sábado, 9 de fevereiro de 2013

Crítica - Jogos Vorazes



ATENÇÃO, esta não é uma indicação normal, é uma crítica

Estava eu na gloriosa fila do restaurante universitário quando interceptei uma conversa sobre Battle Royale (se você não conhece, não se desespere que já explico). É claro que a uma certa altura o tema Jogos Vorazes entrou em pauta e durou até mais ou menos conseguirmos sentar no restaurante, e você que sabe, sabe que isso demora.

Depois da conversa resolvi que já era mais que hora de fazer uma crítica. A título de informação, resolvi fazer essa crítica restrita ao primeiro livro, uma vez que incluir os outros dois tornaria o texto muito (mais) extenso e também porque gostei bastante do primeiro filme. Para os próximos livros, pretendo aguardar os lançamentos dos respectivos longas, dos quais o segundo, Em Chamas, tem previsão de estréia pra novembro do corrente ano.

Quando ouvi falar no filme, foi quase o céu. Uma nova série de ficção distópica com uma produção daquele montante no cinema? Corri assistir e foi ótimo, por uma série de combinações de aspectos positivos. O primeiro deles é a atriz escolhida para a protagonista Katniss Everdeen, a americana Jennifer Lawrence. Lawrence entra no filme apenas para tomá-lo para si, algo que ela executa de maneira brilhante, nos transmitindo a emoção e personalidade da personagem de maneira muito intensa e sugerindo uma pesquisa nos livros e em outras fontes que remetem à realidade do futuro distópico enquanto social, histórico e psicológico. A produção transcende infinitamente o livro, acrescentando elementos de criatividade e transmitindo novas sensações que põe em jogo aquela premissa básica de que o livro de origem é sempre melhor que o filme. No caso de Jogos Vorazes, julgo isso uma inverdade. Além desses dois aspectos primordiais, ainda acrescento a escolha de elenco, que também na minha opinião transcende o livro facilmente, a fotografia e construção de cenários, detalhes das roupas, enfim, tudo que caracteriza uma boa produção e que convenhamos, ficou bem melhor nas telas do que nas páginas. Por fim, é uma adaptação que não mergulha muito nos mistérios da cabeça dos personagens, mesmo de Katniss que é tão bem interpretada, ou seja, um tanto superficial. Ponto para o filme.

Isso soa meio herege, eu sei.

Estava eu animada com o filme e resolvi é claro, ler o livro. Me arrependi. Mas vamos lá. Apenas quero acrescentar que não vou explicar aspectos do enredo para facilitar a compreensão de quem não leu, e por isso vou presumir que se você lê uma crítica, já leu o livro e vai concordar ou não com o que digo.

Somos introduzidos a uma senhorita que narra em primeira pessoa, num futuro distópico clássico: exploração, um governo controlador, pessoas infelizes, alienadas pelo sistema, revoltadas e com medo, sem coragem de confiar no vizinho. É aí onde vive Katniss Everdeen, a protagonista. Ela é teoricamente uma garota independente, corajosa e forjada numa realidade aversiva, a total antítese da protagonista feminina comum. Aliás, seu parceiro de protagonismo e também tributo do distrito 12 é justamente Katniss ao contrário, Peeta, um garoto sensível e cheio de dedos sobre a vida e os fatos. É evidente que Peeta aceita que irá morrer e que isso não deveria atentar contra sua personalidade em vida.

O que eu acho meio decepcionante e puritano demais para um tema tão sólido que é o tema de Hunger Games. A proposta é (seria) ótima, mas há uma crescente disparidade entre projeto e construção conforme o livro avança. Acredito que seja forçado construir os personagens conforme foram construídos no livro (e no filme, mas é muito mais evidente no texto, como sempre). Essa é uma realidade de futuro distópico. Jogam 24 de vocês em uma arena mortal e você vem me falando de manter a integridade? Ok, bonito. Mas não nesse gênero. Não no meu pedaço.

Mas eu entendo, esse argumento é absolutamente questionável. No fim das contas, acabei chegando à conclusão que o livro lida com uma acomodação de interesses bem visível, qual seja, a vontade da autora de discutir um tema válido, sempre atual e a necessidade de eufemizar o que ela mesma está discutindo. Cria-se aí um paradoxo gigantesco, não só entre personagens, mas em personagem consigo próprio. Em Katniss isso é evidente: ela quer sobreviver. Sua família depende dela. Ela é dotada de certa rabugice e não é uma personagem apaixonante, mas isso se converte no erro literário (e não de mercado, veja bem) de mais pra frente fazer com que ela seja a heroína do leitor. Não há coerência alguma nisso: ela é rabugenta e quer sobreviver, mas é claro que se arrisca e se expõe para transportar um inválido Peeta ou considerar um suicídio ante a alternativa de acabar com o adversário e voltar para casa. Isso ao mesmo tempo em que lida com os sentimentos de um garoto apaixonado buscando elevar índices de audiência e conquistar patrocinadores. Só que não. É balanceamento de opostos em um nível muito além do aceitável para uma distopia.

