quinta-feira, 25 de julho de 2013

a máquina de fazer espanhóis, de valter hugo mãe -- Alfaguara, 2010; Cosac Naify, 2011


"com a morte, também o amor devia acabar.”

Um senhor de oitenta e quatro anos sofre a perda do amor de sua vida. Nos quase cinquenta anos que fora casado, amou sua mulher a cada instante, e protegeu sua família o quanto pode. Barbeiro durante a ditadura salazariana, nunca se mostrou contrário ao regime, a fim de proteger aqueles que tanto prezava. Após a morte de laura, sua mulher, antonio jorge da silva é mandado para uma casa de repouso com outras pessoas de faixa etária semelhante.

Nesse novo lar, o senhor silva chega muito a contragosto. Não quer saber de socializar com os outros moradores do lugar. Não quer saber do filho que nem se dignou a comparecer no enterro da mãe. Não quer nem encontrar com a filha que o pôs lá. As coisas mudam de figura quando ele conhece o senhor esteves. E lhe juram que foi ele o rapaz que inspirou Fernando Pessoa a construir o personagem em seu famoso poema Tabacaria. Desconfiado a princípio, senhor silva demora a acreditar que tal figura emblemática não apenas existiu, como está ali, morando consigo, no mesmo lugar.

Ao passar do tempo vai fazendo amizades. Sempre refletindo sobre sua vida, como a velhice não lhe trouxe assim tanta sabedoria, como o remorso é um sentimento que sempre vai existir em qualquer vida que já tenha sido necessário fazer escolhas, como ao envelhecer não se quer mais aprender, e sim começar a esquecer das coisas. Cada personagem é único dentro do lar feliz idade. Uma pequena nação se cria ali dentro. Todos com suas mais tremendas peculiaridades. Porém, como era de se esperar, muitos deles não terminam o livro conosco. Ficam por entre as páginas, nos deixando suas memórias como nos foram ditas. Suas desilusões, suas casmurrices. Mas sempre com algo a nos deixar encantados, render boas risadas. Porque ficar velho não parece dizer manter-se constantemente com a ideia de morte iminente, mas sim uma fase da vida como outra, com suas próprias dificuldades e preocupações e momentos agradáveis.

A parte política do livro também é muito forte. O título vem da ideia de como Portugal seria um país que cria seus cidadãos juntamente com vontade de deixá-lo. E está sempre a pontuar o fascismo que até os bons homens cometem diariamente.

O livro não usa letras maiúsculas a não ser por dois capítulos dos vinte e dois. O mesmo vale para travessões, aspas, pontos de exclamação e interrogação e até mesmo a justificação das linhas. A princípio a estranheza causa certa dificuldade para entender. Principalmente nas primeiras duas ou três páginas. Depois disso o mecanismo começa a ser compreendido normalmente e a gente nem sente falta dessas marcações que parecem tão impossíveis de viver sem.

O livro está repleto de sentimento. Não só amor, não só remorso. Mas amizade. Coisa que senhor silva teve de esperar muito para conhecer. Ele nos narra a paixão por seus amigos e demais colegas no lar quase com a mesma intensidade que fala da falecida esposa. E mesmo que pássaros negros venham aparecer na sua janela quase toda noite, ele tem onde recorrer. O atribuir de significado que damos às coisas e às pessoas torna tudo diferente. E nunca se está velho demais pra aprender isso.

Claro que saudade é outra coisa que não poderia ficar de fora. A despedida forçada nos traz esse desconforto generalizado, essa sensação de impotência.

Queria fazer uma resenha séria sobre esse livro. Poder demonstrar ao máximo o quanto ele é bom. Despertar o interesse em cada pessoa que lesse esse meu texto de procurar algo mais sobre ele e lê-lo o quanto antes. É assim que a gente se sente depois de se deparar com um trabalho de gênio. E o pior de tudo, é que não dá pra pensar direito em como pontuar tudo isso. Acho que direcionei sentimentos demais para esse livro pra poder analisá-lo friamente. Quem sabe ele tenha ou me dado em demasia ou me tirado por completo a metafísica.


Chegando ao final do livro, fiquei temendo o último ponto -- como se fosse, também, fosse terminar minha própria vida. Talvez estivesse enlouquecendo, mas poderia jurar que ouvia o senhor medeiros, aquele senhor que, diziam, já se encontrava impossibilitado de falar, a me chamar de filho da puta e me desejando a morte. Mas é provável que fosse apenas uma voz externa, de outro mundo, a me dizer que era hora de deixar o feliz idade e dar lugar a outro ocupante. Como a maioria das despedidas, foi difícil. E quando o momento veio, fechei o livro com a certeza que voltaria a admirar aquelas lápides, nem que fosse apenas para dançar em cima das flores.

Um trecho, por fim:

“preparem-se sofredores do mundo, o tempo não é linear. o tempo vicia-se em ciclos que obedecem a lógicas distintas e que se vão sucedendo uns aos outros repondo o sofredor, e qualquer outro indivíduo, novamente num certo ponto de partida. é fácil de entender. [...] perdemos alguém, e temos de superar o primeiro inverno a sós, e a primeira primavera e depois o primeiro verão, e o primeiro outono. [...] e também é preciso superar a primeira saída de carro a sós. o primeiro telefonema que não pode ser feito para aquela pessoa. a primeira viagem que fazemos sem a sua companhia. os lençóis que mudamos pela primeira vez. as janelas que abrimos. a sopa que preparamos para comermos sem mais ninguém. o telejornal que já não comentamos. um livro que se lê em absoluto silêncio. o tempo guarda cápsulas indestrutíveis porque, por mais dias que se sucedam, sempre chegamos a um ponto onde voltamos atrás, a um início qualquer, para fazer pela primeira vez alguma coisa que nos vai dilacerar impiedosamente porque nessa cápsula se injeta também a nitidez do quanto amávamos quem perdemos, a nitidez do seu rosto, que por vezes se perde mas ressurge sempre nessas alturas, até o timbre da sua voz, chamando o nosso nome ou, mais cruel ainda, dizendo que nos ama com um riso incrível pelo qual nos havíamos justificado em mil ocasiões no mundo.”

Indicação do Guilherme
[parangaricutirimírruaro]

quarta-feira, 19 de junho de 2013

A partir de amanhã eu juro que a vida vai ser agora - Gregorio Duvivier


Eu não gosto de poesia. 

É sério, não gosto mesmo. Talvez porque eu nunca soube lê-la. Eu faço leitura dinâmica – e pra poesia, essa é a maior das desvantagens. O que eu lia (rápido demais) eu não absorvia e quando chegava na estrofe do meio já estava perdida. Dessa forma, eu sempre preferi a prosa do romance, a prosa contista e suas infinitas possibilidades passíveis de leitura dinâmica. Me julguem.

Ficou sendo um pré-requisito: se tinha espaços em branco demais dos lados da página, eu não lia. E minha vida foi prosseguindo tranquila dessa maneira até que eu passasse a notar mais um certo ator que faz parte do Porta dos Fundos, o canal de esquetes no Youtube.

O nome do ator é Gregorio Duvivier, sobre o qual eu não sabia nada. Assistindo aos vídeos como uma legítima pessoa desocupada, passei a notar devagar algumas características do humor do ator e o fantástico trabalho de atuação que eu via evidenciado em contraste com os diversos tipos de humor no coletivo.

