalme, meu lenga-lenga tem uma razão de ser, e agora que você se acalmou vou abrir um parênteses. Devo dizer que eu adoro centenários, aniversários de morte, e coisas desse tipo, de autores que eu gosto e infelizmente já se foram a muito tempo. Não, eu não sou dado a morbidez, mas essas ocasiões fazem com que os nomes dos referidos autores ganhem notoriedade, e por consequência, ocorrem relançamentos (ou lançamentos inéditos) de suas obras. O mesmo ocorre quando essas obras são lembradas por algum diretor de cinema, e aí meu caro, nós, os amantes dos originais vamos a falência...

Pois bem, com o centenário de Nelson Rodrigues, a editora Nova Fronteira trouxe às livrarias a obra em prosa do gênio dramaturgo, e este humilde senhor que vos escreve chegou a comprar o livro A Vida como ela é..., uma reunião de 100 crônicas que Rodrigues escreveu para o jornal A Última hora, a pedido de Samuel Wainer (informação que eu estou roubando descaradamente da orelha do livro). Nelson Rodrigues já era famoso nessa época, já havia presenteado o mundo com obras de alto valor critico, sem papas na língua, e mostrando coisas que a sociedade faz, mas por variados motivos teima em esconder.

Agora depois de três parágrafos, estou finalmente fazendo o que você acha que eu devia ter feito desde o inicio, resenhando o livro. Ok, então vamos lá. A referida edição da Nova Fronteira, reúne 100 crônicas, publicadas originalmente no jornal, e que eu garanto, são lidas num piscar de olhos, talvez dois. Tudo, absolutamente todas as boas qualidades da literatura genial pensada por Nelson Rodrigues está em A Vida como ela é... E como o próprio titulo sugere, são histórias, que meu caro leitor, acontecem, acontecem o tempo todo, com pessoas que conhecemos, com desconhecidos, com o vizinho de cima, o amigo da rua de baixo, o padeiro, o dono do botequim, o amigo da melhor amiga do seu pai... São histórias, crônicas, de gente aparentemente comum, aparentemente acima de qualquer suspeita, aparentemente pessoas que fingem que são aquilo que na realidade elas não são. Para Rodrigues, parece-me, que trata-se do retrato da sociedade como ele a via, a sociedade como ela é, e aí meu caro leitor, não espere eufemismos, ou falsos moralismos, nosso amigo Nelson articula muito bem com as palavras e apresenta personagens críveis, vivendo tragédias pessoais, que vão desde assassinato, traição, adultério, mentiras.

Nada disso surge do nada, Rodrigues está fazendo, e muito bem por sinal, um retrato de uma sociedade que age dessa forma, e que esconde, e essa parte do esconder é o que Nelson trabalha mais em cada crônica.

Na literatura dita “rodriguiana”, isto tudo é muito comum, porque como eu já disse Nelson Rodrigues está fazendo uma critica a uma sociedade que age daquela forma. Ele apenas apresenta a nós, o que nós por diversos motivos as vezes fechamos os olhos e não queremos ver. São histórias curtas, com pitadas de humor negro, pitadas de ironia, bem construídas, com personagens bem desenhados, retratos perfeitos de seres humanos que poderiam perfeitamente existir entre nós, e que de certo modo, até existem.
Agora, espero eu, você que não conhecia, ou que leu uma crônica ou outra do referida coleção, esta doido para comprar o seu exemplar, tipo agora mesmo, então aqui vai o link do dito cujo:http://migre.me/dgwKr

Então, agora que a resenha se aproxima do final, e por conta da grandiosidade, não só desse livro, mas de toda a obra de Nelson Rodrigues, talvez você consiga entender porque eu fui obrigado a quebrar uma tradição comum a todas as minhas resenhas, é muito difícil achar uma frase, alguma simples frase, que remeta as crônicas de A Vida como ela É... Simplesmente porque é impossível traduzir a genialidade desta obra em uma frase. É impossível inclusive fazer uma resenha decente de algo tão visionário. As crônicas, jogam tudo na sua cara sem medo de te ofender. Cada uma, apresenta uma história comum, porém cheia de coisas horríveis, inerentes ao ser humano, a sociedade, a uma sociedade hipócrita que finge ser uma coisa que não é. A coragem de Nelson Rodrigues é outro ponto a favor.

