domingo, 28 de abril de 2013

Eu e outras poesias - Augusto dos Anjos



“Quando plural e original podem ser sinônimos...” 
Ao abrir o livro que eu estou resenhando essa semana me deparei com um comentário de Olavo Bilac, sobre Augusto dos Anjos. O livro não traz nenhuma confirmação, apenas cita na introdução (na edição pocket da Lpm, para quem quiser confirmar) uma fala de Bilac,desdenhando o trabalho de Augusto dos Anjos.
Não tenho muito apreço pelo Olavo Bilac, e este não é assunto pra agora, o fato é que Olavo Bilac, considerado Príncipe dos Poetas, esteve a frente de uma escola literária brasileira que muitos devem conhecer chamada parnasianismo, Augusto dos Anjos viveu mais ou menos por aquela época, mas pertence a um período literário que não o de Bilac: O pré-modernismo, que como sugere a nomenclatura, é a produção literária que engloba os escritores e o mercado editorial que antecede o modernismo brasileiro, é uma fase de transição, O que configura que Augusto dos Anjos tenha a formalização e a perfeição advindas do Parnasianismo, movimento de Bilac, mas seja mais do que somente isso.
Eu e outras poesias, presente em várias edições, é a única obra publicada de Augusto dos Anjos, que morreu por volta dos 30 anos, e seguiu vários anos ignorado pela critica literária, Felizmente, e a introdução do referido livro comenta isso, a terceira edição de 1928 vendeu bem, e os gostos literários mudaram, ainda mais com a semana de 22, os anos da guerra, o que ajudou a não só divulgar a poesia de Augusto, mas também de alça-lo ao posto de um dos mais célebres poetas de literatura brasileira.
Por certo, você me perguntaria: Mas Aion? O que tem nessa poesia de tão fascinante, tanto, que você esta não só resenhando, mas indicando esse livro para que eu leia. E aí eu te respondo: Tem tudo e não tem nada. Augusto dos Anjos, como eu comentei, viveu em um período de transição, antes do Modernismo explodir como movimento literário, Augusto exprime em suas poesias, muito da poesia formal sugerida pelo parnasianismo, a tal arte pela arte, mas não é só isso, Augusto traz mais, traz temas de interesse, apresenta poemas mais extensos, falando sobre sombriedades, sobre a vida, sobre a morte, sobre o amor, o tema universal que todo o poeta que se preze fala.
Complexo, genial e principalmente original, é difícil inserir Augusto dos Anjos, seja aonde ele é inserido normalmente pela critica literária, no Pré Modernismo, seja inseri-lo no Parnasianismo, ou até mesmo, chegamos a confundir as coisas e pensar que ele é um poeta importado lá da segunda geração do romantismo, e que devia ser amigo do célebre Álvares de Azevedo, Tudo isso gera uma confusãozinha básica, até mesmo pra quem não estuda literatura e só lê essas maravilhas, porque? Porque Augusto dos Anjos é plural, ele é muitos poetas em um só, ele é parnasiano, é romântico, é pré-modernista, é modernista, é barroco, é simplesmente fantástico, e toda essa pluralidade pode ser observada de forma excepcional no livro Eu, que reúne os poemas que Augusto escreveu por toda a sua vida.
Os temas sombrios, nos remetem ao amor da segunda geração do romantismo, mas todos eles tem um quê de novidade, um quê, de algo a mais, de originalidade.
Você inclusive deve conhecer Augusto dos Anjos, não? Talvez estes três versos ajudem: Vês! Ninguém assistiu ao formidável/Enterro de tua última quimera./Somente a Ingratidão - esta pantera , Lembrou? Das aulas de literatura? De alguma citação que você viu em algum livro? Não? Você deve ter lembrado... Sabe por que? Porque a originalidade de Augusto dos Anjos é tamanha, que não só o poeta tornou-se um dos mais célebres poetas já vistos no Brasil, como os três versos aos quais eu fiz menção, pertencentes ao delicioso soneto Versos Íntimos, tornaram, de certa forma, uma referência clássica quando se fala de literatura brasileira. E isso só corrobora com tudo que eu disse até aqui: Augusto dos Anjos é simplesmente maravilhoso e você, meu pequeno jovem leitor, deve se entregar ao prazer da leitura, e descobrir sozinho porque Augusto dos Anjos é tão maravilhoso...

Segue, é claro, na integra o soneto Versos Íntimos, e logo abaixo um trecho de outra célebre poesia do autor: Monólogo de uma sombra.
“Vês! Ninguém assistiu ao formidávelEnterro de tua última quimera.Somente a Ingratidão - esta pantera -Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!O Homem, que, nesta terra miserável,Mora, entre feras, sente inevitávelNecessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!O beijo, amigo, é a véspera do escarro,A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,Apedreja essa mão vil que te afaga,Escarra nessa boca que te beija!”
"Sou uma Sombra! Venho de outras eras,Do cosmopolitismo das moneras...Pólipo de recônditas reentrâncias,Larva de caos telúrico, procedoDa escuridão do cósmico segredo,Da substância de todas as substâncias!
A simbiose das coisas me equilibra.Em minha ignota mônada, ampla, vibraA alma dos movimentos rotatórios...E é de mim que decorrem, simultâneas,A sáude das forças subterrâneasE a morbidez dos seres ilusórios!
Pairando acima dos mundanos tetos,Não conheço o acidente da Senectus- Esta universitária sanguessugaQue produz, sem dispêndio algum de vírus,O amarelecimento do papirusE a miséria anatômica da ruga!
Na existência social, possuo uma arma- O metafisicismo de Abidarma -E trago, sem bramánicas tesouras,Como um dorso de azémola passiva,A solidariedade subjetivaDe todas as espécies sofredoras.”[...]