Uma coisa puxou a outra e eu saí numa corrida desenfreada pela internet atrás do trabalho de Gregorio Duvivier. Foi então que eu descobri meu mais novo ator-favorito-de-todos-os-tempos. Assisti filmes, li resenhas, morri de raiva por ter perdido uma peça que veio há dois meses atrás pra Curitiba até que finalmente topei com a informação de que ele tinha escrito um livro.

Glória. Até eu ver que não era de prosa, era de poesia. Ê vida.

Resolvi arriscar tudo e mandar velhos preconceitos para o ar – afinal, 64 páginas não iam ser um sofrimento dos maiores – e foi a melhor decisão do mês.

Diferentemente de um humor rasgado, cômico, que traz fatos do cotidiano e que provoca aquele riso instantâneo do qual não é possível escapar, Duvivier traz na sua carreira uma vibe diferente: um humor agridoce e nonsense, contrastado com a tristeza e as suas infinitas possibilidades de variação e criação.

A verve bem chaplinesca (que se façam todas as reservas) do humor do cara me agarrou de jeito e não teve mais solução. “A partir de amanhã eu juro que a vida vai ser agora” reflete nas suas 64 páginas justamente todo um humor agridoce e reflexivo, que te faz ler cada poema de novo e de novo, e depois o livro, milhares e milhares de vezes, até que você se sinta desesperado e saia numa busca insana por um exemplar pra chamar de seu.

É evidente que eu não entendo porra nenhuma de poesia. Não sei o que são sonetos nem me interesso pelo movimento [insira um nome aqui]. Foda-se. E eu acho que é justamente aí que nasceu o meu encanto por essa poesia em particular, que apesar de guardar todas as suas características técnicas e de receber influência de diferentes movimentos, também consegue se expressar numa beleza doce, de um jeito que te faz soltar aquele riso no canto da boca, de querer descer a escada e declamar o livro pra sua mãe.

Do hilário ao filosofia de vida, da melancolia ao sorriso, alguns poemas podem te fazer bem às três da manhã de uma quarta-feira mesmo quando tudo está errado. Se está tudo errado e faltam apenas os poemas, eu sugiro os de Duvivier.

E eu sinceramente queria transcrever todos, andar com o livro pendurado no pescoço, copiar e colar na carteira, na parede, na janela do ônibus. Mas eu só vou transcrever um porque estou com preguiça.

“o meio de todas as coisas
entre o fim do começo e o começodo fim toda coisa tem uma massainerte feito ponte pela qualpassamos distraídos – ou não:os astecas sentiam chegar o exatomomento do meio da vida, o momento em queo que já vivemos é exatamenteigual ao que ainda não vivemos- e nesse momento preciso o maiscomum dos astecas sentia uma súbitae inexplicável vontade de tomar um tremmas como ainda não o tinham inventadoele acabava por entristecer-se.(daí a tristeza, essa vontade de algoque ainda não inventaram)”

Indicação da Amanda
[não tenho nada pra por entre colchetes no dia de hoje]

sexta-feira, 7 de junho de 2013

O Quieto Animal da Esquina, de João Gilberto Noll -- Rocco, 1991; Francis, 2003



“Encontrei um bicho horrível debaixo do fogão. Poderia ser uma aranha mas mais se assemelhava a um verdugo. Eu estava ajoelhado e o esmaguei com a base do lampião.”

Um poeta marginal de dezenove anos que perambula pelas ruas de Porto Alegre, sem dinheiro no bolso nem perspectivas de vida que não a exclusão social. Abandonado pelo pai, mora num edifício abandonado com sua mãe, assim como mais umas tantas famílias.

Após sua mãe o deixar sozinho para ir morar em outra cidade, acaba condenado por um crime e vai para uma instituição correcional. Fica lá por algum tempo (não sabe quanto) e chega a hora de sair. Quando vai embora, entretanto, é adotado por uma casal de alemães que vive um pouco mais no interior do estado gaúcho e passa a viver sob os cuidados dessa nova família, que não lhe exige nada em troca.

Escrito em capítulo único e em primeira pessoa, Noll dá vida à um personagem que está confuso com sua própria vida e que não percebe a velocidade com a qual ela passa. De repente se dá conta e alguns anos ficaram pra trás, causando uma sensação de estranheza no leitor, como que fazendo uma não-linearidade disfarçada. A linguagem usada por ele também é típica dos jovens marginais, ao mesmo tempo seca e lírica, com frases longas que seguem a linha de raciocínio imediatista do jovem protagonista anônimo.

Muitas vezes ele não entende até onde vai sua liberdade dentro de sua nova casa. Ao mesmo tempo que se sente acolhido, se sente um intruso naquele lugar. Tenta se aproximar, mas sem chegar perto demais. E anota tudo mentalmente, pra talvez depois escrever um poema. Descreve os sentimentos alheios com muito mais precisão que os seus, percebe a raiva causada pela morte, seguida pelo desamparo, ficando sem reação, a não ser seguir seus instintos, meio certeiro, meio desconfiado, como um bicho cabisbaixo que sabe a hora de vir e a hora de ir embora, dizendo muito mais com os silêncios do que com grunhidos.

Como sempre, um trecho:

“O que ele fazia ali, na cozinha, com os braços sobre a mesa, a luminária baixa aclarando principalmente as mãos de veias dilatadas, o que ele fazia ali àquelas horas da noite quando cheguei no casarão, o que fazia ele, Kurt, como eu nunca o tinha visto, parecia que tinha como que encolhido, sim, ele antes tão imponente agora um homem todo acanhado no tamanho, ali sentado na cozinha debaixo da luminária baixa, ah, havia um copo, mais adiante a garrafa de uma cachaça chamada Isaura, ao lado uma de coca-cola, vazia, viva o samba-em-berlim rosnei, peguei o guardanapo de papel com o poema que eu guardava no bolso desde o embarque no Galeão, ainda não me ocorrera um nome para ele, me perguntei se “O quieto animal da esquina” não seria o título que aquele poema estava pedindo, Kurt veio com olhos para mim, levantou o copo como se me saudasse, ah, ele estava bêbado, não sabia o quanto, apenas o silêncio daquele copo na mão, eu na porta da cozinha pensando ser a primeira vez que via Kurt bêbado, fiquei pensando na porta da cozinha se eu queria realmente entrar, continuar a farsa que agora se desfraldava assim, Kurt segurando trêmulo o copo no alto, me saudando, eu não o suportaria bêbado, Kurt não, a noite estava por um fio, eu pressentia, aquilo que eu observava era um convite,(...)” 

Indicação do Guilherme
[parangaricutirimírruaro]

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Sinuca Embaixo D’água, de Carol Bensimon -- Companhia das Letras, 2009



“Você vai ao banheiro e, assim que a cabeça se põe a funcionar, você se depara com a velha novidade.”

Antônia bateu o carro e morreu. Parece spoiler, mas não é. Isso nos é apresentado logo no início do livro. E mesmo sabendo disso, ainda causa uma estranheza ler uma personagem falando de outra que não está mais ali, porque pra nós ela nunca esteve ali. Ou talvez nunca tenha deixado de estar.

Cada capítulo é narrado por uma personagem diferente. Alguns aparecem apenas uma vez, para dar um entendimento de como a morte de Antônia afetou suas vidas de algum modo. Mas há também aquelas que se repetem, que são Bernardo (amigo próximo de Antônia), Camilo (irmão de Antônia) e Polaco (dono do bar que ela costumava ir com os amigos).