Acho que me estendi demais, mas então, esta é a minha indicação nessa sexta feira, e eu espero, que você se interesse, que você reflita e principalmente que leia além das entrelinhas, que aproveite ao máximo o texto maravilhoso de Nelson Rodrigues, e um salve a editora Nova Fronteira, que lançou essa edição coisa mais linda, que aliás eu já linkei e também está na foto desta resenha.

Ah, também quero comentar, que a Rede Globo fez uma série muito boa sobre as crônicas no anos 90, você facilmente encontra em DVD, mas melhor ainda você também encontra no youtube e eu deixo o link, para uma das crônicas aqui:http://migre.me/dgxvX , nos vídeos relacionados você encontra as demais.

Por fim, a tradição me manda colocar um trecho do livro indicado, e esta tradição eu não preciso quebrar, apesar de que, escolher um único trecho vai ficar difícil. Mas, vou fazer este sacrifício. Trago a vos, o trecho da crônica “A Dama do lotação” Uma das minhas favoritas de todo o livro.

“ Solange espantada atendeu. Assim que ela entrou, Carlinhos fechou a porta, à chave. E mais: pôs o revólver em cima da mesa. Então, cruzando os braços, diante da mulher atônita, disse-lhe horrores. Mas não elevou a voz, nem fez gestos:- Não adianta negar! Eu sei de tudo!E ela, encostada na parede, perguntava:- Sabe de quê, criatura? Que negócio é esse? Ora veja!Gritou-lhe, no rosto, três vezes a palavra “cínica”! Mentiu que a fizera seguir por um detetive particular, que todos os seus passos eram espionados religiosamente. Até então não nomeara do amante, como se soubesse de tudo, menos a identidade do canalha, Só no fim apanhando o revólver, completou:- Vou matar esse cachorro do Assunção! Acabar com a raça dele!A mulher, até então passiva e apenas espantada, atracou-se com o marido, gritando:- Não, ele não!Agarrado pela mulher, quis se desprender, num repelão selvagem.Mas ela o imobilizou com um grito:- Ele não foi o único! Há outros! ”.

Indicação do Aion
[chega de chegar, depressa é muito devagar]

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Dublinenses - James Joyce



James Joyce é sem dúvidas um dos escritores mais influentes do século XX. Considerado como escritor do movimento Modernista, Joyce influenciou uma porrada de autores posteriores, desde caras da geração perdida, como até diversos escritores da própria geração beat. Um deles, por exemplo, Jack Keuroac, autor de On The Road. Sua escrita é muito influenciada pela Irlanda em si, país onde nasceu. Joyce costuma retratar personagens e costumes morais e políticos cotidianos. Suas obras de maior sucesso foram Ulisses, Retrato de Artista Quando Jovem, e o próprio Dublinenses, do qual vou falar um pouco aqui.

Dublinenses possui um nome auto explicativo. São 15 contos retratando “a gente de Dublin”. É isso mesmo. São contos curtos, alguns em primeira instância parecendo até triviais, mas todos os contos possuem no fundo algo bastante profundo, pois todos eles trabalham com as raízes da Irlanda, de sua população, de seus costumes morais, éticos, religiosos e políticos de toda aquela época. A intenção do livro é passar essas ideais enraizadas na Irlanda pela ótica de alguém que a vivencia. Um cidadão comum qualquer. Joyce é conhecido por transmitir uma ideia de epifania em seus contos, que é onde um personagem é iluminado, ou qualquer coisa do tipo, digo, reflete sobre o seu auto entendimento, ou o entendimento da situação de uma forma clara. Aquilo que era obscuro, ou talvez pouco enxergado pelo personagem, volta-se à ele de uma forma quase perturbadora e assustadora. É neste momento que Joyce trabalha com os conflitos que uma cultura ou a ideia de uma identidade nacional pode gerar em sua população, e tudo isto descrito da forma mais natural possível, e quase imperceptível. Se você preferir, após ler um conto, uma pesquisa (seja na internet ou onde preferir) para entender qual é o verdadeiro poço daquela história, é sempre válida, mas tentarmos descobrir “a moral da história” por nós mesmos, e sempre uma sensação admirável que os livros podem nos trazer.

Dublinenses foi o segundo livro de James Joyce, e foi publicado quando este tinha apenas 23 anos. É sem dúvidas um dos maiores clássicos da literatura do séc XX. E é difícil não se sentir um cidadão de Dublin enquanto mergulha nesta viagem.

Deixo aqui um trecho do conto: Um Caso Doloroso

“Quando o partido se dividiu em três facções, cada qual ficou com seu líder e seu sótão. As teses dos operários, disse ele, eram tímidas demais e exagerado o interesse que mostravam pela questão dos salários. Percebera que eram realistas empedernidos e que lhes faltava o rigor do pensamento resultante de um ócio fora do alcance deles. Por alguns séculos ainda, acrescentou, nenhuma revolução social perturbaria Dublin.Ela perguntou-lhe por que não escrevia seus pensamentos. Para quê, respondeu Duffy, com desprezo cauteloso. Para competir com os fazedores de frases, incapazes de pensar com coerência durante sessenta segundos? Para submeter-se às críticas de uma classe média obtusa, que entrega sua moral aos cuidados da polícia e sua arte aos empresários?”

Antes de encerrar, hoje a Posso te indicar um livro? atingiu a marca de 1.000 likes. Gostaria de agradecer a vocês por isto. Obrigado, pessoal!

Indicação do Luiz A. Jr.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

A invenção de Hugo Cabret - Brian Selznick


Prepare-se para pegar um croissant e um copo de leite fresquinho e mergulhar nas passagens secretas da Estação Central de Paris nos meados de 30 junto com Hugo Cabret, um órfão que vive escondido cuidando da manutenção dos belos e complexos relógios do lugar.

Livro fantástico. A apresentação por si só merece um prêmio. Em folhas negras, cuja história é contada em mais da metade por desenhos à lápis feitos à mão pelo autor, com exatamente a mesmíssima edição do original, desde os detalhes da capa até uma tradução impecável, no Brasil pela desconhecida Edições SM . Caro, diga-se de passagem. Mas uma aquisição de que não me arrependo.

Esqueça o filme, aliás. Embora a adaptação tenha sido muito bem feita e capte muito da magia e doçura do livro, a viagem daqui do Brasil até Paris é conduzida pelo autor Brian Selznick como um vôo suave – eu diria quase alucinógeno, esperando apenas o momento em que você vai virar-se para o lado e topar com os bistrôs por aí, heim – e sem grandes tropeços. Uma leitura rápida, devido a grande quantidade de imagens, mas eu duvido que você não fique alguns minutos tentando absorver todos os riscos e sombras e tentando dar vida a eles – não que isso seja especialmente difícil.

Mas vamos lá. Hugo Cabret é o órfão filho de um relojoeiro que aprendeu os segredos da profissão e arte ainda muito jovem. Após o acidente que resulta na morte do pai, ele vai viver com o bêbado tio que é cronometrista dos relógios da Estação Central de Paris. Lá, ele aprende com o tio como cuidar da delicada maquinaria e continua fazendo isso mesmo após o desaparecimento do cronometrista, enganado até mesmo o severo inspetor da Estação.

Mas Hugo Cabret, como em toda grande história de mistério, tem um grande segredo. Ele guarda um autômato, um pequeno homem mecânico quebrado, que o pai encontrara no porão do museu onde trabalhava e que estava tentando consertar, deixando o trabalho inacabado com sua morte.

Hugo deseja terminá-lo, acreditando que ele guarda uma mensagem de seu pai, e para isso, passa a roubar pecinhas mecânicas dos brinquedos da loja de brinquedos da Estação, que pertence a um velho rabugento. Um dia, ao tentar roubar mais um brinquedo, é pego pelo dono da loja e é aí que a vida de Hugo muda para sempre.

Não vale a pena dar detalhes do enredo, que é uma das grandes realizações de Selznick ao escrever a obra. Mas vale falar de sua habilidade de envolver esse enredo em um mundo de magia, que vai do cinema a beleza intrincada das engenhocas mecânicas. Uma reconstrução da Paris (ilusória, eu sei, mas entre na brincadeira) dos anos 30, com seu charme e sua torre, com seu cheiro de croissant e com as senhoras de chapéu e saltos que fazem toc-toc-toc.

Uma viagem imperdível. E apertem os cintos, que o trem já vai partir.

“Uma cascata de movimentos perfeitos, com centenas de ações brilhantemente calculadas, se derramou através do homem mecânico. A chave apertou uma corda conectada a uma série de engrenagens que se prolongava até a base do tronco. Ali, a última roda dentada fez girar uma série de discos de latão com bordas bem afiadas. Dois pequenos dispositivos em forma de martelo baixaram e correram pela borda dos discos chanfrados, subindo e descendo enquanto os discos rodavam com regularidade. Os movimentos ativados pelos martelinhos foram então transferidos de volta através de uma série de varetas que se estendia até o torso do homem mecânico. Ali, as varetas moventes silenciosamente fizeram girar outros mecanismos no ombro e no pescoço. O ombro ativou o cotovelo e, quando este se pôs em marcha, provocou outros movimentos numa reação em cadeia até o pulso e enfim, até a mão. Hugo e Isabelle observavam, com os olhos arregalados de espanto, enquanto a pequena mão cuidadosamente começou a se mexer.. 
Isabelle e Hugo prenderam a respiração. O homem mecânico molhou a pena na tinta e começou a escrever.”

Seeya todos vocês.

Indicação da Amanda, que sim, escreve demais.

[you see, but you don't observe]

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Crítica - Jogos Vorazes



ATENÇÃO, esta não é uma indicação normal, é uma crítica

Estava eu na gloriosa fila do restaurante universitário quando interceptei uma conversa sobre Battle Royale (se você não conhece, não se desespere que já explico). É claro que a uma certa altura o tema Jogos Vorazes entrou em pauta e durou até mais ou menos conseguirmos sentar no restaurante, e você que sabe, sabe que isso demora.

Depois da conversa resolvi que já era mais que hora de fazer uma crítica. A título de informação, resolvi fazer essa crítica restrita ao primeiro livro, uma vez que incluir os outros dois tornaria o texto muito (mais) extenso e também porque gostei bastante do primeiro filme. Para os próximos livros, pretendo aguardar os lançamentos dos respectivos longas, dos quais o segundo, Em Chamas, tem previsão de estréia pra novembro do corrente ano.

Quando ouvi falar no filme, foi quase o céu. Uma nova série de ficção distópica com uma produção daquele montante no cinema? Corri assistir e foi ótimo, por uma série de combinações de aspectos positivos. O primeiro deles é a atriz escolhida para a protagonista Katniss Everdeen, a americana Jennifer Lawrence. Lawrence entra no filme apenas para tomá-lo para si, algo que ela executa de maneira brilhante, nos transmitindo a emoção e personalidade da personagem de maneira muito intensa e sugerindo uma pesquisa nos livros e em outras fontes que remetem à realidade do futuro distópico enquanto social, histórico e psicológico. A produção transcende infinitamente o livro, acrescentando elementos de criatividade e transmitindo novas sensações que põe em jogo aquela premissa básica de que o livro de origem é sempre melhor que o filme. No caso de Jogos Vorazes, julgo isso uma inverdade. Além desses dois aspectos primordiais, ainda acrescento a escolha de elenco, que também na minha opinião transcende o livro facilmente, a fotografia e construção de cenários, detalhes das roupas, enfim, tudo que caracteriza uma boa produção e que convenhamos, ficou bem melhor nas telas do que nas páginas. Por fim, é uma adaptação que não mergulha muito nos mistérios da cabeça dos personagens, mesmo de Katniss que é tão bem interpretada, ou seja, um tanto superficial. Ponto para o filme.