Por fim, gostaria de declarar, que resenhar poesia pode ser por vezes difícil e complicado. Por quê? Porque é difícil em poucas linhas, falar com propriedade de algo tão maravilhoso, então espero, e tento sempre, instigar quem acompanha as resenhas, para que a pessoa sozinha consiga encontrar todas as coisas que eu encontrei, ou até mais coisas, e assim aproveitar ainda mais do livro resenhado.

Indicação do Aion.
[chega de chegar, depressa é muito devagar]

quinta-feira, 18 de abril de 2013

O Mez da Grippe, de Valêncio Xavier -- Fundação Cultural Casa Romário Martins, 1981; Companhia das Letras, 1998


“Muita gente ficou com o juízo abalado. Por causa da febre forte dias e dias.”

Ouvimos falar em poesia concreta já nos tempos de colégio. A vanguarda que queria explorar todos os espaços da folha e usar da imagem com tanta propriedade quanto as palavras. Até aí tudo bem. Susse. O que não é muito comum de se ouvir é sobre prosa concreta...

Utilizando imagens por todo o decorrer do livro, Valêncio Xavier constrói uma narrativa sobre os tempestuosos dias de epidemia de gripe espanhola em Curitiba, entre outubro e dezembro de 1918. Por vezes colocando fotos da época nas páginas e noutras gravuras de pessoas que representam os cidadãos. Na maioria das vezes, porém, ele usa manchetes e trechos de reportagens jornalísticas para nos contar o que era dito à população em meio àquele desespero. Um dos primeiros recortes, inclusive, é uma matéria em branco, intitulada “A Influenza” e com seu desenvolvimento em branco, como crítica à censura sofrida, numa tentativa do governo de abafar o caso e evitar a preocupação do povo.

O livro começa com uma nota do Sr. Dr. Trajano Reis, diretor do Serviço Sanitário, nos contando como teria chegado a influenza por essas bandas, para logo depois Valêncio Xavier usar os recortes de jornais a fim de dar as primeiras notícias dos impactos que a doença começava a causar. Intercalados com as chamadas “fontes oficiais” estão os depoimentos de Dona Lúcia, concedidos em 1976, falando sobre os atribulados dias da gripe do ponto de vista de quem os viveu, e com a coloquialidade que não era possível ser empregada pelos jornais.

Vale lembrar que no fim de 1918, estava chegando ao fim a Primeira Guerra Mundial, portanto tratava-se de um assunto também muito tocado pelos periódicos que circulavam pela cidade de Curitiba, assim como de todo o mundo, e que não são deixados de fora.

A obra vai se desenvolvendo conforme acompanhamos as notícias e os depoimentos. Vamos percebendo o agravamento da epidemia e as tentativas da gestão pública de tranquilizar as pessoas, seja dando conselhos sobre como se prevenir da doença ou ocultando informações, como número real de óbitos causados pela doença.

Além desse recorte factual histórico, é possível notar também uma vontade de mostrar os comportamentos da época. O nacionalismo exacerbado causado pela guerra que era demonstrado nos jornais, os anúncios de creolina e xaropes, prometendo ajuda na prevenção e na cura da influenza. Assim como as notas de homens públicos como o prefeito e o diretor do serviço sanitário.

Como se tudo isso já não fosse experimental o suficiente, a gramática utilizada é a mesma da época. Várias grafias que já foram modificadas ene vezes estão ali, para nos fazer sentir mais próximos do período narrado. Fica incerto, também, o quanto é ficção e o quanto é real, já que nem todas as notícias são imagens, mas sim transcrições, algumas com data e algumas sem. Ou se Dona Lúcia é de fato um sobrevivente da época. Talvez mesmo se fosse tudo verdade, Valêncio preferisse que assim não parecesse. Um narrador poeta desconhecido volta e meia nos dá o ar da graça com alguns versos um tanto lascivos. Um trabalho de gênio.

A princípio até soa meio estranho e a leitura pode parece intrincada. Mas muito pelo contrário. A dinâmica jornalística dá gás para a leitura e a deixa correr livre. Se o leitor for de ou conhecer Curitiba ainda ganha o bônus de ver as fotos das ruas da cidade na época em que menos de 100mil pessoas habitavam a região. Enfim... é uma leitura rápida mas que cativa pelo seu ar de inovação narrativa, tanto nas linguagens que são utilizadas, quanto pela mescla de romance histórico com ficção.

Só pra dar uma ideia, mais ou menos, de como fica: http://migre.me/eakW9 e http://migre.me/eal0B (poderia ser melhor, mas em qualidade boa não há tanta coisa na internet) e mais alguns trechos:

“Varias

Phenomeno unico na vida coritibana accentuando o contraste de somente em epoca de epidemia ás portas do Estado e quando se pretende espalhar pânico isto se dar: há trez dias que não é registrado um só óbito numa população de 80 mil almas.

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Hotem, na rua Marechal Deodoro, no trecho entre as ruas Primeiro de Maio e Floriano Peixoto, estava sendo descoberta, com grande perigo para a saúde publica, uma parte da rede de exgottos, pondo ao sol um lodo podre e capaz de infeccionar o ambiente.”

“Quando de fadiga não puderam os coveiros abrir sepulturas, mandei gratificar a outros indivíduos para que as fizessem, de modo a evitar a decomposição dos cadáveres.