Ao tentar revestir Katniss de autenticidade, a autora recobre-a de um verniz superficial, que é facilmente removido (e nem precisa de solvente) quando a narração se desenvolve. Ela é uma garota confusa, pintada pela autora para ser uma coisa, pela história é outra e por fim a percepção que você tem é de que Katniss é uma mentira. Vale mencionar por isso os longos dramas que ela desenvolve em sua consciência, no inglês original tão mal escritos que se parecem com aqueles devaneios que a gente tem quando fica olhando pro teto enquanto se está deitado na cama. O que vai contra absolutamente toda praticidade, dureza e objetividade que a autora projeta na protagonista logo de início. Uma pena.

Não defendo que Katniss seja uma psicopata sem coração, veja bem. Apenas acredito que demasiadas esperanças foram projetadas nela no início para serem quebradas na eufemização da realidade de Panem e dos Hunger Games, deixando um gosto ruim na boca de heroína revolucionária bonita e apaixonante, cheia de princípios.

Outra coisa absolutamente irritante, que irá se desenvolver nos outros livros mas que dá seus primeiros passos, é a presença de um triângulo amoroso. Do triângulo, o único que parece fruto de sua realidade é Gale, e você com toda razão, não gosta dele. Ele é arisco, egoísta e desconfiado. Há outro elemento do paradoxo Katniss aqui: uma garota que tinha tudo para ser misantrópica e que por anos via Gale absolutamente como amigo tem um surto amoroso durante e após um jogo mortal? Em que você mata todo mundo para sobreviver? No mínimo, um escorregão tremendo na falta de adaptação da personagem a seu meio. É bem recorrente que no futuro distópico haja envolvimento amoroso, eu sei, mas esse mesmo envolvimento é afogado pelas circunstâncias. E se seu parceiro te trair? Parece ingênuo demais criar amor num meio onde não há amor. Há um contexto psicológico de paranóia, dor e egoísmo muito intensos em um futuro distópico clássico, coisa que a autora prefere convenientemente esquecer pra eufemizar o texto.

Haymitch ali é o único personagem que parecer ter a ver com futuro distópico. Ele é sádico, bêbado e esperto, um fruto coerente de um jogo mortal. Que seja mencionado que alguns elementos da personalidade de vários personagens (infelizmente vistos na lógica paradoxal de Katniss) são ótimos e refletem a crítica proposta por Hunger Games. E é dessa crítica que eu quero falar.

O mérito da escritora é sem dúvida reaproximar os novos leitores do futuro distópico (eu tenho fé que você começa com Hunger Games mas termina com 1984 um dia) com um texto romântico, sem aqueles desagradáveis percalços mais rústicos, né (eufemizano, fla sério glr) e de linguagem de fácil acesso, extremamente simples e sem nenhum grande recurso literário notável. Mas esse mérito cessa na medida em que nada de bom na obra é original.

Primeiramente, Hunger Games, como todo futuro distópico, reporta-se a 1984 de George Orwell, com a alienação, a fome, o controle centralizado. Até aí tudo bem, nada da literatura é original depois de Homero. Mas Hunger Games é uma colagem de todos os grandes clássicos e não clássicos do gênero, unidos pela cola pegajosa do mercado editorial.

Comecemos com Battle Royale, um livro (mangá e filme) japonês em que num futuro, os jovens tornaram-se rebeldes e um programa de TV é inventado visando controlá-los. Todo ano, uma turma escolar é seqüestrada e enviada para uma ilha, onde devem lutar até a morte restando apenas um, espetáculo transmitido e controlado pelo governo. Aqui em Battle Royale, há uma evidente transformação dos personagens por seu meio: amigos que se conheciam há anos saem matando uns aos outros sem escrúpulos.
Além desse, há outros dois menos conhecidos: Senhor das Moscas e Zarrof, o Jogo Mais Perigoso. Brevemente, Senhor das Moscas trata-se de um monte de crianças abandonadas que lutam numa ilha pela sobrevivência. O Jogo Mais Perigoso reporta-se a Teseu e o Minotauro. E aí você me diz que nenhum desses livros remete ao poder de controle da mídia, dos Games, o imperialismo e etc. Ok.

Temos também Truman’s Show, um Big Brother vitalício onde todos os passos de Truman – que desconhece tudo que está acontecendo – são controlados por uma direção televisiva, desde sua esposa e amigos, todos atores, desde o seu nascimento.. Ainda, O Sobrevivente, em que um prisioneiro precisa escapar da morte num brutal jogo de TV. Ou o outro Sobrevivente, Series 7, onde pessoas são sorteadas para participar de uma competição televisiva brutal. E o conto The Lottery, de Shirley Jackson que conta um sorteiro realizado anualmente por todos os chefes de família, no qual o patriarca sorteado deve sortear um de seus filhos para ser apedrejado até a morte, remetendo às cenas da Colheita em The Hunger Games. E a lista não teria fim.

Colagem que é, Hunger Games tem apenas o mérito de trazer novamente a discussão da mídia, do futuro distópico e deixá-la sempre atual. A você, leitor, que quer elevar essa discussão a níveis mais elevados, eu tenho um conselho. Transcenda-o.
Obrigada por ter chego até aqui. Bom feriado.

Crítica da Amanda.


[you see, but you don’t observe]

Nenhum comentário: