segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Crônica de um vendedor de sangue - Yu Hua


Topa dar uma voltinha pra fora da sua literatura ocidental?

Se não topar não tô nem aí. É sempre tempo de largar mão da literatura americana/inglesa e se aventurar por outras línguas – tudo bem, pode comprar a edição traduzida. Hoje, gostaria de compartilhar um pouco com vocês das minhas aventuras pela literatura chinesa e de como ela é diferente do que estamos acostumados, sobre como ela quebra estereótipos na mesma velocidade em que você compartilha frases da Clarice Lispector no facebook.

Crônica de um vendedor de sangue, de autoria do chinês Yu Hua, editado pela Companhia das Letras (vulgo “Companhia te leva à falência”) seria absolutamente perfeito se eu não implicasse com apenas um detalhe na tradução do título: Crônica. Creio eu que ficaria bem mais próximo do texto se fosse Crônicas (assim, no plural). E isso se justifica pelo estilo de literatura que Yu Hua desenvolve não só nesse livro, bem como no resto de sua obra.

Crônica(s) de um vendedor de sangue é a história de Xu Sanguan, um operário que vive na China da segunda metade do séc. XX, a China maoísta (vide Mao Tsé-Tung); uma China assolada pela fome, crise industrial e econômica, além do impacto cultural imensurável. Nesse cenário, Xu Sanguan sofre suas desventuras particulares na família, na honra, na crise. Em momentos extremamente necessários, ele recorre a uma prática comum na época: a venda de cerca de duas tigelas (ou 400 mililitros) de sangue em hospitais sujos, sem nenhuma segurança e cuidado médico.

Num espaço de 30 anos, Sanguan e sua família vão sobrevivendo unindo os pedaços. Porém, a conjuntura do país cada vez mais aperta e alguns eventos vão fazendo com que o protagonista recorra ao recurso com uma freqüência totalmente inadequada e prejudicial à sua saúde – vendendo um pouco da vida cada vez que acorre ao hospital. Sem perceber, Xu Sanguan é sugado pelas circunstâncias na mesma medida em que seu sangue é sugado, prendendo-se a um ciclo que pode terminar com a morte.

Esse retrato fiel da realidade da China de 1950 – uma vez que o próprio autor pertence a ela – é comovente em várias formas. Não apenas pelo enredo (impecável), mas pela maneira com que Yu Hua consegue traçar um padrão de China que está muito além dos nossos limitados estereótipos. Eu mesmo relutei em pensar chineses usando tênis brancos. Pois é.

Num estilo de literatura rápida, extremamente rápida, cheia de pontos e frases curtas, conclusivas, o livro ganha o ar de crônicas – pequenos episódios da vida do protagonista que foram construindo sua vida e sua venda de sangue. É engraçado mais uma vez ser confrontado com uma literatura crua e objetiva, cruel às vezes, quando se tem na cabeça imagens de dragões e músicas folclóricas. O livro estabelece um contraste violento com a literatura americana/inglesa, geralmente mais fluida – e nós que reclamamos da velocidade do modo de vida ocidental.

Afoguem-se em Yu Hua – e terminem a última página perdendo o fôlego. Um trecho longo aí pra fazer uma tortura básica.

“Quando isso vai terminar afinal? Esta situação tem sido penosa para os meninos. Eles nem se lembram mais de quando comeram um caramelo, e quando finalmente põe na boca uma coisa doce não reconhecem mais o gosto de açúcar.
[...]”Meninos, eu sei o que vocês mais querem. Comer, não é? Querem arroz cozido, pratos refogados com óleo, peixe, carne e outras coisas boas. Até já comeram um pouco de açúcar. Mas eu sei que, no fundo, vocês querem mais. O que eu pergunto é: o que vocês querem comer de verdade? Como é meu aniversário, vou preparar com a minha boca uma refeição para cada um, e vocês vão comer com os ouvidos. Não vão poder comer com a boca porque não existe nada para comer, mas apurem os ouvidos, porque a qualquer momento vou começar a cozinhar. Cada um pode pedir qualquer coisa. Um de cada vez.”'

Indicação da Amanda
See ya!

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