Carol Bensimon conseguiu empregar vozes diferentes no decorrer do livro com muita propriedade, conseguindo alternar entre o tímido Bernardo e o rebelde Camilo, dando a personalidade devida para cada um na forma de escrever. Os diálogos geralmente estão inseridos dentro dos parágrafos, sem qualquer sinal de que aquilo é uma fala que não seja a nossa percepção de leitor. Mas há momentos em que ela prefere abrir novo parágrafo, por travessão e deixar o personagem falar pra fora, além dos pensamentos que acompanhamos.

Polaco, apesar de abatido, parece mais preocupado com seu passado, que aparenta estar de alguma forma voltando para lhe assombrar. O que ele não entende muito bem por que, nem como seria possível. Já Lucas é uma criança que por acaso ouviu o acidente da janela de seu quarto, narrando com toda sua inocência o que aconteceu na fatídica noite, segundo sua visão. A magnitude do acidente chega a atingir pessoas desconhecidas, já que depois do acorrido uma campanha de segurança no trânsito começa a se propagar pelo local.

A obra toca em pontos delicados. A preocupação com o que realmente aconteceu está lá. O sentimento de culpa de achar que poderia ter evitado o pior está lá. A impotência de que não há mais nada a se fazer está lá. O passado e o presente tendo que se enfrentar para que surja o futuro está lá.

Quando a morte te atinge de algum modo é praticamente como se um pedaço seu morresse também. A gente precisa reconstruir uma base de pensamento e começar a assimilar que alguém muito próximo não vai mais estar ali – a não ser em memória. E é isso que os personagens principais desse livro fazem. Se deparam com lembranças de alguém que se foi enquanto a vida deles continua. A única saída é aprender a lidar com isso. É treinando que se aprende a jogar.

Um trecho da personagem Polaco:

“Os outros precisavam ser lembrados. Eu precisava é ser esquecido. mas eles faziam o coro do você deve ficar, ficar e ter uma família (mas não com a Rosa). É algo que simplesmente emana das pessoas até que seja mais do que a vontade de uma ou de um grupo delas, até que seja a própria cidade se dobrando ao seu redor. Eu sempre fui assim, insatisfeito com o que já tinham escolhido para mim mesmo antes de eu nascer, e vai ver por isso que meu pai tinha aquela cara. Só comigo. Uma cara de descrença generalizada, a boca salivando a antecipação do meu erro. O meu erro era a sua grande vitória. Mas o que fazer com o que fica a meio caminho de qualquer entendimento, o que fazer com todo esse bolor? Deixo longe. Não sou burguês de ir em terapia, nem acredito na cura pela conversa, num deitado e noutro sentado, e na falta do olho no olho. Você fala o que queria esquecer, eles anotam para poder lembrar, e se tanto, porque é impossível que estejam fazendo listas de compras durante a conversa, desenhos abstratos, e eu entendo, a minha conduta é exatamente a conduta do não se meta no problema dos outros. Não parece nada digno. E não é. Mas sei que honra também é luxo.
Antônia era ainda uma garotinha quando eu cheguei aqui, parada na frente de casa e olhando seu cata-vento girar. Talvez tenha sido isso, a vontade de ficar neste lugar, que me fez ver o bar e a placa de Precisa-se.(...)Isabel me abre a porta, com uma velha camiseta do Mickey e uma bermuda. Como se jamais fosse receber uma visita novamente.
– Oi, Alexandre.
Retribuo um leve sorriso que surge, e pergunto se Camilo está em casa. Ele foi viajar, ela diz, com uma tristeza de saber que era ele quem eu procurava, ou desapontada com Camilo por ele não estar aqui agora. Hesito por alguns instantes e sigo parado em frente da casa, olhando pra baixo, Isabel com a porta aberta esperando. Quer que eu dê algum recado?, ela pergunta. Eu a encaro, e de repente posso ver no seu rosto que faria bem para ela se eu perguntasse, se eu perguntasse sem pudores e sem medo das lembranças que viriam. Então eu pergunto.
– Pode parecer besteira, mas será que você se lembra daquele cata-vento?
Ela sorri pra valer, e me pede pra entrar.”

Indicação do Guilherme
[parangaricutirimírruaro]

terça-feira, 14 de maio de 2013

Preciosa - Oprah Winfrey


Eu sei, eu sei, faz um tempo que não apareço – e infelizmente, não voltarei antes de outro bom tempo. Ya, brows, comunico que devido a alguns contratempos na minha vida eu estou meio sem tempo/disposição para escrever, e por isso, hoje eu posto a minha última resenha.

Escolhi esse livro em particular pra poder fechar minha participação na Posso te indicar um livro? com chave de ouro, tendo certeza de que ela ficará em muito boas mãos. Pretendo ainda aparecer com trechos e alguns escritos, mas isso fica pra depois.

Muita gente conhece Preciosa (Push, no inglês original) por causa do filme, aclamado pela crítica, com alguns Oscar, bláblábláblá. Não interessa, não quero falar do filme – mesmo que eu só tenha descoberto a existência de um livro quando o exemplar me olhou de uma prateleira na Americanas, pedindo pfvr Amanda gaste todo seu dinheiro.

Eu gastei, e não me arrependo. Push é uma experiência surreal – irônico, porque fala de experiências muito reais, mesmo que a história em si seja ficção. Esse paralelo realidade-ficção já começa no nome da autora Sapphire (que eu não sei nem pesquisei, mas deve ser um pseudônimo), da personagem principal, Precious (na tradução, Preciosa), Blue Rain, o nome da professora de Precious; nomes de fantasia que contrastam muito bem na pegada real da história. Jogar esses nomes de fantasia num bairro negro e pobre dos EUA, o Harlem, e colocá-los no centro de histórias tão amargas é uma sacada brilhante num primeiro romance da autora recheado de elementos que denotam incrível habilidade em escrever e convencer.

Precious é uma adolescente negra, obesa, grávida pela segunda vez do próprio pai. Ela sofre abusos sexuais, físicos e psicológicos desde que consegue se lembrar, transformando sua vida numa nevoeiro permanente de memórias, dor e sonhos. Sua primeira filha (e irmã) nasce quando Precious tinha 12 anos e é portadora da Síndrome de Down e mora com avó. A adolescente mora com a mãe, que recebe dinheiro da previdência social para criar a filha e neta – mas o que na realidade acontece na vida de Precious é observar sua mãe passar todos os dias, dia após dia, em frente à televisão, comendo. Não bastasse os abusos sofridos pelo pai, a garota também sofre violência física e sexual da mãe.

Vivendo no próprio inferno, ela nos encontra sendo expulsa da escola e sendo indicada para uma escola de ensino alternativo, onde aprende, além da alfabetização básica – uma vez que seus anos de escola foram inúteis no turbilhão de sofrimento psíquico que vive desde que se lembra – noções sobre si, aprende a dar e receber o afeto que nunca teve e encontrar seu próprio lugar no mundo.

Como o Entertainment Weekly definiu tão bem, "você testemunha o nascimento de uma alma" ao terminar a história de Precious – que apesar de tudo, deixa aquela sensação de que no fim de tudo, jamais haverá um final feliz. Não quero nem comentar o subtítulo brasileiro "Uma história de esperança" porque eu não enxergo isso na história de Sapphire. A história de Sapphire é antes de tudo, uma crônica amarga sobre a incompreensibilidade humana.