Isso soa meio herege, eu sei.

Estava eu animada com o filme e resolvi é claro, ler o livro. Me arrependi. Mas vamos lá. Apenas quero acrescentar que não vou explicar aspectos do enredo para facilitar a compreensão de quem não leu, e por isso vou presumir que se você lê uma crítica, já leu o livro e vai concordar ou não com o que digo.

Somos introduzidos a uma senhorita que narra em primeira pessoa, num futuro distópico clássico: exploração, um governo controlador, pessoas infelizes, alienadas pelo sistema, revoltadas e com medo, sem coragem de confiar no vizinho. É aí onde vive Katniss Everdeen, a protagonista. Ela é teoricamente uma garota independente, corajosa e forjada numa realidade aversiva, a total antítese da protagonista feminina comum. Aliás, seu parceiro de protagonismo e também tributo do distrito 12 é justamente Katniss ao contrário, Peeta, um garoto sensível e cheio de dedos sobre a vida e os fatos. É evidente que Peeta aceita que irá morrer e que isso não deveria atentar contra sua personalidade em vida.

O que eu acho meio decepcionante e puritano demais para um tema tão sólido que é o tema de Hunger Games. A proposta é (seria) ótima, mas há uma crescente disparidade entre projeto e construção conforme o livro avança. Acredito que seja forçado construir os personagens conforme foram construídos no livro (e no filme, mas é muito mais evidente no texto, como sempre). Essa é uma realidade de futuro distópico. Jogam 24 de vocês em uma arena mortal e você vem me falando de manter a integridade? Ok, bonito. Mas não nesse gênero. Não no meu pedaço.

Mas eu entendo, esse argumento é absolutamente questionável. No fim das contas, acabei chegando à conclusão que o livro lida com uma acomodação de interesses bem visível, qual seja, a vontade da autora de discutir um tema válido, sempre atual e a necessidade de eufemizar o que ela mesma está discutindo. Cria-se aí um paradoxo gigantesco, não só entre personagens, mas em personagem consigo próprio. Em Katniss isso é evidente: ela quer sobreviver. Sua família depende dela. Ela é dotada de certa rabugice e não é uma personagem apaixonante, mas isso se converte no erro literário (e não de mercado, veja bem) de mais pra frente fazer com que ela seja a heroína do leitor. Não há coerência alguma nisso: ela é rabugenta e quer sobreviver, mas é claro que se arrisca e se expõe para transportar um inválido Peeta ou considerar um suicídio ante a alternativa de acabar com o adversário e voltar para casa. Isso ao mesmo tempo em que lida com os sentimentos de um garoto apaixonado buscando elevar índices de audiência e conquistar patrocinadores. Só que não. É balanceamento de opostos em um nível muito além do aceitável para uma distopia.

Ao tentar revestir Katniss de autenticidade, a autora recobre-a de um verniz superficial, que é facilmente removido (e nem precisa de solvente) quando a narração se desenvolve. Ela é uma garota confusa, pintada pela autora para ser uma coisa, pela história é outra e por fim a percepção que você tem é de que Katniss é uma mentira. Vale mencionar por isso os longos dramas que ela desenvolve em sua consciência, no inglês original tão mal escritos que se parecem com aqueles devaneios que a gente tem quando fica olhando pro teto enquanto se está deitado na cama. O que vai contra absolutamente toda praticidade, dureza e objetividade que a autora projeta na protagonista logo de início. Uma pena.

Não defendo que Katniss seja uma psicopata sem coração, veja bem. Apenas acredito que demasiadas esperanças foram projetadas nela no início para serem quebradas na eufemização da realidade de Panem e dos Hunger Games, deixando um gosto ruim na boca de heroína revolucionária bonita e apaixonante, cheia de princípios.