Relatório do Se. Dr. Trajano Reis, director do Serviço Sanitário”

Indicação do Guilherme
[parangaricutirimírruaro]

terça-feira, 16 de abril de 2013

As vantagens de ser invisível - Stephen Chbosky


Deixei pra postar hoje, não ontem, porque queria terminar justamente esse livro da indicação. E calme-se, porque não enlouqueci e estou recomendando livros adolescentes: indicar As Vantagens de Ser Invisível tem lá suas vantagens. Embora o autor do livro seja o responsável pela adaptação ao cinema, eu quero esquecer o filme um pouco (embora eu o tenha assistido antes de ler o livro) e focar na obra de origem, que é mais do âmbito aqui da página.

Não recebi o livro com tanta desconfiança porque já havia assistido a adaptação, mas, se eu não o tivesse feito, relutaria muito em ler algo que logo na capa diz “Jovens leitores”. Não que eu tenha problemas com os jovens leitores em si, ao contrário, acho ótimo que uma nova geração seja chamada especificamente de volta à literatura. No entanto, os textos com que os novos leitores têm sido fisgados são geralmente uma literatura mais marketing, pouco complexa, mal escrita e que no fim, repetem sempre os mesmos clichês e bloqueiam o acesso a um nível mais elevado (sim, eu hierarquizo literatura, beijão!). É o caso dessa nova mania de sagas: inventar uma história e reaproveita-la por mais alguns volumes, faturando outro tanto com a franquia no cinema.

Foi uma grata surpresa, então, assistir e ler As Vantagens de Ser Invisível. Diferentemente da reafirmação de clichês E GRAÇAS A DEUS sem volumes subsequentes, Chbosky soube discutir através de Charlie, adolescente de 15 anos que acabou de entrar no ensino médio, drogas, sexo, rock, sociabilidade, transtornos psiquiátricos, abuso, família, ambiente escolar, enfim, tudo de extrema pertinência exatamente para o leitor que é o público alvo de acordo com a capa: o jovem leitor.

Charlie, adolescente dos anos noventa, tem um sofrimento psicológico relativo ao suicídio do melhor (e único amigo) e da morte de sua tia quando era criança. Ao entrar no ensino médio, ele acabara de passar uma temporada internado em um hospital psiquiátrico, e agora começa o novo curso com o objetivo de sociabilizar-se para impedir que tais problemas ocorram novamente. No entanto, Charlie é extremamente tímido, tem pouco tato social e sempre viveu com sua família, não sabendo se inserir em novos grupos.

Duas características do garoto acertam em cheio logo na primeira página leitores como eu ou você, que tiveram uma adolescência mais ou menos semelhante ao do protagonista: ele é viciado em leitura, escreve bem e é muito observador. Ao ser “invisível”, Charlie se põe com facilidade a compreender os outros e suas dores; capta detalhes que fazem com que compreenda muita coisa desse universo adolescente.

No entanto, Charlie é inocente. Isso fica evidente enquanto ele vai fazendo suas descobertas com seus novos e únicos amigos do ensino médio: um grupo de veteranos que está prestes a ir para a faculdade. Ao se envolver com o sexo, as drogas e o rock, Charlie traz à tona um mundo que todo adolescente desconhece e contra o qual luta desesperadamente para tentar compreendê-lo e nele se inserir.

Vale comentar que Charlie faz amizade com seu professor de língua inglesa (um equivalente a literatura) e este vai lhe dando livros ao longo do ano e investindo na capacidade de Charlie de escrever. Chbosky é sensacional aqui: como é Charlie que narra em primeira pessoa, em cartas a um amigo desconhecido, o autor vai progredindo na capacidade de escrita junto com Charlie. No começo o texto é hesitante, talvez mal construído. Depois, Charlie vai escrevendo cada vez melhor e Chbosky também, organizando para seu protagonista estruturas e complexidade de texto, numa perfeita simbiose autor-personagem.

Para terminar, é válido puxar a maneira com que o autor usa Charlie para discutir sofrimento mental, resultando num relato tragicômico sensacional. Definitivamente, este não é um livro pertencente às prateleiras da geração teen dos clichês e dos vampiros.

“Querido amigo,Agora são quatro horas da manhã e é Ano-novo, embora ainda seja 31 de dezembro, isto é, até que as pessoa durmam. Não consigo dormir. Todo mundo está ou dormindo ou fazendo sexo. Fiquei assistindo à tevê a cabo comendo jujuba. E vendo coisas se moverem. Queria contar a você sobre Sam e Patrick, e Craig e Brad, e Bob e todo mundo, mas não consigo me lembrar direito agora.Lá fora está tranquilo. Sei disso. E fui de carro até o Big Boy mais cedo. E vi Sam e Patrick. E eles saíram com Brad e Craig. E isso me deixou triste, porque eu queria ficar sozinho com eles. Isso nunca aconteceu antes.As coisas ficaram piores há uma hora e eu estava olhando esta árvore, mas era um dragão e depois uma árvore, e me lembro de que o dia estava lindo quando eu fazia parte do ar. E me lembro de aparar a grama naquele dia para ganhar minha mesada, como estou removendo a neve da entrada de carros com uma pá para ganhar minha mesada agora. Então comecei a tirar a neve da entrada do Bob, o que é uma coisa estranha de se fazer em uma festa de Ano-novo. Meu rosto está vermelho de frio, como a cara de bêbado do Sr. Z e seus sapatos pretos e sua voz dizendo que quando uma lagarta vai para um casulo é como uma tortura, e como leva sete anos para um chiclete ser digerido. E aquele garoto, o Mark, na festa que me deu aquilo saiu do nada e olhou para o céu, e me disse para ver as estrelas. Então eu olhei para cima, e estávamos em uma cúpula gigante como uma bola de neve de vidro, e Mark disse que as estrelas muito brancas eram na verdade somente buracos no vidro negro da cúpula, e quando você foi ao céu, o vidro quebrou, e não havia nada, exceto um monte de estrelas brancas, que são mais brilhantes que qualquer coisa, mas não ferem os olhos. Era imenso, aberto e delicadamente quieto, e eu me senti muito pequeno.”