Eu não quero dizer que a história ilustra a falta de sensibilidade para com nossos semelhantes ou qualquer bobagem filantrópica do gênero. O que eu guardei da história de Precious foi uma gigante interrogação. Você acompanha Precious no seu refúgio, na escola alternativa Cada Um Ensina a Um, você a vê tentando não se afogar no próprio nevoeiro e tentando transformá-lo no mais doce dos sonhos. Você conseguiria terminar o livro com uma mensagem positiva – mas você se depara com a humanidade no meio do caminho. Eu acho que isso o filme ilustra muito bem na cena em que Precious e sua mãe se encontram no escritório da previdência social, na qual a mãe da adolescente diz que poderiam haver milhares de julgamentos e de desculpas, mas não haveria nada no mundo que preenchesse sua solidão enquanto o homem que abusava de sua própria filha não estivesse ao seu lado na cama. A mãe de Precious amava o estuprador da própria filha.

Isso tudo converge novamente para nossa própria e imensa incompreensão a respeito de nós mesmos. Nós estamos tão corrompidos, distorcidos, presos a significações sociais e morais que esquecemos de compreender nossa própria natureza antes mesmo de condenar (ou nos compadecer da) a próxima.
Precious é o testemunho disso. Seu afogamento naquela realidade nojenta não é um afogamento solitário – há sempre mais e mais almas que não se compreendem se afogando em pântanos semelhantes. Se elas precisam de ajuda? É claro que não nego. Mas eu não acho que a ajuda seja apenas para Precious. Seja para todos nós, perdidos de maneiras semelhantes.

Narrado em primeira pessoa e no próprio dialeto coloquial do Harlem, com os erros de concordância e de ortografia, o livro percorre a confusão mental de Precious e nos insere em todas as outras ao terminar com as histórias escritas pelas colegas de classe na escola alternativa da protagonista – todas diferentes e semelhantes.

Eu digo que a mensagem final não é feliz porque eu não terminei o livro me compadecendo de histórias semelhantes. Eu terminei o livro chocada pela sua realidade abrangente, não de abuso, violência ou pobreza – embora ela seja caracterizada por esses elementos – mas sim chocada pelo meu próprio reflexo naquela confusão mental e tomada pela idéia de que seremos sempre incompreendidos e incompreendedores.

Bjão.

Indicação da Amanda
[you see, but you don't, you never observe]

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Ainda Orangotangos, de Paulo Scott -- Livros do Mal, 2003; Bertrand Brasil, 2007



“(como cão, que são todos os homens)”

Por mais que os contos não sejam realmente bonitos, no sentido de serem uma história “agradável” de se ler, isso acaba virando um dos maiores atrativos do livro. Nas linhas de Scott, beleza e fealdade são como gêmeos siameses dividindo algum órgão vital. Do mesmo modo que ele consegue narrar um massacre na festinha infantil, ele conta do filho que toureia carros em homenagem a mãe recém falecida. Ambos de forma bela, sem deixar de ser um soco no estômago. Sempre há uma angústia presente, como solidão, raiva, medo. Mas há carinho, amor, proteção. Todos os instintos mais primitivos.

Nenhum conto é dos mais comuns nas suas estruturas. O maior desse livro tem seis páginas. Todos estão em parágrafo único. O primeiro impacto, então, fica na transmutação de vozes narrativas entre narrador e personagens, ou narrador/personagem e diálogos com outras personagens. Também o autor utiliza sem remorso (e com grande habilidade) os parênteses. E a linguagem sempre flerta com a prosa poética.

Algumas histórias (e o tamanho reduzido delas até ajuda nisso) é bom ler duas vezes. Além de uma ocasional não-linearidade, ele costuma entregar os personagens prontos. Não é um romance. Não dá tempo de desenvolver um personagem desde o início, e fazer o leitor, lentamente, afeiçoar-se a ele. É uma característica bem trevisaniana do Scott. Como se ele tivesse escrito muito mais do que ele nos mostra, uma vida inteira, talvez, mas ele nos dá um recorte da tal situação em específico. E é só ali que a ação acontece. Mas claro, há aqueles contos que são mais tranquilos e lineares de ler. Não se espante.

O cenário, quase sempre, é a cidade de Porto Alegre, a qual ele cita nomes de ruas várias vezes. Já os temas passam por futebol, preconceitos, drogas, moradores de rua, relações familiares conturbadas, senhoras ligando para mães de jovens mortos, paraplégicos perseguidos... uma porrada de coisas. Porém todos eles têm em comum essa frieza que tenta ilustrar o lado mais animalesco do ser humano. Não importando se esse é o comportamento natural ou se se está sendo condicionado a agir dessa forma. No meio de um mundo que se diz tão civilizado, histórias como essas nos fazem lembrar que a gente continua bicho.

Como são bem curtos, vai logo um conto na íntegra:

“Um Lugar Como Outro Qualquer
Foram mais de quatrocentos quilômetros. Apesar das dores nas costas, estou exultante, é nossa centésima apresentação. Tudo parece em ordem. Os convidados chegam aos poucos. A banda começa a tocar. O sujeito que nos contratou se aproxima (é um dos padrinhos do noivo), convida-me para um uísque na copa. Aceito. Ele enche meu copo como se estivesse fazendo grande favor, tira do bolso do casaco trinta notas de cinqüenta, conta uma por uma e as coloca sobre o balcão. Agradeço. Ele sai sem rodeios. Fico bebendo sozinho, provo uns salgadinhos e a salada de maionese. Termino o uísque, volto pro solão (está quase cheio). Os pares estão animados, a música dos garotos é boa, empolgo-me. Atravesso a pista em direção a uma das gurias que conversam eufóricas, próximo à porta de entrada, peço licença, convido uma delas pra dançar. Não danço com preto, ela responde. As outras riem, dizem que fez muito bem. Pelo jeito, aqui ninguém dança com o pessoal da minha laia. A mais bonita diz que aprendi rápido e me recomenda o puteiro perto do trevo de entrada da cidade: lá tem umas indiazinhas fedorentas que se tu pagar direitinho dançam contigo a noite toda. Riem ainda mais. Dou um passo à frente: não dançam com preto? Então, ninguém mais dança nesta merda. Emudecem por completo. Faço sinal pro vocalista, os músicos param imediatamente, começam a desmontar o equipamento. O sujeito que nos contratou se aproxima, devolvo-lhe o dinheiro, ele tenta argumentar, viro as costas, vou em direção ao microônibus. Ligo o motor, fico esperando. Assim que o último músico entra, arranco sem dar uma palavra. No terceiro quarteirão, um deles reclama: viemos até aqui pra não tocar... não acredito. Olho-o pelo retrovisor, respondo: vamos tocar sim e vai ser de graça... deixa só eu encontrar um tal lugar ali no trevo de entrada da cidade.”
Indicação do Guilherme
[parangaricutirimírruaro]

quinta-feira, 2 de maio de 2013

O Invasor, de Marçal Aquino -- Geração Editorial, 2002; Companhia das Letras, 2011



“Bem-vindo ao lado podre da vida.”

Vários livros viram filmes. E apesar de eu não ter falado sobre isso nas indicações em si, já indiquei dois livros que viraram. Um é o Cheiro do Ralo e o outro é Até o Dia em que o Cão Morreu. Por que falar disso agora? Porque Marçal Aquino é tanto um roteirista que escreve livros quanto um escritor que escreve roteiros. Tendo na sua lista de trabalhos, além do filme de O Invasor, os dois livros que citei que constam nas minhas indicações. Além disso, é comum que os filmes saiam depois dos livros. Aqui já temos uma exceção.