Outra coisa absolutamente irritante, que irá se desenvolver nos outros livros mas que dá seus primeiros passos, é a presença de um triângulo amoroso. Do triângulo, o único que parece fruto de sua realidade é Gale, e você com toda razão, não gosta dele. Ele é arisco, egoísta e desconfiado. Há outro elemento do paradoxo Katniss aqui: uma garota que tinha tudo para ser misantrópica e que por anos via Gale absolutamente como amigo tem um surto amoroso durante e após um jogo mortal? Em que você mata todo mundo para sobreviver? No mínimo, um escorregão tremendo na falta de adaptação da personagem a seu meio. É bem recorrente que no futuro distópico haja envolvimento amoroso, eu sei, mas esse mesmo envolvimento é afogado pelas circunstâncias. E se seu parceiro te trair? Parece ingênuo demais criar amor num meio onde não há amor. Há um contexto psicológico de paranóia, dor e egoísmo muito intensos em um futuro distópico clássico, coisa que a autora prefere convenientemente esquecer pra eufemizar o texto.

Haymitch ali é o único personagem que parecer ter a ver com futuro distópico. Ele é sádico, bêbado e esperto, um fruto coerente de um jogo mortal. Que seja mencionado que alguns elementos da personalidade de vários personagens (infelizmente vistos na lógica paradoxal de Katniss) são ótimos e refletem a crítica proposta por Hunger Games. E é dessa crítica que eu quero falar.

O mérito da escritora é sem dúvida reaproximar os novos leitores do futuro distópico (eu tenho fé que você começa com Hunger Games mas termina com 1984 um dia) com um texto romântico, sem aqueles desagradáveis percalços mais rústicos, né (eufemizano, fla sério glr) e de linguagem de fácil acesso, extremamente simples e sem nenhum grande recurso literário notável. Mas esse mérito cessa na medida em que nada de bom na obra é original.

Primeiramente, Hunger Games, como todo futuro distópico, reporta-se a 1984 de George Orwell, com a alienação, a fome, o controle centralizado. Até aí tudo bem, nada da literatura é original depois de Homero. Mas Hunger Games é uma colagem de todos os grandes clássicos e não clássicos do gênero, unidos pela cola pegajosa do mercado editorial.

Comecemos com Battle Royale, um livro (mangá e filme) japonês em que num futuro, os jovens tornaram-se rebeldes e um programa de TV é inventado visando controlá-los. Todo ano, uma turma escolar é seqüestrada e enviada para uma ilha, onde devem lutar até a morte restando apenas um, espetáculo transmitido e controlado pelo governo. Aqui em Battle Royale, há uma evidente transformação dos personagens por seu meio: amigos que se conheciam há anos saem matando uns aos outros sem escrúpulos.
Além desse, há outros dois menos conhecidos: Senhor das Moscas e Zarrof, o Jogo Mais Perigoso. Brevemente, Senhor das Moscas trata-se de um monte de crianças abandonadas que lutam numa ilha pela sobrevivência. O Jogo Mais Perigoso reporta-se a Teseu e o Minotauro. E aí você me diz que nenhum desses livros remete ao poder de controle da mídia, dos Games, o imperialismo e etc. Ok.

Temos também Truman’s Show, um Big Brother vitalício onde todos os passos de Truman – que desconhece tudo que está acontecendo – são controlados por uma direção televisiva, desde sua esposa e amigos, todos atores, desde o seu nascimento.. Ainda, O Sobrevivente, em que um prisioneiro precisa escapar da morte num brutal jogo de TV. Ou o outro Sobrevivente, Series 7, onde pessoas são sorteadas para participar de uma competição televisiva brutal. E o conto The Lottery, de Shirley Jackson que conta um sorteiro realizado anualmente por todos os chefes de família, no qual o patriarca sorteado deve sortear um de seus filhos para ser apedrejado até a morte, remetendo às cenas da Colheita em The Hunger Games. E a lista não teria fim.