Indicação da Amanda.
Bjaum pra vocês.

[you see, but you don’t observe as Charlie does]

sábado, 13 de abril de 2013

Budapeste – Chico Buarque



“Apaguei a tevê, no Rio eram sete da noite, boa hora para telefonar pra casa; atendeu a secretária eletrônica, não deixei recado, nem faria sentido dizer: oi querida, sou eu, estou em Budapeste, deu um bode no avião, um beijo.”
Ao abrir Budapeste, várias coisas vem a nossa cabeça, para quem não conhece os romances do Chico, há de se pensar que é o cantor contando uma aventura dele em Budapeste. Mas não é, a medida que as páginas avançam, narrador (o livro é todo em primeiro pessoa) e autor se distanciam, e isto torna o livro simplesmente fantástico.

José Costa, um ghost writer, que trabalha numa agência com o amigo Álvaro, conta logo no inicio como acabou em Budapeste, graças a um pouso inesperado, a companhia acabou lhe ofertando uma noite num hotel, e ele então ligou a TV que apresentava uma jornalista falando em húngaro, nas palavras de Costa: “Dizem as más línguas, que o húngaro é a única língua que o Diabo respeita”. O fascínio do escritor pelo idioma, despertado na viagem é então trabalhado por todo o romance, assim como seus envolvimentos amorosos, a mulher no Brasil, Vanda, que trabalha apresentando um telejornal, e Kriska, sua professora de húngaro em Budapeste, quando José volta a cidade, os dois casos amorosos são dois pontos altos da narrativa, porque mesmo traindo ambas as mulheres José de certa forma as ama verdadeiramente, sabemos disso porque temos acesso aos seus pensamentos, e a maneira como as coisas acontecem, a briga com Vanda, o envolvimento com Kriska, faz com que, mesmo que equivocados perdoemos as atitudes de José.

Outro ponto interessante do livro, é o fato de José trabalhar como Ghost Writer, e não se sentir mal com isso, ele escreve livros que são assinados por outras pessoas e de certa forma recebe bem por isso. Em certo ponto da história ele escreve um livro para um alemão Kasper Krabble, O Ginógrafo, sua mulher lê o livro e fica encantada pelo alemão, sem se dar conta que na realidade o livro foi assinado por seu marido em meio a um casamento que mostra sérios sinais de desgaste.
Em meio a todo esse furacão, e ainda fascinado pelo idioma húngaro, José volta a Budapeste, e lá conhece Kriska numa livraria, ela começa a dar aulas a ele, e lá pelas tantas os dois acabam se envolvendo, e na Hungria José Costa acaba arrumando emprego numa editora para fazer exatamente o que fazia no Brasil, com a diferença que em húngaro, diferentemente do português, ele sabe escreve poesia. O livro é repleto de tiradas de José sobre ser escritor, sobre sua criatividade, sobre seus trabalhos, sobre sues medos e anseios, e sobre como ele se sente bem, mesmo não sendo reconhecido, com seu trabalho sendo elogiado, O Ginógrafo vende como água, e as pessoas passam por ele na livraria falando bem do livro, sem nem imaginar que ele é o real escritor do mesmo.

As idas e vindas de José de Budapeste, suas aventuras com desconhecidos até conhecer Kriska, suspense leve bem apresentando aqui e ali, que te prende páginas a fio esperando respostas, o interesse a dificuldade e o esforço do protagonista em aprender húngaro, o casamento, e a relação com seu filho são os pontos chave do romance.
O livro é muito bem escrito, e trabalhado, quando você se dá conta quer saber o que vai acontecer, o livro segura o clímax de forma absurdamente bem feita, o que amarra os acontecimentos e te leva inevitavelmente ao final do livro que adianto: é repleto de surpresas, revelações interessantes, e confusões que fazem com que a ressaca literária seja extremamente comprida, quando se chega a última página, e você se dá conta de que acabou, dá pra se sentir perdido, sem rumo, porque o livro é tão fantasticamente bem construído que é de se ficar triste quando se chega ao final, você lê Budapeste sempre querendo mais, esperando por mais, por mais tiradas geniais, trechos bem construídos, é um novelo que você vai desenrolando e quando você termina de desenrolar você fica extremamente chateado, mas extasiado porque como dito o livro é muito bom.

Chico Buarque, famoso por suas composições musicais, seu engajamento político, mostra que é um artista muito versátil e grande escritor, seja em poesia, ou em prosa, e Budapeste mostra tamanha riqueza do cantor também em prosa, num texto que flui de forma excepcional porque é bem argumentado e usa todos os recursos estilísticos a seu favor.
Enfim, um livro tão maravilhoso que eu no seu lugar começaria a ler agora mesmo!