Mas primeiro vamos ao livro. Ivan e Alaor são dois engenheiros sócios numa construtora com mais um amigo dos tempos de faculdade. Por uma divergência de negócios, Ivan e Alaor decidem contratar Anísio para matar Estevão. Ao fazer contato com o assassino de aluguel, os dois demonstram-se, a princípio, intimidados. Mas o contato de Alaor que lhe indicou Anísio o deixa ter mais confiança.

O acordo é selado. Com a promessa de terem o “problema” resolvido rapidamente, Alaor convence Ivan a sair pra comemorar num puteiro, cujo o próprio Alaor é um dos donos. Ivan mal fala com a esposa há anos e tem casos extraconjugais regularmente. Confiante, Alaor se vê com o futuro pronto, cheio da grana. Entretanto, Ivan não parece mais estar de acordo com o plano. Alaor, certo que de vai dar tudo certo, disposto a tudo, precisa convencê-lo a não entregar o jogo.

A única felicidade de Ivan é uma garota que ele conhece num bar e que o faz esquecer dos problemas. De qualquer forma, o plano é concretizado. Ivan passa a conviver com a culpa do que fez. E como se não fosse suficiente, Anísio, que deveria ter sumido depois de receber o pagamento e realizar o serviço, surge na construtora para que possa trabalhar de “segurança” dos dois. Nenhum deles sabe o que fazer e são obrigados a conviver com esse invasor dentro de suas vidas. Pelo menos até que achem um jeito para se livrarem de outro fardo.

O narrador é Ivan, então temos sempre uma visão do que está acontecendo e um pensamento, apenas. A linguagem direta e com influências de romances policiais noir é a primeira coisa que chama a atenção. São os demônios de um único personagem que nos acompanham pelo livro. Ao contrário do filme que não possui qualquer tipo de narração em off. Acompanhamos a ação somente com aquela câmera onipresente no nosso papel que espectadores. Tudo ocorre com velocidade. E temas sensíveis são tratados com a dureza do mundo-cão no qual os dois quiseram se meter.

Nesse caso, não posso deixar de falar do filme.

Beto Brant (que dirigiu Cão Sem Dono, adaptação de Até o Dia em que o Cão Morreu) e Marçal são parceiros de longa data. Enquanto estava escrevendo O Invasor, Brant perguntou à Aquino sobre qual seria a próxima parceria deles. Sem pretensão de que aquilo virasse um filme, mostrou seus primeiros escritos do que viria a ser O Invasor. Beto Brant gostou e o convenceu de que deveriam escrever um roteiro. O ano era 1997.

Trabalharam no roteiro mas o filme iria sair só em 2001. Antes do lançamento, Brant convence Aquino novamente. Porém, dessa vez, a retomar o livro e terminá-lo como romance. Marçal se declara o tipo de escritor que deixa ser levado pelo livro, então quando começou não sabia onde ia dar. E o único jeito de tornar aquilo interessante pra ele, seria fazendo o livro em primeira pessoa.

Existem várias passagens do filme que não estão no livro. E vice-versa. Personagens que tem mais enfoque no filme e que não estão no livro. E vice-versa. Assim como alguns personagens que mudam de nome. Mas a história segue basicamente a mesma linha. É um livro que virou filme que virou livro de novo. Tanto que na primeira edição, o livro vem acompanhado de fotos do filme, com ficha técnica e o roteiro original utilizado. O que é muito útil pra nos dar uma noção de como são feitas as adaptações cinematográficas. Mesmo assim, os dois são muito crus e diretos no seu objetivo. Sem lenga-lenga. Afinal, não há tempo quando se está sendo invadido por todos os lados.

Vou deixar vocês com um trecho do filme e um trecho do livro:

http://www.youtube.com/watch?v=efenlo9Zc1s

“O carro de Estevão foi localizado às três horas da tarde da quinta-feita, no final de uma rua de terra no extremo sul da cidade.
Um homem viu o carro de manhã, quando passou a caminho do poço, onde os moradores do bairro se abasteciam de água. Achou estranho um carro daqueles parado próximo ao local que usavam como depósito de lixo. Mas não fez nada. Depois do almoço, o homem notou que dois garotos da redondeza rondavam o carro e calculou que eles plenejavam depená-lo. Então andou um quilômetro e meio até um orelhão e avisou a polícia.
O corpo de Estevão estava no porta-malas, com uma bala na cabeça. Embaixo dele, a polícia encontrou o cadáver de Silvana, com tiros no peito. Fazia menos de 72 horas que eu e Alaor tínhamos contratado Anísio.(...)Permaneci sentado ao lado da mesinha do telefone por um bom tempo. Sabia que nem adiantava tentar dormir, eu não ia conseguir.”

Indicação do Guilherme
[parangaricutirimírruaro]

domingo, 28 de abril de 2013

Eu e outras poesias - Augusto dos Anjos



“Quando plural e original podem ser sinônimos...” 
Ao abrir o livro que eu estou resenhando essa semana me deparei com um comentário de Olavo Bilac, sobre Augusto dos Anjos. O livro não traz nenhuma confirmação, apenas cita na introdução (na edição pocket da Lpm, para quem quiser confirmar) uma fala de Bilac,desdenhando o trabalho de Augusto dos Anjos.
Não tenho muito apreço pelo Olavo Bilac, e este não é assunto pra agora, o fato é que Olavo Bilac, considerado Príncipe dos Poetas, esteve a frente de uma escola literária brasileira que muitos devem conhecer chamada parnasianismo, Augusto dos Anjos viveu mais ou menos por aquela época, mas pertence a um período literário que não o de Bilac: O pré-modernismo, que como sugere a nomenclatura, é a produção literária que engloba os escritores e o mercado editorial que antecede o modernismo brasileiro, é uma fase de transição, O que configura que Augusto dos Anjos tenha a formalização e a perfeição advindas do Parnasianismo, movimento de Bilac, mas seja mais do que somente isso.
Eu e outras poesias, presente em várias edições, é a única obra publicada de Augusto dos Anjos, que morreu por volta dos 30 anos, e seguiu vários anos ignorado pela critica literária, Felizmente, e a introdução do referido livro comenta isso, a terceira edição de 1928 vendeu bem, e os gostos literários mudaram, ainda mais com a semana de 22, os anos da guerra, o que ajudou a não só divulgar a poesia de Augusto, mas também de alça-lo ao posto de um dos mais célebres poetas de literatura brasileira.
Por certo, você me perguntaria: Mas Aion? O que tem nessa poesia de tão fascinante, tanto, que você esta não só resenhando, mas indicando esse livro para que eu leia. E aí eu te respondo: Tem tudo e não tem nada. Augusto dos Anjos, como eu comentei, viveu em um período de transição, antes do Modernismo explodir como movimento literário, Augusto exprime em suas poesias, muito da poesia formal sugerida pelo parnasianismo, a tal arte pela arte, mas não é só isso, Augusto traz mais, traz temas de interesse, apresenta poemas mais extensos, falando sobre sombriedades, sobre a vida, sobre a morte, sobre o amor, o tema universal que todo o poeta que se preze fala.
Complexo, genial e principalmente original, é difícil inserir Augusto dos Anjos, seja aonde ele é inserido normalmente pela critica literária, no Pré Modernismo, seja inseri-lo no Parnasianismo, ou até mesmo, chegamos a confundir as coisas e pensar que ele é um poeta importado lá da segunda geração do romantismo, e que devia ser amigo do célebre Álvares de Azevedo, Tudo isso gera uma confusãozinha básica, até mesmo pra quem não estuda literatura e só lê essas maravilhas, porque? Porque Augusto dos Anjos é plural, ele é muitos poetas em um só, ele é parnasiano, é romântico, é pré-modernista, é modernista, é barroco, é simplesmente fantástico, e toda essa pluralidade pode ser observada de forma excepcional no livro Eu, que reúne os poemas que Augusto escreveu por toda a sua vida.
Os temas sombrios, nos remetem ao amor da segunda geração do romantismo, mas todos eles tem um quê de novidade, um quê, de algo a mais, de originalidade.
Você inclusive deve conhecer Augusto dos Anjos, não? Talvez estes três versos ajudem: Vês! Ninguém assistiu ao formidável/Enterro de tua última quimera./Somente a Ingratidão - esta pantera , Lembrou? Das aulas de literatura? De alguma citação que você viu em algum livro? Não? Você deve ter lembrado... Sabe por que? Porque a originalidade de Augusto dos Anjos é tamanha, que não só o poeta tornou-se um dos mais célebres poetas já vistos no Brasil, como os três versos aos quais eu fiz menção, pertencentes ao delicioso soneto Versos Íntimos, tornaram, de certa forma, uma referência clássica quando se fala de literatura brasileira. E isso só corrobora com tudo que eu disse até aqui: Augusto dos Anjos é simplesmente maravilhoso e você, meu pequeno jovem leitor, deve se entregar ao prazer da leitura, e descobrir sozinho porque Augusto dos Anjos é tão maravilhoso...

