Olá, senhoras e senhores da Posso te indicar um livro?! Nosso último especial antes de voltarmos com a publicação normal de três indicações por semana é a indicação de Revolução dos Bichos – que será dividido em duas partes: a primeira, uma análise literária e política da obra; a segunda, a análise do livro de George Orwell e o álbum Animals, da banda Pink Floyd, uma vez que a música é inspirada no texto.
Revolução dos Bichos foi (arduamente) publicado em 1945 e apontado pela Time como um dos cem melhores romances em língua inglesa da história da literatura. Obra e autor, que jazem nesse nível de garbo, trazem polêmica até hoje quando são discutidos.
Tendo isso em vista, um detalhe importante para o prosseguimento da resenha: George Orwell era socialista. Guardem.
Neste conto de fadas, numa certa fazenda denominada Granja do Solar, havia certos animais e certo porco chamado Major, que reúne seus companheiros numa noite para falar de um sonho que tivera, um sonho de liberdade e não de servidão aos exploradores humanos. Os outros bichos se encantam com a idéia, e sonham em como será viver em comunidade, exercendo sua natureza livre e sua força de trabalho em seus próprios interesses. Três dias depois, o velho Major morre, deixando seus ideais de luta aos bichos e a particularmente dois porcos: Bola-de-Neve e Napoleão, que passam a organizar os animais em um movimento clandestino para a derrubada do humano proprietário da fazenda, o Sr. Jones.
Como toda boa revolução, há um ideal, os princípios ensinados por Major que são transformados pelos letrados porcos em uma filosofia denominada “Animalismo”; um herói, o velho Major; e um hino, a canção Bichos da Inglaterra. Segue um trecho:
“Bichos ingleses e irlandeses,
Bichos de todas as partes!
Eis a mensagem de esperança,
No futuro que virá!
Cedo ou tarde virá o dia,
Cairá a tirania
E os campos todos da Inglaterra
Só aos bichos caberão!
Não mais argolas em nossas ventas,
Dorsos livres dos arreios,
Freios e esporas, descartados,
Chicotadas abolidas!
Muito mais ricos do que sonhamos
Possuiremos daí por diante
O trigo, o feno, e a cevada,
Pasto, aveia e feijão!”
Para cortar os entrementes, a Revolução se dá e os humanos são expulsos da fazenda. Contudo, Bola-de-neve e Napoleão têm divergências na administração da agora Granja dos Bichos. Uma ninhada de cachorrinhos nasce de uma das cachorras da fazenda e o porco Napoleão toma para si a educação dos filhotes assim que desmamam, ninguém mais tendo notícias deles. Isto também é importante.
A partir de uma divergência sobre a construção de um moinho para poupar os esforços dos bichos com o uso de energia elétrica, Napoleão surpreende. Pega seus nove cachorrinhos – agora enormes e ameaçadores cães que só o atendem (uma vez que foram criados pelo porco) e dá um golpe de estado em Bola-de-neve, expulsando-o da Granja.
O talento de Orwell é sensacional em fazer um paralelo fantasioso com a realidade concreta que pretende criticar. Revolução dos Bichos é uma paródia, uma crítica da Revolução Russa e da maneira como ela se conduziu. Major é Marx e/ou Lênin, o ideólogo que fornece a base teórica para um mundo de cooperação, trabalho e solidariedade entre os animais (socialismo e comunismo travestidos de animalismo). Bola-de-neve é Trótski, aquele líder apoiado na teoria que queria realmente fazer as coisas funcionarem, e que foi o mais corajoso quando os humanos tentam retomar a granja, o que mais incentivou os bichos no trabalho e na organização da qualidade de vida.
Já Napoleão figura Stalin, que perverte toda a ideologia de Major e transforma a Granja dos Bichos na sua ditadura pessoal. Aqui, todos os elementos de propaganda do partido comunista Russo são inseridos (os mesmo do partido Nazista, Fascista, da Coréia do Norte, a China de Mao, etc etc etc). Napoleão é um bravo herói, Bola-de-neve um traidor e desertor. Há desfiles, a música Bichos da Inglaterra é substituída por outro hino, já que Napoleão alega que esse era o hino da revolução e a revolução era passado. Eventualmente, porém, eram três elementos que mantinham verdadeiramente a ditadura de Napoleão: o primeiro, a grande ignorância dos bichos em geral; o segundo, os nove cães que amedrontavam a todos e o terceiro, o porco chamado Garganta, hábil em discursos e em convencer os demais animais de qualquer coisa.