Colagem que é, Hunger Games tem apenas o mérito de trazer novamente a discussão da mídia, do futuro distópico e deixá-la sempre atual. A você, leitor, que quer elevar essa discussão a níveis mais elevados, eu tenho um conselho. Transcenda-o.
Obrigada por ter chego até aqui. Bom feriado.

Crítica da Amanda.


[you see, but you don’t observe]

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Anjo Negro – Nelson Rodrigues


“A Casa não tem teto para que a noite possa entrar e possuir os moradores”

Nelson Rodrigues ficou conhecido por seu jeito peculiar de trabalhar com a literatura, com suas obras sempre dotadas de muita crítica social que mostravam personagens, que segundo o autor, nada mais eram do que a verdadeira face das pessoas, e que elas tanto lutam para esconder. Na série de crônicas A vida como ela é, o autor trabalha isto de forma exemplar, mas é no teatro que ele faz isso com mais propriedade.

Vamos parar de lenga lenga, porque a indicação dessa semana é fenomenal, e eu acho assim que depois de terminar de ler a minha resenha você deva correr atrás do exemplar mais próximo e devorá-lo em alguns poucos minutos. Porque? Porque como eu já disse a indicação dessa semana é fenomenal. Estou falando da peça Anjo Negro de Nelson Rodrigues, que figura entre uma das peças míticas do autor.

Anjo Negro, que tem todas as marcações do teatro e já foi encenado diversas vezes pelo Brasil, conta a história do negro Ismael, médico que renega a sua própria cor, usa roupas brancas e é completamente formalizado, um verdadeiro doutor. Pela primeira vez na história da Literatura Brasileira um negro é retratado dessa forma, o que inclusive gerou problemas para a peça com a censura. Pois bem, não foi só isso: peça foi publicada pela primeira vez em 1946, quando pipocavam os discursos sobre preconceito racial, e esta era uma discussão em voga, e tal preconceito ocorria de forma aberta, e não velada como por muitas vezes ocorre atualmente.

Rodrigues, inova ao apresentar o protagonista da peça um personagem negro, e instala em Ismael uma clara crítica ao fazer com que aquele personagem renegue a cor de sua pele. Ismael é casado com Virginia, mulher branca, e aqui, pelo menos da forma que Nelson Rodrigues imaginou sua peça sendo encenada, um só usa roupas brancas e a outra somente roupas pretas. A peça começa com a morte de mais um filho de Ismael, e aqui o jornalista não poupa o espectador e vai trabalhar e levar os sentimentos humanos, e o que as pessoas são capazes de fazer até as últimas consequências. Ismael quer um filho, mas todos os filhos que tem com Virginia nascem negros, a mulher não aceita isso e mata um a um cada filho que nasce, os afogando no tanque. Não se sinta enojado leitor, isto tudo faz parte dos temas que Rodrigues quer tratar (e o faz de forma tão fantástica) na peça. Ninguém, nenhum dos personagens é bom, todos eles tem algum problema, todos eles escondem alguma coisa, todos eles tem momentos bons e ruins. Continuo a falar do enredo, embora ele só seja a mola propulsora a tudo que Nelson Rodrigues quer discutir. Um belo dia, chega a casa de Ismael e Viriginia o irmão de criação de Ismael, Elias, que fora cegado por Ismael quando criança, de pele branca, é na presença desse homem que Virginia percebe uma maneira de ter um filho, e decide que Elias será o pai de seu filho, desta vez branco.

Viriginia engravida de Elias, e para a surpresa dela, acaba tendo uma menina, Ana Maria, e na segunda parte da peça, Ana Maria será envolvida por Ismael, que vai cegar a menina e fazer com que ela se apaixone por ele.