O livro virou filme em 2009, com o ator Leonardo Medeiros vivendo José Costa e Giovanna Antonelli dando vida a Vanda. O filme é muito bem realizado, e bem fiel ao livro, o que o torna também muito bom e vale a pena conferir após a leitura. Aqui deixo-vos o trailer: http://migre.me/e69kM
“Abri os olhos num sobressalto e vi o fotógrafo outra vez o revólver na mão, que estava trêmula; por um instante acreditei que não fosse a mão, mas o revólver a tremer ainda com meu tremor. Chegou-o à cabeça, tornou a baixa-lo, examinou, chacoalhou, abandonou-o no carpete, e para mim estava ótimo, passara a bebedeira e o tempo de bravatas. Já me dispunha a lhe dar um abraço, beijar a mão da lourinha, acompanhá-los até a porta, encher os bolsos dele com as garrafinhas do frigobar, quando o vi empurrando a arma com a ponta do pé, na minha direção. Deve ter descoberto que eu não falava húngaro, pois com muita ênfase repetia uns gestos semi-circulares. Queria dizer que a roleta-russa tinha girado no sentido horário e agora deveria reverter o giro, a começar por mim. Estava roubando, estava inventando uma regra absurda, eu queria protestar, mas nem sequer sabia dizer não em húngaro. Quem me socorreu foi a lourinha que tomou o revólver, tentou socá-lo de volta na mão do namorado, e aí ele chamou ela de vaca. Falou vaca com todas as letras, como nós latinos falamos vaca desde a Roma antiga, e concluí que o farsante também não falava húngaro coisa nenhuma. Era romeno, usava um medalhão de bronze no peito, uma argola na orelha, um anel em cada dedo, era um cigano romeno, e teve razão a lourinha em lhe dizer: sinto asco do teu espetáculo grotesco, ao menos foi isso que eu escutei. E a fim de vexá-lo, voltou a arma contra a própria testa e atirou sem pestanejar. Não havia bala, bem feito, ao cigano não restava alternativa; recolheu o revólver, apontou-o contra a têmpora, e quanto o balaço lhe arrombasse os ossos, calculei que a massa encefálica espirraria no cabelo da lourinha, ia ser nojento. Ia ser asqueroso, mas eu não conseguia deixar de olhar, e vi como se fechavam as dobradiças do seu dedo no gatilho, cheguei a ouvir ranger a mola do gatilho e clique. Neca, não morreu, jogou o revólver no meu colo, mostrou os dentes de ouro para a lourinha, em seguida ambos me encararam. E assim ficou evidente que por alguma artimanha, com alguma prestidigitação cigana, eles tinham reservado para mim a bala do tambor. Estavam de olho no meu dinheiro, desde o início, organizavam minha morte. E seria uma morte tão oportuna para eles quanto inglória para mim, o suicídio de um turista alcoolizado em Budapeste.” 

Indicação do Aion
[chega de chegar, depressa é muito devagar]

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Cartas de um sedutor, de Hilda Hilst -- Paulicéia, 1991; Globo, 2002



“Com pouquíssimas exceções, os escritores em geral são nojentos! Gosto é dos livros(...)”
Em teoria, quem narra o livro é Stamatius, um catador de lixo que mora com uma mulher chamada Eulália. Por causa do ofício, deparou-se aos montes com os livros que as pessoas jogam fora. E os leu. Provavelmente por isso agora gosta tanto de escrever. A ação se dá entre Tiu e Eulália no tempo presente, com ele escrevendo e ela assistindo. Por isso os escritos do livro não são apenas de Hilda, mas de Stamatius.

O segmento maior são os vinte capítulos das cartas de Karl para sua irmã Cordélia. Numa espécie de homenagem de Hilda à Goethe. Extremamente letrado e erudito, Karl conversa com sua irmã sobre a infância de ambos e as inúmeras relações incestuosas que fizeram parte de suas vidas. Conta-lhe também sobre os amores novos, como o jovem Albert. Utilizando uma prosa extremamente poética, Hilst discorre sobre sexo e escatologia da maneira mais bela possível. Em nenhum momento, porém, vemos as respostas de Cordélia. Podemos apenas imaginar o que ela disse através das cartas de Karl. E aí entender o que aconteceu com ela.

O livro faz parte da fase tida como erótica da autora. Recheadíssimo de cenas de sexo, principalmente nas lembranças, nas descrições dos corpos, dos atos, variando entre o erudito e o popular, entre o falo e o caralho, entre os lábios e a buceta, as nádegas e o cu. Se tivesse sido publicado alguns anos antes, poderia ter causado muito furor com esse caráter explícito, do mesmo jeito que os livros de Henry Miller ficaram banidos por anos. Aliás, as influências não ficam nem um pouco implícitas. Ela usa o conhecimento de Karl para poder falar dos autores que gosta, como se fossem mesmo parte dos assuntos das correspondências, passando por Camus, Foucault, Nietzsche, Wittgestein e mais uns tantos.

O romance estruturado em cartas pessoais permite que todos os assuntos sejam tratados com a intimidade que remetente e destinatário desfrutam. Além de o conhecimento e inteligência da personagem fazerem a linguagem utilizada soar extremamente natural. Mas ao final do segmento, Tiu e Eulália reaparecem: um concentrado na sua escrita outro querendo atenção. E dessa relação dos dois surgem outros contos, com temas sugeridos por Eulália. Por exemplo, se ela diz “escreve uma coisa horrível”, o nome do conto fica Horrível. A mesma coisa com Bestera e por aí vai.

Hilda brinca bastante com sua própria escrita porque a domina muito bem. Constrói personagens e lhes dá vozes com facilidade, por isso o livro tem tantos narradores. Ou talvez tenha apenas um que cria outros tantos. Sempre rola uma metalinguagem nessas horas... mas ela também fica livre na hora de escrever com os sotaques que as personagens usam, e carregá-los ainda mais de personalidade. Assim como utiliza da pontuação com aquelas características bem modernistas, de vírgulas excluídas e preocupação com o fluxo da leitura, da proximidade com a língua falada. Às vezes expões as falas como nas peças de teatro, noutras ignora travessão ou aspas. Coisa fina.

Pode ser que ela tivesse muitas histórias na cabeça e esse foi um meio de por todas pra fora num único livro sem declará-lo como de contos. Vai ver ela queria mesmo mostrar um personagem escritor marginal e um pouco de sua vida e seu processo de criação. Contos disfarçados de romance ou não, Hilda Hilst é quem nos seduz com esse livro.

Um trecho, agora:

“Continuando. Foi-se. Às vezes é insuportável. Diz que me ama mas não suporta quando nos meus ‘arroubos’ digo a palavra boceta. Pergunto-lhe se é um problema de ordem moral ou de semântica. Arregala os olhos, e fica claro que não tem a menor idéia do que seja semântica, e responde: é apenas disgusting, meu bem, nada a ver com a moral, há outras palavras que me soam também desagradáveis.
quais?
ah, você vai rir de mim... mas não suporto a palavra efusão nem a palavra fartura... fico até fria... veja, será que são os us?
mas o que acontece se alguém ficar repetindo boceta fartura efusão?
ah, benzinho, por favor, posso até desmaiar, já não estou bem... não repita...(...)Enfiou-se embaixo da cama, aos prantos, fui atrás, nu, cravei-lhe as unhas na bundinha e fui repetindo fartura efusão boceta, dei-lhe uns sopapos, até que desmaiou. Quando acordou, falei: tô repetindo: fartura efusão boceta. Sorriu. Sarou. (...) Talvez Marcius (!) deseje isso mesmo, ficar surdo enfim, porque Petite é um rádio na cama. Abrindo as pernas já começa uma arenga doentia. Tento contê-la tapando-lhe a boca, mas ela não entende, pensa que é um vício meu, que gosto de tapar sua boca como se eu gostasse de me sentir um estuprador, é burrinha, coitada, mas me diverte. Ah! se fosses tu, Cordélia! Poríamos a fotografia de papai na nossa frente (tenho algumas lindas! posso mandar ampliá-las...), e nos chuparíamos, de cada lado uma fotografia de papai. Depois eu derramaria champanha na tua cona, que deve estar tão sequinha, coitada... ou não? Ou o tal de Iohanis... não, não quero nem pensar... e chuparia teus dedinhos do pé, um por um, os buraquinhos das tuas orelhas (ainda usas Calèche?) e o buraquinho da frente e o buracão de trás... vem, irmã, penso que te negas ilusões e as ilusões são os sustentáculos da vida.”

Indicação do Guilherme
[parangaricutirimírruaro]

sábado, 6 de abril de 2013

Felicidade Clandestina - Clarice Lispector


“A Felicidade ia ser sempre clandestina para mim...”
Brainstorm, é um termo em inglês, que em tradução literal poderia significar: Tempestade Mental ou Tempestade de Ideias, o que consiste basicamente em colocar no papel exatamente aquilo, a ideia, que você está pensando, da maneira como apareceu pela primeira vez no seu pensamento. Diria eu que trata-se de escrever em fluxo de consciência. Algo que a autora, cujo livro vos resenho agora, fazia. E fazia muito bem.

Abro um parênteses para alerta-los de uma coisa: Estou falando, aqui, DA Clarice Lispector, e não daquelas frases bregas que ATRIBUEM a ela, e que infelizmente lotam a internet de maneira assustadoramente absurda.
Clarice Lispector, nasceu na Ucrânia, mas viveu durante a maior parte da sua vida no Brasil, e sua infância no estado de Pernambuco no nordeste brasileiro – algo muito presente em sua literatura e no livro que estou resenhando – Clarice, é uma dessas escritoras que estavam a frente do seu tempo, uma dessas escritoras, desses fantásticos seres que mexem com literatura que realmente amava o que estava fazendo, que gostava do que escrevia, amava a profissão, Sentia-se morta se não estivesse escrevendo, como ela mesmo admitiu em uma entrevista muito famosa diga-se de passagem para a TV Cultura nos anos 70.

Ela, que escrevia em fluxos de consciência, colocava todas as suas epifanias no papel, era muito versátil e sabia criar e cuidar do universo de seus personagens. Mas, Clarice, era mais do que isso, ela era muitas escritoras em uma só e dotada de um estilo único e isso fica muito claro no livro dela, escolhido por esse humilde senhor que vos fala para ganhar resenha, Felicidade Clandestina, uma seleção de contos, em sua grande maioria que trabalham justamente o tema sugerido pelo titulo: A Felicidade, conseguida através da clandestinidade, compartilhada por outros, e pela autora, que rememora em alguns contos sua infância em Recife, como o belíssimo Restos do Carnaval, autobiográfico, sobre um episódio passado com uma menina que queria uma fantasia de carnaval, mas não tinha condições de tê-la, mesmo assim era bondosa e ajudara uma colega na confecção de uma outra fantasia, o que lhe renderia um prêmio: Uma fantasia – agora de verdade, para que ela pudesse aproveitar o carnaval – adquirida com os restos da fantasia que a menina havia ajudado a confeccionar, é claro que peças pregadas pelo destino dão ao conto um ar doce, tenro, e de um sensibilidade fantástica, e sobre os motivos que eu não vou falar aqui, esperando que o leitor se interesse pela leitura...

Alguns contos são escritos em fluxo de consciência, sim, puro brainstorm no papel, e não precisam ser desmerecidos por isso, outros são bem elaborados, e chegam até a arrancar algumas lágrimas dos mais sensíveis, é um livro sobre felicidade, sobre clandestinidade, sobre infância.
Outro conto que merece menção é aquele que titula a coletânea: Felicidade Clandestina, que se refere a uma menina que apaixonada por Monteiro Lobato, sofre nas mãos de uma amiguinha – filha de dono de livraria – que lhe promete o maravilhoso volume As Reinações de Narizinho emprestado, mas nunca se dispõe a completar a promessa. A menina apaixonada por livros, sofre com aquela situação, o amor a leitura é algo muito tocante nesse primeiro conto. Lá pelas tantas, a menina consegue o livro “e já não era mais uma menina com seu livro, era uma mulher com seu amante”[...]
Mais um conto que merece ser falado, é o bonitinho e tocante: O Grande Passeio, que narra a história de uma senhora idosa, que vai a um grande passeio, sem imaginar que seus parentes estão a enviando a um asilo... Tocante perceber como a autora trabalha a narrativa, ponto a ponto, falando sobre todas as expectativas da senhora, que nunca saía de casa.

O livro tem tudo, absolutamente tudo que era tão fantástico em toda a literatura de Clarice Lispector, literatura essa, até complicada de se classificar. Todos os vinte e cinco contos, são ótimos, dignos de releituras e mais releituras. Destaco aqui como os meus favoritos: Uma amizade sincera, Os desastres de Sofia, O primeiro beijo, enfim, a grande maioria.
Evidentemente, que não posso deixar de comentar sobre O Ovo e a galinha, conto de total fluxo de consciência da autora. O ovo e a galinha, é um desses mistérios na literatura, ninguém consegue entender ele muito bem, ninguém consegue explicar ele muito bem. Nem a própria Clarice conseguia, indagada sobre o conto, em uma entrevista ao jornalista Julio Verner, da TV Cultura, Clarice afirmava que o conto era um grande mistério para ela...
O Ovo e a galinha, é filosofia, é duvida existencial, é loucura, é fluxo de consciência, é conversa, é intimismo, é muita coisa em uma coisa só.

Deixando isso de lado, o livro ainda reserva surpresas, escondidinhas aqui e ali, coisas deliciosas, histórias bem amarradas, olhares de criança sobre a realidade, olhares adultos sobre as crianças, infância e tudo que ela pode suscitar, contos que prendem a atenção do leitor. É uma reunião de versatilidade, assim como toda a obra e a própria Clarice Lispector. Simplesmente única e imperdível. Acreditem, vale a pena, cada linha, cada página virada.
Aqui deixo-vos, o link da entrevista que a autora deu em 1977, e a qual eu me referi duas vezes nesta resenha: http://migre.me/e08lW, ao terminar de ver o vídeo, acredite, dá para entender um pouco (e bem pouco), de como Clarice era uma escritora grandiosa.

Trecho do conto Restos do Carnaval, um dos mais fantásticos do livro:
“No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com os quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito.”
Indicação do Aion
[chega de chegar, depressa é muito devagar]

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Dedo Negro Com Unha, de Daniel Pellizzari -- DBA, 2005



“Na tarde em que esqueci meu nome, mastiguei um amendoim.”

Três crianças estavam a passear na velha pedreira de Baixo do Ribas quando encontram um dedo negro com unha. De onde ele veio e por que ele estava ali, só Pellizzari pra nos contar.

O interesse do autor pelo absurdo já era notado nos seus dois livros anteriores, só que na forma de contos. Aliás, apesar de não ser indispensável, recomendo a procura dos outros dois, ou então da nova coletânea que ele publicou há não muito tempo em seu site oficial (www.cabrapreta.org) com download gratuito, fazendo uma espécie de junção dos contos dos dois livros, mas abstraindo alguns, remanejando vários etc. – o cara tá sempre se mexendo quanto à própria obra –, porque acho que há umas sacadas que ele utiliza nas três obras que são bem legais.

O livro é dividido em três arcos, aparentemente díspares, porém todos com função precisa. O primeiro conta como as crianças Adinho, Evita e Lili acham o tal dedo e as consequências da descoberta. O segundo apresenta a personagem Fedora Danilovna Pózdnicheva, numa paródia que Pellizzari faz da maneira como eram traduzidos os livros russos clássicos, na época em que eram, na verdade, retraduzidos do francês. O terceiro…se pá que é melhor nem contar porque é muita piração e pode ser meio que spoiler. Mas sigamos.

O cara experimenta de um jeito alucinante as maneiras de nos apresentar a narrativa ao mesmo tempo em que conta uma história incrível. Pra dar uma ideia, no Arco Segundo tudo parece bem clássico, na maneira de descrever o cenário, as personagens, a ação e tudo mais. Entretanto, ele dá um jeito de quebrar com esse padrão inserindo notas de rodapé toda vez que é usada a palavra eu. Assim se sai um pouco da terceira pessoa e se escuta mais intimamente a personagem em questão. Ou então ele para de contar da vida da Fedora e nos dá uma aula de História e mitologia para nos explicar como é que viemos a chegar aos tais tempos pentadiluvianos.

Mesmo que a linguagem seja verbal, a maneira como ficam dispostas as notas ou quando aparecem algumas imagens, como a placa de Baixo do Ribas, nos dão uma ideia que ele está tentando fazer algo diferente. No Arco Terceiro, chega uma hora que uma personagem precisa sussurrar. E o que acontece? As letras utilizadas para as falas ficam menores, enquanto o narrador continua com aquele mesmo tamanho do resto do livro. Ele realmente tenta explorar as maneiras de que um livro dispõe para expressar o que ele deseja.

O livro brinca muito com linguagem, com o objeto livro, com narrativa, com mitologia...além de o cara tem umas ideias tão loucas que é quase como ler um filme do Jodorowsky. Ele mesmo dá um subtítulo para o livro: “Uma farsa épica contendo as mais abstrusas, discutíveis, taumatúrgicas e desopilantes desventuras ocorridas desde o início dos tempos até os atribulados dias pentadiluvianos.”

Quem quiser definir como surrealismo, que seja. Se preferir realismo fantástico, também cabe. Absurdismo funciona tão bem quanto. Mas a cima de tudo é um livro em que ele se dedicou muito. O número de referências é tremendo, mas não conhecer todas não torna a obra incompleta pra quem lê, e isso é o mais importante. Aí fica até engraçado quando a gente lê algo mais antigo, depois de ler Dedo Negro, e vê que o Pellizzari fez uma brincadeira com aquilo. Da mesma maneira que é divertido sacar a jogada dele na hora em que se lê, porque está familiarizado. Um livro foda de um autor muito foda e ambos pouco conhecidos. Como bem definiu Joca Reiners Terron sobre Pellizzari: um poliglota em terra de surdos.

Eis um trecho:

"A natureza, borbulhante e fedegosa, não passa de uma destruidora contumaz, resmunga Fedora em silêncio. Quando não está entretida em demolir cidades com um estremecer aleatório, ocupa-se de transformar qualquer cousa em um acontecimento prosaico. Mesmo a putrefação que o corpo de sua vizinha defunta sofreria após o funeral, não fosse o embalsamento, teria um quê de sublime ao ser contemplada por alguém com uma percepção capaz de, por treino e inclinação, reconhecer todas as nuances de sua beleza. Sem este observador imaginário, a podridão tornar-se-ia vulgar, perdendo toda sua poesia. Seria apenas natural, simples matéria orgânica se decompondo, como chuva evaporando nas pedras ou neve derretendo sobre o mar. 
Tão ou ainda mais bela que a estrela do funeral, Fedora levanta-se da penteadeira, apanha a sombrinha e resolve abortar qualquer raciocínio por algumas horas. Nada mais adequado do que um funeral para ajudar alguém a espairecer as ideias, reflete. Assobiando uma canção de infância, bate a porta ao sair de casa. Na cama, ainda quieto, Ievguêni sorri de olhos fechados. É um verme e sabe disso, mas, idealista, decidiu que não, não sabe."

Indicação do Guilherme
[parangaricutirimírruaro]

segunda-feira, 1 de abril de 2013

A Pomba - Patrick Suskind


Falar do caos agora deve ser apropriado ao contexto desse 2013, que começou mais polêmico que mamilos. Ok, piada horrível.

Mas eu mesmo assim vou falar de caos. Não é o caos ou o colapso mundial, mas o micro-caos no micro-cosmo de Johnathan Noel, protagonista e único personagem importante de A Pomba, livro de Patrick Suskind (mesmo autor de O perfume – a história de uma assassino, resenhado aqui:http://migre.me/dWvp0). Tem pouco mais de 100 páginas, letra grande, daqueles que dá pra ler numa só viagem do ônibus casa-faculdade.

Noel é um homem cujas experiências da vida o derrubaram. Depois de alguns desapontamentos, torna-se totalmente avesso às novas experiências, avesso a qualquer coisa que o tirasse de sua rotina cuidadosamente construída. Depois do fim de um casamento frustrado, quando sua esposa foge dele com um artista, ele se muda para Paris e arruma emprego como um segurança de um banco.

Quando o encontramos, ele está em vias de se aposentar. Em Paris, ele alugou um quarto, o mobiliou, e agora está juntando os últimos francos para finalmente compra-lo. O quarto é o único lugar em que se sentiu confortável, que nunca o traíra, propondo novas experiências, o único que sempre lhe permanecera fiel: o símbolo de sua rotina meticulosamente construída.

Noel conta os minutos em sua rotina, à uma maneira Phileas Fogg, de A Volta ao Mundo em 80 dias. Metódico, com sua rotina sem surpresas, Noel é um homem seguro em vias de sua aposentadoria e dominado pelo desejo de permanecer em seu quarto, sem novas surpresas.

Sua existência é pacata, e poderia se dizer que o autor tenta o tempo todo destacar o quão vazia também é. De fáceis palavras, letra grande, narrado por um narrador onisciente, o romance vai mais rápido que o Ligeirão (e que a piada seja perdoada).

Tudo vai bem até o dia em que Johnathan Noel encontra uma pomba na frente de sua porta quando ele saía para o trabalho. Uma pomba branca, que havia cagado em todo o corredor e espalhado penas brancas por todos os lados. A pomba, de frente para o próprio Noel, o encara com os seus grandes olhos. E isso é suficiente para o mundo de Noel entrar em total colapso.

Uma obra definitiva do caos, é A Pomba. Um mestre do caos, Patrick Suskind. E se você acha que uma pomba jamais teria tanto poder sobre um homem, essa é a obra certa.

“Só quando chegou ao patamar da escada foi que parou por um momento, para fechar o incômodo guarda-chuva e lançar um olhar para trás: os claros raios do sol da manhã entravam pela janela, moldando um bloco de luz de nítido contorno à sombra do crepúsculo do corredor. Quase não se podia enxergar através dele, e somente quando Johnathan piscou os olhos e fez força para olhar foi que viu a pomba soltar-se do canto bem escuro lá do fundo, dar alguns rápidos e inseguros passos para a frente e, então, voltar a sentar-se outra vez, exatamente diante da porta de seu quarto.
Virou de costas horrorizado e desceu a escada. Nesse momento, Johnathan teve a certeza de que nunca mais poderia retornar.”

Indicação da Amanda.
Bjaum pra vocês.
[you see, but you don’t observe]