Segue, é claro, na integra o soneto Versos Íntimos, e logo abaixo um trecho de outra célebre poesia do autor: Monólogo de uma sombra.
“Vês! Ninguém assistiu ao formidávelEnterro de tua última quimera.Somente a Ingratidão - esta pantera -Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!O Homem, que, nesta terra miserável,Mora, entre feras, sente inevitávelNecessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!O beijo, amigo, é a véspera do escarro,A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,Apedreja essa mão vil que te afaga,Escarra nessa boca que te beija!”
"Sou uma Sombra! Venho de outras eras,Do cosmopolitismo das moneras...Pólipo de recônditas reentrâncias,Larva de caos telúrico, procedoDa escuridão do cósmico segredo,Da substância de todas as substâncias!
A simbiose das coisas me equilibra.Em minha ignota mônada, ampla, vibraA alma dos movimentos rotatórios...E é de mim que decorrem, simultâneas,A sáude das forças subterrâneasE a morbidez dos seres ilusórios!
Pairando acima dos mundanos tetos,Não conheço o acidente da Senectus- Esta universitária sanguessugaQue produz, sem dispêndio algum de vírus,O amarelecimento do papirusE a miséria anatômica da ruga!
Na existência social, possuo uma arma- O metafisicismo de Abidarma -E trago, sem bramánicas tesouras,Como um dorso de azémola passiva,A solidariedade subjetivaDe todas as espécies sofredoras.”[...]

Por fim, gostaria de declarar, que resenhar poesia pode ser por vezes difícil e complicado. Por quê? Porque é difícil em poucas linhas, falar com propriedade de algo tão maravilhoso, então espero, e tento sempre, instigar quem acompanha as resenhas, para que a pessoa sozinha consiga encontrar todas as coisas que eu encontrei, ou até mais coisas, e assim aproveitar ainda mais do livro resenhado.

Indicação do Aion.
[chega de chegar, depressa é muito devagar]

quinta-feira, 18 de abril de 2013

O Mez da Grippe, de Valêncio Xavier -- Fundação Cultural Casa Romário Martins, 1981; Companhia das Letras, 1998


“Muita gente ficou com o juízo abalado. Por causa da febre forte dias e dias.”

Ouvimos falar em poesia concreta já nos tempos de colégio. A vanguarda que queria explorar todos os espaços da folha e usar da imagem com tanta propriedade quanto as palavras. Até aí tudo bem. Susse. O que não é muito comum de se ouvir é sobre prosa concreta...

Utilizando imagens por todo o decorrer do livro, Valêncio Xavier constrói uma narrativa sobre os tempestuosos dias de epidemia de gripe espanhola em Curitiba, entre outubro e dezembro de 1918. Por vezes colocando fotos da época nas páginas e noutras gravuras de pessoas que representam os cidadãos. Na maioria das vezes, porém, ele usa manchetes e trechos de reportagens jornalísticas para nos contar o que era dito à população em meio àquele desespero. Um dos primeiros recortes, inclusive, é uma matéria em branco, intitulada “A Influenza” e com seu desenvolvimento em branco, como crítica à censura sofrida, numa tentativa do governo de abafar o caso e evitar a preocupação do povo.

O livro começa com uma nota do Sr. Dr. Trajano Reis, diretor do Serviço Sanitário, nos contando como teria chegado a influenza por essas bandas, para logo depois Valêncio Xavier usar os recortes de jornais a fim de dar as primeiras notícias dos impactos que a doença começava a causar. Intercalados com as chamadas “fontes oficiais” estão os depoimentos de Dona Lúcia, concedidos em 1976, falando sobre os atribulados dias da gripe do ponto de vista de quem os viveu, e com a coloquialidade que não era possível ser empregada pelos jornais.

Vale lembrar que no fim de 1918, estava chegando ao fim a Primeira Guerra Mundial, portanto tratava-se de um assunto também muito tocado pelos periódicos que circulavam pela cidade de Curitiba, assim como de todo o mundo, e que não são deixados de fora.

A obra vai se desenvolvendo conforme acompanhamos as notícias e os depoimentos. Vamos percebendo o agravamento da epidemia e as tentativas da gestão pública de tranquilizar as pessoas, seja dando conselhos sobre como se prevenir da doença ou ocultando informações, como número real de óbitos causados pela doença.

Além desse recorte factual histórico, é possível notar também uma vontade de mostrar os comportamentos da época. O nacionalismo exacerbado causado pela guerra que era demonstrado nos jornais, os anúncios de creolina e xaropes, prometendo ajuda na prevenção e na cura da influenza. Assim como as notas de homens públicos como o prefeito e o diretor do serviço sanitário.

Como se tudo isso já não fosse experimental o suficiente, a gramática utilizada é a mesma da época. Várias grafias que já foram modificadas ene vezes estão ali, para nos fazer sentir mais próximos do período narrado. Fica incerto, também, o quanto é ficção e o quanto é real, já que nem todas as notícias são imagens, mas sim transcrições, algumas com data e algumas sem. Ou se Dona Lúcia é de fato um sobrevivente da época. Talvez mesmo se fosse tudo verdade, Valêncio preferisse que assim não parecesse. Um narrador poeta desconhecido volta e meia nos dá o ar da graça com alguns versos um tanto lascivos. Um trabalho de gênio.

A princípio até soa meio estranho e a leitura pode parece intrincada. Mas muito pelo contrário. A dinâmica jornalística dá gás para a leitura e a deixa correr livre. Se o leitor for de ou conhecer Curitiba ainda ganha o bônus de ver as fotos das ruas da cidade na época em que menos de 100mil pessoas habitavam a região. Enfim... é uma leitura rápida mas que cativa pelo seu ar de inovação narrativa, tanto nas linguagens que são utilizadas, quanto pela mescla de romance histórico com ficção.

Só pra dar uma ideia, mais ou menos, de como fica: http://migre.me/eakW9 e http://migre.me/eal0B (poderia ser melhor, mas em qualidade boa não há tanta coisa na internet) e mais alguns trechos:

“Varias

Phenomeno unico na vida coritibana accentuando o contraste de somente em epoca de epidemia ás portas do Estado e quando se pretende espalhar pânico isto se dar: há trez dias que não é registrado um só óbito numa população de 80 mil almas.

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Hotem, na rua Marechal Deodoro, no trecho entre as ruas Primeiro de Maio e Floriano Peixoto, estava sendo descoberta, com grande perigo para a saúde publica, uma parte da rede de exgottos, pondo ao sol um lodo podre e capaz de infeccionar o ambiente.”

“Quando de fadiga não puderam os coveiros abrir sepulturas, mandei gratificar a outros indivíduos para que as fizessem, de modo a evitar a decomposição dos cadáveres.

Relatório do Se. Dr. Trajano Reis, director do Serviço Sanitário”

Indicação do Guilherme
[parangaricutirimírruaro]

terça-feira, 16 de abril de 2013

As vantagens de ser invisível - Stephen Chbosky


Deixei pra postar hoje, não ontem, porque queria terminar justamente esse livro da indicação. E calme-se, porque não enlouqueci e estou recomendando livros adolescentes: indicar As Vantagens de Ser Invisível tem lá suas vantagens. Embora o autor do livro seja o responsável pela adaptação ao cinema, eu quero esquecer o filme um pouco (embora eu o tenha assistido antes de ler o livro) e focar na obra de origem, que é mais do âmbito aqui da página.

Não recebi o livro com tanta desconfiança porque já havia assistido a adaptação, mas, se eu não o tivesse feito, relutaria muito em ler algo que logo na capa diz “Jovens leitores”. Não que eu tenha problemas com os jovens leitores em si, ao contrário, acho ótimo que uma nova geração seja chamada especificamente de volta à literatura. No entanto, os textos com que os novos leitores têm sido fisgados são geralmente uma literatura mais marketing, pouco complexa, mal escrita e que no fim, repetem sempre os mesmos clichês e bloqueiam o acesso a um nível mais elevado (sim, eu hierarquizo literatura, beijão!). É o caso dessa nova mania de sagas: inventar uma história e reaproveita-la por mais alguns volumes, faturando outro tanto com a franquia no cinema.

Foi uma grata surpresa, então, assistir e ler As Vantagens de Ser Invisível. Diferentemente da reafirmação de clichês E GRAÇAS A DEUS sem volumes subsequentes, Chbosky soube discutir através de Charlie, adolescente de 15 anos que acabou de entrar no ensino médio, drogas, sexo, rock, sociabilidade, transtornos psiquiátricos, abuso, família, ambiente escolar, enfim, tudo de extrema pertinência exatamente para o leitor que é o público alvo de acordo com a capa: o jovem leitor.

Charlie, adolescente dos anos noventa, tem um sofrimento psicológico relativo ao suicídio do melhor (e único amigo) e da morte de sua tia quando era criança. Ao entrar no ensino médio, ele acabara de passar uma temporada internado em um hospital psiquiátrico, e agora começa o novo curso com o objetivo de sociabilizar-se para impedir que tais problemas ocorram novamente. No entanto, Charlie é extremamente tímido, tem pouco tato social e sempre viveu com sua família, não sabendo se inserir em novos grupos.

Duas características do garoto acertam em cheio logo na primeira página leitores como eu ou você, que tiveram uma adolescência mais ou menos semelhante ao do protagonista: ele é viciado em leitura, escreve bem e é muito observador. Ao ser “invisível”, Charlie se põe com facilidade a compreender os outros e suas dores; capta detalhes que fazem com que compreenda muita coisa desse universo adolescente.

No entanto, Charlie é inocente. Isso fica evidente enquanto ele vai fazendo suas descobertas com seus novos e únicos amigos do ensino médio: um grupo de veteranos que está prestes a ir para a faculdade. Ao se envolver com o sexo, as drogas e o rock, Charlie traz à tona um mundo que todo adolescente desconhece e contra o qual luta desesperadamente para tentar compreendê-lo e nele se inserir.

Vale comentar que Charlie faz amizade com seu professor de língua inglesa (um equivalente a literatura) e este vai lhe dando livros ao longo do ano e investindo na capacidade de Charlie de escrever. Chbosky é sensacional aqui: como é Charlie que narra em primeira pessoa, em cartas a um amigo desconhecido, o autor vai progredindo na capacidade de escrita junto com Charlie. No começo o texto é hesitante, talvez mal construído. Depois, Charlie vai escrevendo cada vez melhor e Chbosky também, organizando para seu protagonista estruturas e complexidade de texto, numa perfeita simbiose autor-personagem.

Para terminar, é válido puxar a maneira com que o autor usa Charlie para discutir sofrimento mental, resultando num relato tragicômico sensacional. Definitivamente, este não é um livro pertencente às prateleiras da geração teen dos clichês e dos vampiros.

“Querido amigo,Agora são quatro horas da manhã e é Ano-novo, embora ainda seja 31 de dezembro, isto é, até que as pessoa durmam. Não consigo dormir. Todo mundo está ou dormindo ou fazendo sexo. Fiquei assistindo à tevê a cabo comendo jujuba. E vendo coisas se moverem. Queria contar a você sobre Sam e Patrick, e Craig e Brad, e Bob e todo mundo, mas não consigo me lembrar direito agora.Lá fora está tranquilo. Sei disso. E fui de carro até o Big Boy mais cedo. E vi Sam e Patrick. E eles saíram com Brad e Craig. E isso me deixou triste, porque eu queria ficar sozinho com eles. Isso nunca aconteceu antes.As coisas ficaram piores há uma hora e eu estava olhando esta árvore, mas era um dragão e depois uma árvore, e me lembro de que o dia estava lindo quando eu fazia parte do ar. E me lembro de aparar a grama naquele dia para ganhar minha mesada, como estou removendo a neve da entrada de carros com uma pá para ganhar minha mesada agora. Então comecei a tirar a neve da entrada do Bob, o que é uma coisa estranha de se fazer em uma festa de Ano-novo. Meu rosto está vermelho de frio, como a cara de bêbado do Sr. Z e seus sapatos pretos e sua voz dizendo que quando uma lagarta vai para um casulo é como uma tortura, e como leva sete anos para um chiclete ser digerido. E aquele garoto, o Mark, na festa que me deu aquilo saiu do nada e olhou para o céu, e me disse para ver as estrelas. Então eu olhei para cima, e estávamos em uma cúpula gigante como uma bola de neve de vidro, e Mark disse que as estrelas muito brancas eram na verdade somente buracos no vidro negro da cúpula, e quando você foi ao céu, o vidro quebrou, e não havia nada, exceto um monte de estrelas brancas, que são mais brilhantes que qualquer coisa, mas não ferem os olhos. Era imenso, aberto e delicadamente quieto, e eu me senti muito pequeno.”

Indicação da Amanda.
Bjaum pra vocês.