Apresentar uma peça com tantos temas polêmicos, e tratados com tanta propriedade, revela mais uma vez a genialidade de Nelson Rodrigues, e a maneira como ele consegue trabalhar com os opostos, com os dualismos de seus personagens. Virginia é o maior exemplo disso. O texto, publicado em livro da maneira como Nelson queria que representassem é dotado de qualidades estupendas, e discussões ainda relevantes na sociedade em que vivemos. Porque um anjo não pode ser negro? Porque a mulher não pode ter desejos carnais? Ao falar do passado dos personagens, descobrimos que Virginia fora violentada por Ismael, e ao tom bem peculiar do autor, uma cama quebrada onde tudo aconteceu é mantida no cenário, para que o casal central não se esqueça de como se tornaram marido e mulher. Rodrigues, apresenta o retrato de uma sociedade hipócrita e retrógrada, Virginia é tratada como a culpada do estupro que sofreu, toda essa discussão que aparece de forma superior ao enredo e ao texto, torna a peça ainda mais maravilhosa, Vale o que o leitor, ou quem assistir a peça vai pensar, o que é que ele vai refletir, e como vai encarar aquela realidade tão dura que fora apresentada.

Anjo Negro tem todos os ingredientes do que Nelson Rodrigues sabia fazer com tanta propriedade, tem uma tensão que percorre todo o texto, tem traição, sentimentos levados a flor da pele, crítica social bem fundamentada, um enredo bem amarrado e bem construído, uma história épica, como poucas vistas no teatro nacional, e até mesmo, um dos melhores escritos de Nelson Rodrigues por toda a sua carreira.

Que fique claro, dei pouquíssimos spoilers sobre o texto, mas espero sinceramente que você que leu até aqui já esteja pensando em como vai chegar a ler Anjo Negro, e poder comprovar todas as qualidades que eu exaltei aqui. Ahh, e se possível ver o texto de Nelson Rodrigues sendo encenado, melhor ainda, é uma das coisas mais estupendas que eu já fiz.

“ISMAEL – Eu levantei esses muros, te fechei num quarto. E enquanto enterrava meu filho – tu abrias a porta, mandavas entrar um homem que nunca viste...VIRGÍNIA – (como sonâmbula) Abri a porta.ISMAEL – Ainda agora você me disse – pela primeira vez que me amava.VIRGÍNIA – (gelada) DisseISMAEL – RepeteVIRGÍNIA – Você acreditou?ISMAEL – Me amas?VIRGÍNIA – Preciso responder?ISMAEL – Sim ou não?VIRGÍNIA - (recuando um pouco, num crescendo) Não, Bem sabes que não. Bem sabes que tenho horror de ti, que sempre tive, e que não suporto nada que tocas...ISMAEL – É só?VIRGÍNIA – (digna) Só?ISMAEL – E teu amante?VIRGÍNIA (desorienta-se, vacila, mas logo reage) Fugiu, Eu disse a ele “Foge!Foge!” A essa hora está longe, bem longe (apaixonadamente) graças a Deus!ISMAEL – (num crescendo) Teu amante está longe, bem longe, mas o filho ficou, o filho não fugiu (ri brutalmente) Deixa que teu amante fuja. (corta o riso) Mas o filho está aí, ao alcance da minha mão, quase posso acariciá-lo...(E realmente acaricia o ventre da esposa)ISMAEL – Começas a compreender?VIRGÍNIA – (num começo de pânico) Sim.ISMAEL – E não tens medo?VIRGÍNIA – (ferozmente com a mão no próprio ventre, como se quisesse defender o filho futuro) Nesse filho você não toca, nunca, ouviu? nunca! Eu não deixarei. Ele é meu e não teu! Ele é branco – branco!ISMAEL – (numa alegria selvagem) Você não matou meus filhos?VIRGÍNIA – Eu?ISMAEL – Você, sim, um por um. Não matou? Pois o teu – o dele – eu matarei também, (numa alegria de louco) e no tanque. Virgínia, ali (aponta na direção do tanque) Esperarei os nove meses – não nove não são? – e que fosse mais – um ano – eu esperaria (doce) Você não sofrerá nada. Nem Elias, mas ele (aponta para o ventre da mulher) Ainda não tem forma – ainda não é carne – mas já esta condenado!”

Indicação do Aion
[chega de chegar, depressa é muito devagar]