O tempo passa e os bichos já não se lembram de como era viver sob o domínio dos humanos; permanece, porém, a ojeriza inicial a eles, sintetizada nos sete mandamentos iniciais do animalismo, de antes da revolução:
“1. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.
2. Qualquer coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo.
3. Nenhum animal usará roupas.
4. Nenhum animal dormirá em cama.
5. Nenhum animal beberá álcool.
6. Nenhum animal matará outro animal.
7. Todos os animais são iguais”
Todos os animais eram iguais no início, porém, sob o domínio de Napoleão e a partir da ignorância dos demais, as coisas vão sendo transformadas. As rações vão sendo cortadas, o trabalho é maior, mas com a ajuda dos discursos de Garganta, todos ainda se convencem de que estão melhores do que antes – apesar da horrível situação de exploração, medo e dominação em que se encontram.
Os princípios ideais vão sendo transformados – uma sacada b-r-i-l-h-a-n-t-e do autor, como por exemplo:
“4. Nenhum animal dormirá em cama com lençóis.
5. Nenhum animal beberá álcool em excesso.
6. Nenhum animal matará outro animal sem motivo.”
Por fim, todas as máximas são substituídas na calada da noite por outra – a suprema genialidade de George Orwell e suprema subversão da idéia original dos bichos:
“Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros.”
Há centenas de outras coisas que eu adoraria colocar aqui, mas realmente, a resenha não terá mais fim. Antes de terminar, contudo, lembra-se de quando eu disse que era importante que a idéia de que George Orwell era socialista fosse lembrada durante a leitura? Pois bem.
É importante esclarecer que a teoria do socialismo e do comunismo é bastante diferente de suas aplicações no mundo político de hoje. Porém, Orwell ao escrever Revolução dos Bichos (que até seria usada posteriormente como propaganda negativa pela América na Guerra Fria) e ao escrever suas outras obras, como 1984, cai numa armadilha: a de enterrar a ideologia em que ele próprio acreditava.
Reformulando: Orwell não enterra a teoria. Ele enterra sua viabilidade, de certa forma, quando exalta sua fácil perversão nas mãos de quem não enxerga outro propósito a não ser o próprio. Nas mãos de quem, mesmo por instituição da maioria, tem o poder depositado em si e tem os elementos necessários para mantê-lo.
Para terminar, o último trecho do livro. Lembra-se de como no início, os animais queriam apenas e tão somente libertar-se dos humanos? A verdade é que no fim – sob perversão – não há distinção entre bom e mau, entre humanos e porcos.
“O Sr. Pilkington referira-se o tempo todo à "Granja dos Bichos". Naturalmente ele não podia saber – mesmo porque Napoleão o estava proclamando, naquele instante, pela primeira vez – que a denominação "Granja dos Bichos" fora abolida. A partir daquele momento, sua granja voltaria a ser conhecida como "Granja do Solar", que, aliás, parecia-lhe, era seu nome correto e original. Senhores – concluiu Napoleão, levantarei o mesmo brinde, mas sob forma diferente. Encham, até a borda, seus copos. Senhores, este é o meu brinde. À prosperidade da Granja do Solar! Houve as mesmas calorosas felicitações de antes, e os copos foram esvaziados. Mas aos olhos dos bichos, que lá de for a espiavam, pareceu que algo estranho estava acontecendo. Que diabo teria alterado a cara dos porcos? Os olhos embaçados de Quitéria iam de uma cara para outra. Algumas tinham cinco queixos, outras quatro, outras três. Mas alguma coisa parecia misturá-las e modificá-las. Então, findos os aplausos, o grupo pegou novamente nas cartas, recomeçando o jogo interrompido, e os animais afastaram-se silenciosamente. Não haviam, porém, chegado sequer a vinte metros quando se detiveram, ante o vozerio alto que vinha lá de dentro. Voltaram correndo e tornaram a espiar pela janela. Realmente, era uma discussão violenta. Gritos, socos na mesa, olhares suspeitos, furiosas negativas. A origem do caso, ao que parecia, fora o fato de Napoleão e o Sr. Pilkington haverem, ao mesmo tempo, jogado um ás de espadas. Doze vozes gritavam cheias de ódio e eram todas iguais. Não havia dúvida, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco.”
Senhoras e senhoras, esperamos que tenham gostado. Amanhã segue a segunda parte da resenha, que relacionará a obra e a música do Pink Floyd.
Até o retorno normal das resenhas!
Indicação da Amanda.
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