[you see, but you don’t observe as Charlie does]

sábado, 13 de abril de 2013

Budapeste – Chico Buarque



“Apaguei a tevê, no Rio eram sete da noite, boa hora para telefonar pra casa; atendeu a secretária eletrônica, não deixei recado, nem faria sentido dizer: oi querida, sou eu, estou em Budapeste, deu um bode no avião, um beijo.”
Ao abrir Budapeste, várias coisas vem a nossa cabeça, para quem não conhece os romances do Chico, há de se pensar que é o cantor contando uma aventura dele em Budapeste. Mas não é, a medida que as páginas avançam, narrador (o livro é todo em primeiro pessoa) e autor se distanciam, e isto torna o livro simplesmente fantástico.

José Costa, um ghost writer, que trabalha numa agência com o amigo Álvaro, conta logo no inicio como acabou em Budapeste, graças a um pouso inesperado, a companhia acabou lhe ofertando uma noite num hotel, e ele então ligou a TV que apresentava uma jornalista falando em húngaro, nas palavras de Costa: “Dizem as más línguas, que o húngaro é a única língua que o Diabo respeita”. O fascínio do escritor pelo idioma, despertado na viagem é então trabalhado por todo o romance, assim como seus envolvimentos amorosos, a mulher no Brasil, Vanda, que trabalha apresentando um telejornal, e Kriska, sua professora de húngaro em Budapeste, quando José volta a cidade, os dois casos amorosos são dois pontos altos da narrativa, porque mesmo traindo ambas as mulheres José de certa forma as ama verdadeiramente, sabemos disso porque temos acesso aos seus pensamentos, e a maneira como as coisas acontecem, a briga com Vanda, o envolvimento com Kriska, faz com que, mesmo que equivocados perdoemos as atitudes de José.

Outro ponto interessante do livro, é o fato de José trabalhar como Ghost Writer, e não se sentir mal com isso, ele escreve livros que são assinados por outras pessoas e de certa forma recebe bem por isso. Em certo ponto da história ele escreve um livro para um alemão Kasper Krabble, O Ginógrafo, sua mulher lê o livro e fica encantada pelo alemão, sem se dar conta que na realidade o livro foi assinado por seu marido em meio a um casamento que mostra sérios sinais de desgaste.
Em meio a todo esse furacão, e ainda fascinado pelo idioma húngaro, José volta a Budapeste, e lá conhece Kriska numa livraria, ela começa a dar aulas a ele, e lá pelas tantas os dois acabam se envolvendo, e na Hungria José Costa acaba arrumando emprego numa editora para fazer exatamente o que fazia no Brasil, com a diferença que em húngaro, diferentemente do português, ele sabe escreve poesia. O livro é repleto de tiradas de José sobre ser escritor, sobre sua criatividade, sobre seus trabalhos, sobre sues medos e anseios, e sobre como ele se sente bem, mesmo não sendo reconhecido, com seu trabalho sendo elogiado, O Ginógrafo vende como água, e as pessoas passam por ele na livraria falando bem do livro, sem nem imaginar que ele é o real escritor do mesmo.

As idas e vindas de José de Budapeste, suas aventuras com desconhecidos até conhecer Kriska, suspense leve bem apresentando aqui e ali, que te prende páginas a fio esperando respostas, o interesse a dificuldade e o esforço do protagonista em aprender húngaro, o casamento, e a relação com seu filho são os pontos chave do romance.
O livro é muito bem escrito, e trabalhado, quando você se dá conta quer saber o que vai acontecer, o livro segura o clímax de forma absurdamente bem feita, o que amarra os acontecimentos e te leva inevitavelmente ao final do livro que adianto: é repleto de surpresas, revelações interessantes, e confusões que fazem com que a ressaca literária seja extremamente comprida, quando se chega a última página, e você se dá conta de que acabou, dá pra se sentir perdido, sem rumo, porque o livro é tão fantasticamente bem construído que é de se ficar triste quando se chega ao final, você lê Budapeste sempre querendo mais, esperando por mais, por mais tiradas geniais, trechos bem construídos, é um novelo que você vai desenrolando e quando você termina de desenrolar você fica extremamente chateado, mas extasiado porque como dito o livro é muito bom.

Chico Buarque, famoso por suas composições musicais, seu engajamento político, mostra que é um artista muito versátil e grande escritor, seja em poesia, ou em prosa, e Budapeste mostra tamanha riqueza do cantor também em prosa, num texto que flui de forma excepcional porque é bem argumentado e usa todos os recursos estilísticos a seu favor.
Enfim, um livro tão maravilhoso que eu no seu lugar começaria a ler agora mesmo!

O livro virou filme em 2009, com o ator Leonardo Medeiros vivendo José Costa e Giovanna Antonelli dando vida a Vanda. O filme é muito bem realizado, e bem fiel ao livro, o que o torna também muito bom e vale a pena conferir após a leitura. Aqui deixo-vos o trailer: http://migre.me/e69kM
“Abri os olhos num sobressalto e vi o fotógrafo outra vez o revólver na mão, que estava trêmula; por um instante acreditei que não fosse a mão, mas o revólver a tremer ainda com meu tremor. Chegou-o à cabeça, tornou a baixa-lo, examinou, chacoalhou, abandonou-o no carpete, e para mim estava ótimo, passara a bebedeira e o tempo de bravatas. Já me dispunha a lhe dar um abraço, beijar a mão da lourinha, acompanhá-los até a porta, encher os bolsos dele com as garrafinhas do frigobar, quando o vi empurrando a arma com a ponta do pé, na minha direção. Deve ter descoberto que eu não falava húngaro, pois com muita ênfase repetia uns gestos semi-circulares. Queria dizer que a roleta-russa tinha girado no sentido horário e agora deveria reverter o giro, a começar por mim. Estava roubando, estava inventando uma regra absurda, eu queria protestar, mas nem sequer sabia dizer não em húngaro. Quem me socorreu foi a lourinha que tomou o revólver, tentou socá-lo de volta na mão do namorado, e aí ele chamou ela de vaca. Falou vaca com todas as letras, como nós latinos falamos vaca desde a Roma antiga, e concluí que o farsante também não falava húngaro coisa nenhuma. Era romeno, usava um medalhão de bronze no peito, uma argola na orelha, um anel em cada dedo, era um cigano romeno, e teve razão a lourinha em lhe dizer: sinto asco do teu espetáculo grotesco, ao menos foi isso que eu escutei. E a fim de vexá-lo, voltou a arma contra a própria testa e atirou sem pestanejar. Não havia bala, bem feito, ao cigano não restava alternativa; recolheu o revólver, apontou-o contra a têmpora, e quanto o balaço lhe arrombasse os ossos, calculei que a massa encefálica espirraria no cabelo da lourinha, ia ser nojento. Ia ser asqueroso, mas eu não conseguia deixar de olhar, e vi como se fechavam as dobradiças do seu dedo no gatilho, cheguei a ouvir ranger a mola do gatilho e clique. Neca, não morreu, jogou o revólver no meu colo, mostrou os dentes de ouro para a lourinha, em seguida ambos me encararam. E assim ficou evidente que por alguma artimanha, com alguma prestidigitação cigana, eles tinham reservado para mim a bala do tambor. Estavam de olho no meu dinheiro, desde o início, organizavam minha morte. E seria uma morte tão oportuna para eles quanto inglória para mim, o suicídio de um turista alcoolizado em Budapeste.” 

Indicação do Aion
[chega de chegar, depressa é muito devagar]