quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Sidarta - Herman Hesse


Quem realmente somos nós por natureza? O que é o nosso interior? É realmente possível atingir a capidade de compreensão própria completa?

A procura pelo eu. O simples, enigmático e (quase) utópico, eu.

Talvez esta seja uma maneira um pouco estranha de iniciar uma resenha. Mas não acho que consiga fazer algo diferente. É Hermann Hesse.

Sidarta é um ser humano vivendo pelo espiritualidade. Buscando sensações e nunca mostra-se satisfeito com o que encontra. Pra ele, há sempre algo mais.

Filho de família tradicional (brahmere), Sidarta sempre estudou em escolas religiosas, ao crescer, insatisfeito com o que a sua vida atual o oferecia, e querendo buscar cada vez mais o seu eu interior, distanciando-se de coisas externas, Sidarta, junto com seu amigo Govinda, despede-se de seus pais para seguir com um grupo de Samanas, assim, buscar conhecimento necessário com estes.

Tratam-se Samanas aqueles que tem objetivo de vida de tornar-se vazio. Vazio ao ponto máximo de exterminar-se de si mesmo. Bens materais, felicidade, beleza... tudo era ilusão. Apenas falsidade. Algo criado por nós mesmos. Seu lema era: "Pensar, esperar e jejuar".

Após um período de tempo com os Samanas, Sidarta ouve falar que está nas redondezas um ser que é dito como "perfeito". Aquele que alcançou o absoluto, o inefável. Este ser trata-se de Gotama, o Buda. Assim, Govinda e Sidarta partem atrás deste ser, e ouvem sua doutrina. Govinda une-se aos discípulos de Buda, porém, Buda não agrada Sidarta ao todo. Apesar deste afirmar que gostou bastante da doutrina de Gotama, Sidarta afirma que o conhecimento não pode ser mostrado por doutrinas, e sim apenas por expereriências, pois apenas palavras não destroem o Ego.

Desta forma Sidarta resolve deixar sua vida de Samana e seu amigo Govinda, para adentrar no mundo sem procurar ideais alguns. Deixa-se entrar aos desejos como dinheiro, jogos, e sexualidade. Conhece até uma mulher, Kamali, com quem vivência as maiores experiências deste período de sua vida.

Após um certo tempo, Sidarta percebe que não encontrou a satisfação de sua vida. Assim como também percebe que ele não estava ali, naquele mundo perdido, nunca esteve. Quem realmente esteve ali fora seu ego. Seu ego que desejava bens materiais e banais. Desta forma, Sidarta renuncia a esta vida, e parte da cidade, deixando tudo e todos para trás. E recomeça a sua busca por sua satisfação da alma. Pela fuga de si mesmo. Do seu ego. Em busca da completa iluminação, da plenitude espiritual e mental. Sidarta inicia mais uma trajetória, e desenrolam-se vários paradigmas do livro. A cada momento, há sempre algo mais. Mais brando, mais claro, mais complexo e compreensível.

É difícil comentar sobre este livro. Trata-se de uma obra pessol. Sidarta é uma história de construção do homem. A busca pela satisfação da alma. Pelo completo eu. O livro foi escrito durante passagem de Hermann Hesse pela Índia, então, fora bastante influenciado por preceitos do hinduísmo.

É um dos livros mais importantes que já li. Te faz repensar sobre vocês mesmo. Até onde o seu ego te leva? A sua moral? Do que, na verdade, você é formado?

Apesar de ser um livro que trata de assunto complexos, a leitura é de fácil compreensão. Tenho certeza que todos terão facilidade para seu entendimento.

“Quando alguém procura muito pode facilmente acontecer que seus olhos se concentrem exclusivamente no objeto procurado e que ele fique incapaz de achar o que quer que seja, tornando-se inacessível a tudo e a qualquer coisa porque sempre só pensa naquele objeto, e porque tem uma meta, que o obceca inteiramente. Procurar significa: ter uma meta. Mas achar significa: estar livre, abrir-se a tudo, não ter meta alguma. Pode ser que no afã de te aproximares da tua meta, não enxergas certas coisas que se encontram bem perto dos teus olhos.”

Indicação do Luiz A. Jr. 

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Fahreinheit 451 - Ray Bradbury


Burning burning burning burning. Não, essa não é a nova música da Britney Spears. Essa é a sensação que Fahrenheit 451 deixa em rastro pelo seu cérebro quando você vira a última página. Não se surpreenda se não conseguir interpretá-lo muito bem nas primeiras horas após o fim da leitura.

É com queima que começa Fahrenheit 451. Nosso protagonista é Guy Montag, um bombeiro de uma sociedade futurística e distópica. À semelhança de Admirável Mundo Novo, essa sociedade não é uma sociedade suja, faminta, morta. Todos vivem muito bem, obrigado. Há trabalho, tecnologia e diversão; não há espaço para a melancolia. Um exemplo disso é apresentado logo no começo do livro, através de Mildred, esposa de Montag. Ela vive em uma realidade absolutamente paralela: viaja através de fones de ouvido que criam outro mundo alucinógeno através de combinações de sons e tem a sala de estar forrada com 3 grandes telas nas quais seus “parentes” – atores que criam uma programação personalizada e conversam com o proprietário das telas – lhe fazem companhia o dia inteiro. Além disso, usa pílulas para dormir, preocupa-se com pouco ou nada e sua memória é suficientemente curta para que nada possa a aborrecer.

Ao escrever o livro, Ray Bradbury estava preocupado com a avalanche tecnológica do entretenimento e com medo de que ela pudesse sufocar as relações sociais e a interação corpo a corpo. Esta é, aliás, uma das características que assegura que você está lendo um bom romance de ficção distópica: ele não perde sua atualidade e possibilidade de realização.

No entanto, não é essa a sacada brilhante de 451. A sacada brilhante é ter mudado o que significa ser bombeiro; os bombeiros não apagam mais incêndios – eles os provocam. Com o advento das casas à prova de fogo, os bombeiros perderiam a função de ser se naquela sociedade os livros não tivessem sido proibidos.
Sim, exato. Os bombeiros queimam livros. E você está lendo uma história em que os livros são tão criminosos para serem queimados num livro. Se isso não for suficiente para começar o nó na sua cabeça, calma que vem mais.

Montag é um bombeiro que após conhecer sua nova vizinha, Clarisse – que tem um estranho costume de olhar as pessoas nos olhos, propor uma conversa e sugerir que Montag deveria olhar mais para o céu – que atravessa uma séria crise ideológica. Há um problema quando um bombeiro se sente tão tentado a saber finalmente, porque as pessoas se apegam tanto aos seus livros e tentam evitar a todo custo que sejam descobertos e queimados.

A proposta é genial. Não quero mais falar do enredo; prefiro dar atenção a certos detalhes que tornam a obra mais crítica e interessante. Pulo o enredo porque ele é um pouco previsível, e isso é uma das margens de conforto do livro. Bradbury trabalha tão bem a capacidade de nos confundir através do uso insistente de metáforas, lapsos captados de Montag e de relances daquela sociedade que se o roteiro não fosse previsível, criaria uma história que nos deixaria a prontos a pular da primeira sacada possível.

O elemento mais interessante do livro é ir pelo caminho contrário ao sentimento da maioria das pessoas que lêem futuro distópico - note que eu disse dos leitores e não das obras. Bradbury não está preocupado em incendiar em você o desejo por combater essa realidade e libertar os livros, cessar a alienação. Ele questiona durante o livro todo, através da total angústia em que Montag se encontra desde de que passou a tomar contato com livros e idéias aversas àquilo em que acreditava, se realmente precisamos dessa angústia. Se não estaríamos, na verdade, bem mais confortáveis com os livros queimados. Se não somos afinal, obrigados a sofrer tudo que a melancolia, a dúvida e os questionamentos que a filosofia e a poesia trazem.

Se não podemos ter apenas um pouquinho de certeza.
A questão é assustadora. Ela vai contra tudo que aprendemos sobre alienação, mídia, entretenimento e coloca-nos para pensar em como o outro lado da moeda pode ser também extremamente interessante - e num toque de ousadia – válido.

A vontade de colocar mais de um trecho que daria a amplitude daquilo que Fahrenheit 451 fala é imensa. Mas como é de praxe, eis apenas um e um dos mais significativos.

"- Por sorte, esquisitos como ela são raros. Sabemos como podar a maioria deles quando ainda são brotos, no começo. Não se pode construir uma casa sem pregos e madeira. Se você não quiser que se construa uma casa, esconda os pregos e a madeira. Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver; dê-lhe apenas um. Melhor ainda, não lhe dê nenhum. Deixe que ele se esqueça de que há uma coisa como a guerra. Se o governo é ineficiente, despótico e ávido por impostos, melhor que ele seja tudo isso do que as pessoas se preocuparem com isso. Paz, Montag. Promova concursos em que vençam as pessoas que se lembrarem da letra das canções mais populares ou dos nomes das capitais dos estados ou de quanto foi a safra de milho do ano anterior. 
Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto com "fatos" que elas se sintam empanzinadas, mas absolutamente "brilhantes" quanto a informações. Assim, elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas experiências. Aí reside a melancolia. 
Todo homem capaz de desmontar um telão de tevê e montá-lo novamente, e a maioria consegue, hoje em dia está mais feliz do que qualquer homem que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar o universo, que simplesmente não será medido ou comparado sem que o homem se sinta bestial e solitário. Eu sei porque já tentei. Para o inferno com isso! Portanto, que venham seus clubes e festas, seus acrobatas e mágicos, seus heróis, carros a jato, motogiroplanos, seu sexo e heroína, tudo o que tenha a ver com reflexo condicionado. Se a peça for ruim, se o filme não disser nada, estimulem-me com o teremim, com muito barulho. Pensarei que estou reagindo à peça, quando se trata apenas de uma reação tátil à vibração. Mas não me importo. Tudo que peço é um passatempo sólido."

See ya.

Indicação da Amanda

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

José – Carlos Drummond de Andrade


“E agora, José?”

Pois muito bem. José, de Carlos Drummond de Andrade é a minha indicação desta semana, e devo dizer que não é particularmente uma resenha muito fácil de fazer. Já é sabido, não só se você acompanha a página, mas se leu alguma das outras indicações que eu fiz que: 1º Eu sou apaixonado por literatura brasileira. 2º Drummond era um gênio (ok, essa é a minha opinião).


José, em uma edição LINDA (e acho que aqui cabia outro adjetivo, mas estou sem criatividade) da Companhia das Letras chegou até as minhas mãos ano passado, e nela são doze poemas e são publicadas pela primeira vez em uma edição separada; anteriormente os doze eram anexados aos outros livros de Drummond em uma sessão intitulada José.

Lançar uma edição separada desses doze poemas, que tanto tem a ver um com outro, e na minha modesta opinião fazem parte da parte mais representativa da obra de Drummond, significa separar e isolar a leitura de Drummond, de maneira fantástica, aliás, divisão esta já proposta pelo autor.

Mas chega de lenga-lenga, estou aqui para indicar o livro, e a minha intenção é que quando você chegue ao final das minhas palavras você pense: “Puxa, preciso urgentemente ler esse livro”. Como já dito, são doze poemas, o que faz com que o livro seja daquelas leituras, que se duplicarão e triplicarão ao final. Assim como a minha indicação de semana passada Noite na Taverna. É claro que José tem um sabor a mais, por se tratar de uma reunião de vários poemas de Drummond, o leitor pode ter mil e uma interpretações a cada poema que lê, e a segunda leitura pode suscitar outra e outra e outra. Inclusive, não importa quantas vezes você abra José, sempre vai encontrar algo que não viu na última leitura, e isto minha gente, chama-se boa literatura.

Lembrando toda a vida de Drummond, o fato de o poeta estar inserido na terceira geração do modernismo, ter vivido no período da segunda guerra mundial, e falar de todos aqueles temas, angústias e dificuldades da época, fazem com que cada poema que você lê te deixe a pensar, o poeta já fez isso, inclusive, muito bem por sinal no seu livro O Sentimento do Mundo. O que difere José de O Sentimento do Mundo, no entanto, é tom impessoal que Drummond adota, a linguagem com a família, os poemas sobre como o poeta escreve, e é claro o poema máximo de Drummond, o mais famoso, que dá titulo ao livro: José.

Me reservo o direito de fazer um comentário a parte sobre o poema, arriscando inclusive comentar alguns trechos que serão transcritos para cá. Porque isso? Porque José, é perfeito, em todos os níveis, seja no uso das palavras, seja na interpretação que ele suscita.
Primeiro, a pergunta “E Agora, José?” que se repete pelo poema, virou um coringa do português do Brasil, não raro, quando alguém não sabe muito bem o que fazer usa a expressão, que ganha a força até de ditado popular. Comentário adjacente e desnecessário, mas farei assim mesmo: Cid Moreira, na época da morte de Carlos Drummond de Andrade, encerrou o Jornal Nacional com a frase, ao invés do seu característico Boa Noite, de mais de 30 anos comandando a atração; se eu não estiver enganado foi a única vez que o jornalista encerrou o jornal sem dizer a famosa saudação que.

[E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama protesta,
e agora, José?]

O José do poema de Drummond, é um cara que esta literalmente ferrado (e estou sendo politicamente correto ao ocultar o palavrão que você pensou), ele não tem saída, não tem nada que ele possa fazer, o José, aliás nome comum no Brasil, pode muito bem representar o povo brasileiro, que também se vê em conta com tantos problemas e a certeza de não poder e nem conseguir resolver nenhum deles.

[Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!]

Nesta outra parte do poema, Drummond faz uma brincadeira com a repetição do s, e mesmo que você não faça faculdade de Letras com o cidadão que está escrevendo essa resenha, você consegue perceber que toda essa repetição dá uma sensação de continuidade, e olhando as palavras, continuidade do sentimento do José, que aliás ainda encontra-se ferrado por todo poema. Quando a repetição é quebrada na frase “Mas você não morre”, serve para confirmar, que além do José estar completamente sem saída, ele não morre, ele não desiste, ele é forte.

Poderia destrinchar ainda mais uma análise do poema, mas não vou fazer isso pelo simples motivo de que você aí, atrás da tela do computador, o faça, corra e leia o poema, e encontre por si mesmo todas as razões para achá-lo simplesmente genial.


Além desse poema, advirto que os poemas “o lutador” que fala sobre a criação poética, assim como “palavras do mar” são daqueles que você termina de ler, e recomeça, recomeça, num looping infinito onde sempre se encontram coisas novas, e os dois poemas que eu destaco como os melhores do livro, depois de José evidentemente.


Bem espero que você tenha sido convencido, apesar de serem somente 12 poemas, 12 fantásticos poemas, José é simplesmente um livro fantástico e merece com certeza uma leitura, uma releitura, e até mesmo uma resenha. Último item cumprido, chamo você para fazer os outros dois; que tal?


“Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
[...]
Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
de rara humildade.
Guardarei sigilo
de nosso comércio.
Na voz, nenhum travo
de zanga ou desgosto.
Sem me ouvir deslizam,
perpassam levíssimas
e viram-me o rosto.
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue…
Entretanto, luto.”


Indicação do Aion.


[chega de chegar, depressa é muito devagar]

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley


Pra fechar com chave de ouro a grande tríade do futuro distópico, trago para vocês hoje o mais idoso da tríade, escrito por Aldous Huxley, o querido e muito bem obrigado Admirável Mundo Novo. Lançado em 1932, este clássico é de um tipo um pouquinho diferente de futuro distópico, afastando-se de Laranja Mecânica e mais ainda de 1984.

Aqui, ao invés de uma vida ruim, da fome, sujeira e alienação imposta de cima para baixo pelo governo, a vida em Admirável Mundo Novo é ótima: a sociedade funciona, cada qual faz aquilo que deve fazer e não há discórdia visível entre vontade do cidadão e vontade da maioria.

O que não deixa de fazer do livro uma visão de futuro distópico, embora teoricamente utópica. Semelhantemente ao abordado nos dois outros livros, mas com uma engenharia diferente, Aldous Huxley faz todos os seus personagens como seres selecionados geneticamente, criados em incubadoras artificiais, condicionados desde a mais precoce infância ao papel que deverão ocupar.
Todos são divididos em classes conforme os processos que ocorrem em seu desenvolvimento, nascimento e condicionamento. Há os Ypsilones, a casta mais baixa, que veste-se de preto e é propositadamente retardada devido a privações na sua geração. Por ser incapaz de desenvolver um raciocínio mais elaborado, os membros desta classe estão contentes em realizar serviços que as demais classes não realizam, os mais baixos, brutos e sujos serviços. A próxima casta é dos Deltas, que vestem-se de cáqui e tem o raciocínio e habilidades cognitivas mais elevadas, depois os Gamas, sucessivamente e por fim as duas classes mais elevadas, os Betas (que são identificados pela cor amora) e Alfas (pela cor cinza); são bonitos, seu desenvolvimento é planejado e executado de forma que sejam o cérebro da sociedade, exercendo as funções pensantes e altos cargos.

As instituições religiosas e sócias são abolidas, não há mais casamento nem paternidade. Cada um pertence a todos, e há relações com várias pessoas ao mesmo tempo. A maioria das mulheres é estéril, e as poucas férteis doam óvulos para o processo de geração de novas crianças, totalmente frutos de laboratório. Todos passam pelo processo de condicionamento correspondente à sua classe, e a partir dela adquirem as idéias próprias, os preconceitos e as visões de mundo e lugar.
Se nada disso for suficiente, há o incentivo a não deixar para amanhã o que se pode viver hoje – em termos de experiências sensoriais, voltadas à diversão, não falta nada; ou ainda o uso do soma, um psicotrópico que é capaz de alterar seu humor para a condição positiva desejada, cercando-o em seu próprio mundo de prazer infinito.

Tudo estaria certo nessa sociedade se Huxley não nos apresentasse a Bernard, um Alfa insatisfeito com essa perfeição. Para ele, sua classe, a diversão, a promiscuidade e o soma não fazem sentido algum; e é por isso que ele vai atrás de uma chamada reserva de “selvagens”, humanos como nós. Que tem filhos, não sofrem um processo deliberado de condicionamento e casam-se, tem uma religião e não possuem uma droga aceita e incentivada.

Nessa reserva, analisando os humanos em uma sociedade primitiva – como a nossa,suja, desorganizada, onde há violência, fome, doença – ele encontra uma jovem que engravidou (um tremendo absurdo) mas que pertencia à vida na civilização. John, o fruto da gravidez da jovem. De volta a sociedade com o “Selvagem”, é a partir das impressões horrorizadas e inocentes de John que Huxley dá o tom do futuro distópico: a ausência da livre vontade, das emoções mais ternas e simples, mas que ganham uma perspectiva assustadora.

" e todos, pois pertenciam à casta Delta, vestidos de cor de caqui.- Ponham-nos no chão. As crianças foram tiradas dos carros.- Agora voltem-nos de maneira que possam ver as flores e os livros.Voltados, os bebés calaram-se imediatamente. Depois começaram a gatinhar em direcção a essas cores brilhantes, a essas formas tão alegres e tão vivas nas páginas brancas. Enquanto eles se aproximavam, o Sol libertou-se de um eclipse provisório em que tinha sido mantido por uma nuvem. As rosas fulguraram como sob o efeito de uma súbita paixão interna e uma nova e profunda energia pareceu espalhar-se sobre as brilhantes páginas dos livros. Das filas dos bebés elevou-se um murmúrio de excitação, gorjeios e assobios de prazer.O Diretor esfregou as mãos.- Excelente! - disse. - Mesmo feito de propósito, não poderia ser melhor.Os gatinhadores mais rápidos tinham já atingido o seu alvo.O Pequenas mãos se estenderam, incertas, tocando, segurando, desfolhando as rosas transfiguradas, rasgando as páginas iluminadas dos livros. O director esperou que todos estivessem alegremente ocupados. Depois disse:- Observem bem. E, levantando a mão, fez um sinal. A enfermeira-chefe, que se encontrava junto de um quadro de comandos eléctricos, no outro extremo da sala, baixou um pequeno manípulo.Houve uma violenta explosão. Aguda, cada vez mais aguda, uma sereia apitou. Campainhas de alarme vibraram, obsidiantes.As crianças assustaram-se e começaram a berrar. Os seus pequenos rostos estavam contorcidos de terror.- E agora - gritou o Diretor (o ruído era de ensurdecer) agora passemos à operação que tem por fim fazer penetrar a lição a fundo por meio de uma ligeira descarga eléctrica.Agitou de novo a mão e a enfermeira-chefe baixou um Segundo manípulo. Os gritos das crianças mudaram subitamente de tom. Havia qualquer coisa de desesperado, quase de demente, nos uivos penetrantes e espasmódicos que então lançavam. Os pequenos corpos contraíam-se e retesavam-se, os membros agitavam-se em movimentos sacudidos, como se fossem puxados por fios invisíveis.- Podemos fazer passar a corrente em toda esta metade do soalho - gritou o Diretor, como explicação.- Mas isto chega - disse, fazendo um sinal à enfermeira.As explosões cessaram, as campainhas calaram-se, o uivo da sereia amorteceu lentamente até ao silêncio. Os corpos retesados e contraídos distenderam-se, e o que fora soluços e urros de loucos furiosos em potência transformou-se de novo em berros normais de terror vulgar.- Dêem-lhes outra vez os livros e as flores.As enfermeiras obedeceram. Mas à aproximação das rosas, à simples vista dessas imagens alegremente coloridas do miau, do cocorocó e do cordeirinho preto que faz mé-mé, as crianças recuaram com horror. Os berros aumentaram subitamente de intensidade.- Observem - disse triunfantemente o Diretor -, observem.Os livros e os ruídos aterradores, as flores e as Odescargas elétricas, formavam já no espírito das crianças pares ligados de maneira comprometedora; no fim de duzentas repetições da mesma lição ou de outra semelhante, estariam ligados indissoluvelmente. Aquilo que o homem uniu, a Natureza é impotente para separar.- Eles crescerão com aquilo a que os psicólogos chamam um ódio instintivo aos livros e às flores.Reflexos inalteravelmente condicionados."

See ya vocês aê.
Indicação da Amanda.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Morte Súbita - J.K Rowling – CRÍTICA


ATENÇÃO: ISTO É UMA CRÍTICA, NÃO UMA INDICAÇÃO NORMAL.

Eu sou uma grande fã de Harry Potter. Sim. Foi Harry Potter – embora eu goste de ressaltar que não exclusivamente – que me inseriu de forma tão profunda e apaixonada no mundo da literatura. De algum tempo para cá, porém, quando fui adquirindo maturidade literária e capacidade crítica, a partir da interminável lista daquilo tudo que já li, fiquei um tanto desapontada com a qualidade da escrita de J.K.

Eu ainda sou completamente apaixonada pela história de Harry Potter. Mas me convenci de que a série não passa disso: uma história. A autora teve grande habilidade de criar uma história, preenchê-lo com detalhes da sua imaginação e dar vida ao mundo da magia. Entretanto, a técnica e qualidade literária de J.K não parecem absolutamente sensacionais quando comparada a outros autores que também escrevem no mesmo gênero. Um exemplo bem claro é C.S. Lewis, de Crônicas de Nárnia. Lewis se utiliza de elementos e de características da escrita, de macetes que enriquecem sua obra deixando-a impecável em termos de narração e também construção da narração. J.K tem força inquestionável em termos de história, em termos de mundo ficcional. Mas a meu ver, ela deixa a desejar em recursos de escrita. É uma história bem narrada, e no fundo, nada além disso.

Por esses motivos eu aguardava Morte Súbita (ou Casual Vacancy, no inglês original) com tanta ansiedade. Ele seria um meio de provar que a minha autora favorita dos tempos de criança não merecia uma decepção tão grande na vida adulta. De provar que J.K sabia narrar com recursos literários e que podia se equiparar a outros que haviam se tornado meus autores favoritos.

Mas, como nem tudo é bom na vida, Morte Súbita foi em muitos aspectos, uma decepção. Nele se manifesta, é verdade, a capacidade tão bem conhecida da autora de nos prender a um livro como um bebê se prende à mãe – foram as 500 páginas em duas madrugadas. Você poderia me dizer então, que era uma história, uma narração incrível, e eu precipitadamente concordaria.

Mas não.

J.K nos introduz a Pagford, um distrito extremamente provinciano perdido num canto qualquer da Inglaterra. E aí começam os primeiros erros. Ou desapontamentos. J.K não foca a narração em um único personagem – tal qual Harry – e isso seria justificável pelo tipo de narração que se construirá; mas ela nos apresenta a personagens demais. Tantas famílias e sub-núcleos como os de uma novela. Você quase fica esperando o núcleo do humor, o núcleo pobre, o núcleo rico – e isso se verifica uma verdade depois que avança mais um pouco. São tantos personagens que o tempo todo foi necessário ficar voltando para conferir sobrenomes, famílias e ocupações, o que é extremamente desagradável no prosseguimento da leitura.

Mas Amanda, diversos autores de peso fazem isso. É verdade, pequeno forasteiro. O número excessivo de personagens não seria um problema se Rowling não demorasse TANTO para engatar finalmente a trama. A autora perde metade do livro – não estou exagerando, são 250 páginas – apenas para ambientar a quantidade imensa de personagens que criou. Até a metade do livro, há um excesso de narração que definitivamente não combina com o tipo de história que a escritora resolveu criar.

É uma narração exaustiva. E pouco ou nada acontece até a metade do livro, somos apenas ambientados aos personagens. Se isso tem a vantagem de finalmente não nos fazer ficar voltando conferir nomes e ocupações, por outro lado, descola totalmente da proposta de Morte Súbita.

Vamos ver se você me entende. A história trata de como a morte súbita de um homem, Barry Fairbrother pode mexer tanto com a vida local e política de Pagford. Esse tipo de narrativa, que a orelha descreve tão bem: quando a primeira peça da fileira de dominós cai, todas as outras vem abaixo, é exatamente o tipo de narrativa que se processa MUITO rápido. Não há tempo para perder metade do livro introduzindo. As coisas devem acontecer, ou você corre o risco de, como J.K., narrar demais.

As vias de fato só começam a ocorrer na história depois da metade. Quando isso acontece, podemos sentir quase a volta de Rowling na série Harry Potter: todos os dominós vão finalmente caindo.

Isso faz o livro ficar legal, Amanda?

Em termos, pequeno forasteiro. Apenas em termos. A capacidade narrativa não mais embotada pelo excesso de narração faz J.K brilhar, mas algo que vinha incomodando durante a primeira metade do livro torna-se na segunda algo irritante. E isso sepulta com a última pá de terra a minha decepão.

A mídia insistiu bastante na questão deste ser o primeiro romance “adulto” de J.K – a despeito do fato da saga Harry Potter ter sido tão lida que metade do seu público é necessariamente adulto. Fiquei curiosa com isso. Descobri que o “adulto” não se traduz em complexidade de trama e uma linguagem mais aprimorada – não, “adulto” quer dizer masturbação explícita, palavrões nos diálogos, vício em drogas, sexo, etc etc etc. Por meio de adolescentes estereotipados, Rowling acaba caindo na própria cilada: não são os adultos que cometem as adultices – são exatamente adolescentes da idade média de seu público de Harry Potter.

Ao pretender se distanciar de Harry pelo uso do sórdido e da vida real – da “autenticidade”, como seu personagem Bola Wall gostaria de completar – a autora esquece de dois pontos fundamentais: o primeiro, é que era óbvio que seu público não ia ser adulto. Seus fãs adolescentes são os que mais aguardaram o lançamento do livro. Isso tem a ver com a segunda consequência: ela desaponta exatamente esse público. Que não está amadurecido para temas que eram de autores da geração beat, temas que são buscados por um tipo diferente de leitor.

Ao escrever Morte Súbita, ela escreve na verdade um Harry que fala palavrão e é cheio da miséria humana. Porém, ela só dispunha de um livro para fazer aquilo que fez com tanto brilhantismo em sete. Ou seja, ela comete o erro de narrar demais em um livro só e ofuscar a ação com isso.

Que seja mencionado. As questões que ela levanta: o uso de drogas, a superficialidade das relações humanas e sua hipocrisia, a dor e a morte são muito bem levantadas. Ponto pra J.K. Pena que os pontos ficam só por aí.

Podem me matar nos comentários. Beijo galera!

Crítica da Amanda.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Noite na Taverna - Álvares de Azevedo



“Olá, taverneira, bastarda de Satan, não vês que tenho sede, e as garrafas estão secas, secas como tua face, como nossas gargantas?"
5 amigos estão em uma taverna bebendo e conversando. Bebendo e conversando, bebendo e discutindo, bebendo e relembrando o passado, bebendo e contando histórias. É mais ou menos sobre isso que trata Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, um dos seus melhores livros, parte da pequena porém grandiosa obra que Azevedo nos deixou.

Tratam-se de 7 contos (e que pena que seja assim), o primeiro uma introdução sobre o que está acontecendo, sobre como os 5 amigos se encontraram e onde estão bebendo. Logo em seguida somos remetidos aos outros contos, cada um levando o titulo do nome de cada um dos amigos, e aí cada um deles toma as rédeas da conversa e começa a contar um caso, uma história que tenha acontecido consigo, em comum estas histórias tem que são todas envolvendo a morte, o amor, mulheres, e tocando em temas polêmicos incesto, canibalismo e necrofilia. Tudo é contado por cada um daqueles amigos e nós somos levados a ir junto com eles até a Europa, onde grande parte dessas histórias se passam.

Cada história, cada conto do livro te leva a emoção, a ler avidamente cada página até chegar ao final e terminar, para que na ligação com o próximo conto você já seja levado a seguir o próximo, o próximo e o próximo.
O único problema de Noite na Taverna é o seu tamanho, apenas 90 páginas, simplesmente fantásticas e dá aquela peninha de pensar: “Poxa, daqui a pouco eu vou terminar, o que será da minha vida depois disso?”
Solfieri, Bertram, Gennaro, Claudius, Johann, estão bebendo, e conversando, e contando suas histórias, seus casos amorosos, como foi quando estiveram com uma mulher, as consequências disso, o medo, o desejo, o prazer, tudo isso com o bônus de que é Álvares de Azevedo que escreveu, e com todas as suas angústias dos poetas românticos (aqueles uns da 2ª Geração do romantismo, que queriam morrer aos 20 anos) simplesmente retratadas com toda a perfeição do mundo.

Cada história gira em torno disso, são conflitos até basicamente simples, mas a maneira que são contadas deixam o leitor ávido para terminar a leituras, o macabro também está presente por todo o livro, o que a meu ver dá um gosto ainda mais especial.
Falar sobre a morte, parece de certa forma até fácil, mas a maneira como Álvares de Azevedo escreve em Noite na Taverna é daquelas maneiras que dá vontade de dar um abraço de agradecimento, cada linha, cada letra chama a atenção, cada conflito, cada história te encanta, te chama, e é ainda maior a vontade de terminar o livro.

Repito, é uma pena que sejam somente 7 contos; a introdução, as cinco histórias de cada um daqueles amigos que estão lá bebendo, e depois o último conto (e na minha humilde opinião o melhor) Último beijo de amor, onde toda a carga dramática é acionada, todas as angústias daqueles homens são levadas as últimas consequências, e ainda há o bônus a uma referência clara ao amor impossivel mais clássico de todos os tempos: Romeu e Julieta, e os amantes de Shakespeare que me perdoem, mas a simples referência, chega a conseguir se equiparar ao original, para não dizer que Azevedo criou uma cena com mais carga dramática do que aquela a que faz referência.

E o livro ainda tem um gostinho a mais, o da dúvida, o tempo todo aqueles amigos estão bebendo, e bebendo, e bebendo, e contando entre si suas histórias, que eles juram ter acontecido de verdade, mas será? Será que eles não estão tão embriagados que chegam a inventar todas aquelas coisas?
Noite na Taverna é um desses livros que quando você chega ao final, você simplesmente não quer chegar, porque ele é tão maravilhoso, tão fantasticamente fantástico, que quando ele acaba, você se obriga a ler de novo, e esse humilde leitor que vos fala garante que a segunda leitura é ainda mais deliciosa, mas a terceira [...] Repito! Que pena que sejam só 90 páginas.

“ — Poesia! poesia! — murmurou Bertram. —Poesia! por que pronunciar-lhe a virgem casta o nome santo como um mistério, no lodo escuro da taverna? Por que lembra-la a estrela do amor a luz do lampião da crápula? Poesia! sabeis o que e a poesia? —Meio cento de palavras sonoras e vãs que um pugilo de homens pálidos entende, uma escada de sons e harmonias que aquelas almas loucas parecem idéias e lhes despertam ilusões como a lua as sombras Isto no que se chama os poetas. Agora, no ideal, na mulher, o ressaibo do ultimo romance, o delírio e a paixão da ultima heroína de novela, e o presente incerto e vago de um gozo místico, pelo qual a virgem morre de volúpia, sem saber por que. . — Silencio, Bertram! teu cérebro queimaram-to os vinhos, como a lava de um vulcão as relvas e flores da campina. Silencio! es como essas plantas que nascem e mergulham no mar morto: cobre-as uma cristalização calcaria, enfezam-se e mirram. A poesia, eu t'o direi também por minha vez, e o voo das aves da manha no banho morno das nuvens vermelhas da madrugada, e o cervo que se role no orvalho da montanha relvosa, que se esquece da morte de amanha, da agonia de ontem em seu leito de flores! —Basta, Claudius: que isso que ai dizes ninguém o entende: são palavras, palavras e palavras, como o disse Hamlet: e tudo isso e inanido e vazio como uma caveira seca, mentiroso como os vapores infectos da terra que o sol no crepúsculo irisa de mil cores, e que se chamam as nuvens, ou essa fade zombadora e nevoenta que se chama a poesia! —A historia! a historia! Claudius, não vês que essa discussão nos fez bocejar de tédio? —Pois bem, contarei o resto da historia. No fim desse dia eu tinha dobrado minha fortuna.”

Indicação do Aion
E este foi o melhor livro que eu li em 2012. 


[chega de chegar, depressa é muito devagar]

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

O Vigário - Rolf Hochhuth


“ATO V – AUSCHWITZ OU A PERGUNTA FEITA A DEUS
CENA 1
O palco deve estar o mais escuro possível. E o estaria por completo, se não se divisasse o posto da guarda à esquerda, no primeiro plano.Torna-se desde logo evidente, pelo efeito sonoro, que os monólogos são recitados ou “pensados” no interior do trem, sem que os recitadores apareçam. Ouve-se o ruído de um trem de carga em movimento, que depois pára. A lívida luz da alvorada ilumina parcamente a cena, de modo a tornar só visíveis as silhuetas dos deportados, completamente amontoados no fundo, à direita, entre malas, cestas e embrulhos. Por enquanto, não haverá nenhum outro efeito realista, como choro de crianças, conversas, etc., a não ser a batida monocórdica das rodas nos trilhos da estrada de ferro, a qual deve persistir também durante a recitação dos monólogos.MONÓLOGOSO VELHO:Não quero morrer no vagão nem aos olhos de meus netos. Há tanto tempo a angústia esvaeceu suas faces, truncou suas perguntas! Eles sentiam o que eu sei agora – que o fim desta jornada é também o nosso fim. Em toda parte e onde quer que seja, ó Deus Terrível, o Céu sempre nos cobre, e também são os carrascos homens que houveram em Vós o seu poder. Também Vós vedes, Senhor? Sim, também haveis de ver...Tão fiel Vos servi, entre tantos que Vos negam, tão certo estava eu da Vossa onipotência! Como poderia imaginar, ó Deus Inconcebível, que também aqui obraria a Vossa mão? Não era o meu consolo na velhice crer que ninguém Vos arrancaria do timão?É esta fé em Vós que me destrói!Eu Vos advirto pelo Vosso Nome: não mostreis vossa grandeza incinerando crianças ante as mães, para que ouçais repetir Vosso nome nos gritos torturados! Quem poderá ver no fumo das fornalhas um presságio de ressurreição? Ó Deus Infinito... ser-Vos-á mais semelhante que o homem se acaso não tiver também limites?Estará ele em tal abismo de maldade porque o moldaste à Vossa própria Imagem?Já não posso ter cólera, nem orar. Ó Deus Funesto, agora eu só Vos posso implorar: não me deixeis morrer neste vagão, nem diante dos olhos dos meus netos.”Decidi começar a resenha pelo trecho hoje porque é um trecho bastante comprido e impactante; tem exatamente o propósito de ambientar o livro e chamar a atenção para ele. Rolf Hochhuth é um alemão nascido em 1931 e que observa os acontecimentos de suas duas primeiras décadas de vida jovem demais para tomar um partido. É justamente por essa razão que ele, na idade adulta, atormenta-se com a idéia de que poderia ter escolhido o lado nazista e busca compreender, por esse motivo, o que deu errado com a história de seu país.

Nessa pesquisa, o autor esbarra com a total omissão do Vaticano (como instituição na figura do Papa) na questão da deportação dos judeus, que eram levados pelas tropas da SS mesmo debaixo dos muros do Vaticano em Roma. A partir daí, Rolf escreve a peça como uma crítica profundamente embasada na história, que como sempre, era composta de dois opostos: a total omissão e porque não, frieza do Papa Pio XII, que preferiu manter as relações políticas estáveis com Hitler e Mussolini ao invés de fazer um pronunciamento contra a deportação de judeus – o que seria altamente significante, uma vez que um alto número de soldados alemães era católico – e a compaixão de alguns ministros menores, representados pelo personagem padre Ricardo, que se desespera quando tem notícias do horror que vem acontecendo e coloca toda a sua fé e força para ajudar aqueles que considera seus irmãos na Terra, ou ainda dos conventos e seminários que eram imunes à fiscalização alemã e permaneciam lotados com judeus refugiados.

Não vejo extrema necessidade de delinear aqui o enredo, porque já acredito que a proposta é demais interessante. Quanto à peça, ela é bastante variada em cenários e personagens, passando pelo alto escalão da SS, o campo de concentração de Auschwitz e os salões do Vaticano. A edição no Brasil conta com um anexo histórico, em que o próprio autor expõe a pesquisa que realizou e faz considerações políticas sobre como a Igreja se portou na época e ainda sobre o Holocausto em si.

O Vigário é uma leitura pouco popular – lamentavelmente – e muito voltada ao pensar. Não deixe que passe a oportunidade de se comover e porque não, se informar com um pedaço de sua própria história.

Esse foi o melhor livro do meu ano de 2012. Ele não é encontrado novo em livrarias, mas com certeza uma biblioteca municipal ou sebos devem tê-lo no catálogo.

See ya.
Indicação da Amanda

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A Revolução dos Bichos - Parte II - Animals (Pink Floyd)


[gotta admit that I’m little bit confused
sometimes it seems to me as if I’m just being used]

Terminamos 2012 com o especial da Laranja Mecânica, e adentramos 2013 com um especial divido em duas partes a respeito da obra A Revolução dos Bichos, de George Orwell. Como vocês podem ter reparado este especial possui um propósito diferente, que não é apenas prender-se no livro, mas sim também compara-lo com outra genialidade, mas desta vez musical: Animals, álbum da banda inglesa Pink Floyd. E após a excelente resenha de ontem de nossa amiga Amanda, sou eu, Junior, quem tomarei as rédeas dessa segunda parte de nosso especial.

Admito pra vocês que não sei como começo por aqui. Não é tão fácil assim falar de Pink Floyd. É algo deveras complexo pra expor de forma sucinta uma banda que possui uma história relativa ao tamanho de sua música Echoes.

Em 1977, o Pink Floyd lançou um álbum conceitual chamado Animals, no qual pauta-se em uma crítica severa no sentido político-social. Álbum este que foi totalmente baseado no livro A Revolução dos Bichos, mas que não se prende apenas a isto. O Pink Floyd utiliza de recursos do livro para abrirem suas próprias vertentes. Um pouco diferente do livro, que é uma crítica ao stalianismo, Animals trata-se de uma crítica ao capitalismo, principalmente a indústria musical.

O álbum possui 5 músicas é dividido em três grupos animalescos (cada um representando uma música): Dogs (cachorros), Sheeps (ovelhas) e Pigs (porcos). As outras duas músicas do álbum, que são Pigs On The Wing (Part One) e Pigs On The Wing (Part Two) são mais como uma casca do álbum, como se fossem uma abertura deste (Part 1) e um encerramento (Part 2). Estas duas músicas pouco tem a ver com o conceito em si do disco, tratam-se de duas letras que Roger Waters (baixista da banda) compôs para a sua namorada da época. Então vou analisar mais as três músicas principais, individualmente, que são as que se traçam um paralelo com o livro. No final, deixarei um trecho traduzido de cada música.

1. A começar pela faixa Dogs (cachorros, do inglês):

No livro de Orwell os cachorros são mostrados como os homens da lei, seja a polícia ou exército. Aqueles que protegem de qualquer forma os porcos, mas também desejam ser como eles. Os cachorros são moldados pelos porcos para agirem de acordo com a vontade destes. Pode-se dizer também que os cachorros representam aquela parcela corrupta pela qual o sistema cria. A parcela gananciosa, que não possui todo o poder, mas sempre está próximo ao sistema, e segue ao seu acordo.

Nesta faixa do Pink Floyd, o conceito de cachorros não se diverge muito do livro. Na música, os cachorros (Dogs) são mostramos como aqueles que procuram tornarem-se porcos, fazem qualquer coisa para poder subir na hierarquia. Usam de seu poder para a ganância, de forma quase maquiavélica, a fim de obterem o que querem através da submissão dos outros. O mais curioso é que no final desta faixa, são mostrados os cachorros condenando-se moralmente. Como se no fim percebessem todos os seus atos, e sentissem o extremo arrependimento e remorso por quem foram durante a vida.

“E passado algum tempo você pode trabalhar em pontos por estiloComo a gravata e um firme aperto de mãoUm certo olhar nos olhos e um sorriso fácilVocê tem que passar confiança para as pessoas que você mentePara que quando elas virarem as costasVocê tenha a chance de enfiar a faca”

2. Segue a análise da próxima faixa do disco, que é a Pigs (porcos, do inglês):

Na obra de George Orwell, porcos são aqueles que através de sua capacidade, tiram proveito de todo o resto da população. Colocam-se no topo da hierarquia, e usando a desculpa de que, apesar de os animais viverem em uma sociedade igualitária, eles precisam de um líder, os porcos trazem para eles todas as regalias possíveis.

Nesta música do disco, a banda traça os porcos (Pigs) como o próprio sistema. Aqueles que detêm o poder, a política escrófula e sádica em si. Assim como no livro de Orwell, os porcos são mostrados como aqueles que utilizam meios manipuladores, enquanto fingem para a população que absolutamente nada está acontecendo, e que a vida está muito melhor do que jamais fora. Aqueles que mudam o próprio sistema que eles criaram, a fim de sempre tomarem a melhor vantagem possível.

Uma coisa extremamente genial na música é que a banda faz críticas diretas a Mary Whitehouse, uma velha militante e conversadora inglesa que propagava discursos contra a banda. Ei, você, Whitehouse, que charada você é. Haha.
“Grande homem, homem porco, que charada você éUma próspera roda gigante, que charada você éE quando sua mão está sobre o seu coração,Você é quase uma risada,Perto de ser um piadista”

Por fim, vamos ao último bloco do disco, a música Sheeps (ovelhas, do inglês):

Em seu livro, Orwell retrata as ovelhas (e os demais animais) como a população em si. Mas as ovelhas recebem um “quê” a mais porque mostram-se como as mais submissas e alienadas possíveis. As ovelhas representam aquela população que simplesmente segue cegamente o líder, repetindo absolutamente tudo o que este manda as dizer, sem ao menos contestar nada, ou parar para pensar sobre o que tudo aquilo significa.

Na música do Pink Floyd, as ovelhas (Sheeps) são retratadas da mesma maneira. São a classe que está por aí, vivendo com medo dos cães, seguindo o seu líder, e completamente alienados pelo seu sistema. Há também uma crítica à igreja nesta música, pela forma como um ser pode se submeter a algum dogma, sem questioná-lo. No final da música, é dito que os “cães estão mortos”, como se os próprios porcos tivessem acabados com aqueles que os ameaçavam.
“O que você ganha fingindo que o perigo não é real?Submissos e obedientes vocês seguem o líderDescendo pelo trauteados corredores, em direção ao vale da morteMas que surpresa!Um olhar terminal choca seus olhosAgora as coisas são o que realmente parecem ser.Não, isto não é um pesadelo.”

E desta forma, encerra-se um dos álbuns mais geniais lançados no século XX, baseado na bela obra de Orwell.

Ouçam o álbum.


Indicação do Luiz A. Jr.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

A Revolução dos Bichos - George Orwell


Olá, senhoras e senhores da Posso te indicar um livro?! Nosso último especial antes de voltarmos com a publicação normal de três indicações por semana é a indicação de Revolução dos Bichos – que será dividido em duas partes: a primeira, uma análise literária e política da obra; a segunda, a análise do livro de George Orwell e o álbum Animals, da banda Pink Floyd, uma vez que a música é inspirada no texto.

Revolução dos Bichos foi (arduamente) publicado em 1945 e apontado pela Time como um dos cem melhores romances em língua inglesa da história da literatura. Obra e autor, que jazem nesse nível de garbo, trazem polêmica até hoje quando são discutidos.

Tendo isso em vista, um detalhe importante para o prosseguimento da resenha: George Orwell era socialista. Guardem.

Neste conto de fadas, numa certa fazenda denominada Granja do Solar, havia certos animais e certo porco chamado Major, que reúne seus companheiros numa noite para falar de um sonho que tivera, um sonho de liberdade e não de servidão aos exploradores humanos. Os outros bichos se encantam com a idéia, e sonham em como será viver em comunidade, exercendo sua natureza livre e sua força de trabalho em seus próprios interesses. Três dias depois, o velho Major morre, deixando seus ideais de luta aos bichos e a particularmente dois porcos: Bola-de-Neve e Napoleão, que passam a organizar os animais em um movimento clandestino para a derrubada do humano proprietário da fazenda, o Sr. Jones.

Como toda boa revolução, há um ideal, os princípios ensinados por Major que são transformados pelos letrados porcos em uma filosofia denominada “Animalismo”; um herói, o velho Major; e um hino, a canção Bichos da Inglaterra. Segue um trecho:

“Bichos ingleses e irlandeses,
Bichos de todas as partes!
Eis a mensagem de esperança,
No futuro que virá!

Cedo ou tarde virá o dia,
Cairá a tirania
E os campos todos da Inglaterra
Só aos bichos caberão!

Não mais argolas em nossas ventas,
Dorsos livres dos arreios,
Freios e esporas, descartados,
Chicotadas abolidas!

Muito mais ricos do que sonhamos
Possuiremos daí por diante
O trigo, o feno, e a cevada,
Pasto, aveia e feijão!”

Para cortar os entrementes, a Revolução se dá e os humanos são expulsos da fazenda. Contudo, Bola-de-neve e Napoleão têm divergências na administração da agora Granja dos Bichos. Uma ninhada de cachorrinhos nasce de uma das cachorras da fazenda e o porco Napoleão toma para si a educação dos filhotes assim que desmamam, ninguém mais tendo notícias deles. Isto também é importante.

A partir de uma divergência sobre a construção de um moinho para poupar os esforços dos bichos com o uso de energia elétrica, Napoleão surpreende. Pega seus nove cachorrinhos – agora enormes e ameaçadores cães que só o atendem (uma vez que foram criados pelo porco) e dá um golpe de estado em Bola-de-neve, expulsando-o da Granja.

O talento de Orwell é sensacional em fazer um paralelo fantasioso com a realidade concreta que pretende criticar. Revolução dos Bichos é uma paródia, uma crítica da Revolução Russa e da maneira como ela se conduziu. Major é Marx e/ou Lênin, o ideólogo que fornece a base teórica para um mundo de cooperação, trabalho e solidariedade entre os animais (socialismo e comunismo travestidos de animalismo). Bola-de-neve é Trótski, aquele líder apoiado na teoria que queria realmente fazer as coisas funcionarem, e que foi o mais corajoso quando os humanos tentam retomar a granja, o que mais incentivou os bichos no trabalho e na organização da qualidade de vida.

Já Napoleão figura Stalin, que perverte toda a ideologia de Major e transforma a Granja dos Bichos na sua ditadura pessoal. Aqui, todos os elementos de propaganda do partido comunista Russo são inseridos (os mesmo do partido Nazista, Fascista, da Coréia do Norte, a China de Mao, etc etc etc). Napoleão é um bravo herói, Bola-de-neve um traidor e desertor. Há desfiles, a música Bichos da Inglaterra é substituída por outro hino, já que Napoleão alega que esse era o hino da revolução e a revolução era passado. Eventualmente, porém, eram três elementos que mantinham verdadeiramente a ditadura de Napoleão: o primeiro, a grande ignorância dos bichos em geral; o segundo, os nove cães que amedrontavam a todos e o terceiro, o porco chamado Garganta, hábil em discursos e em convencer os demais animais de qualquer coisa.

O tempo passa e os bichos já não se lembram de como era viver sob o domínio dos humanos; permanece, porém, a ojeriza inicial a eles, sintetizada nos sete mandamentos iniciais do animalismo, de antes da revolução:

“1. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.
2. Qualquer coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo.
3. Nenhum animal usará roupas.
4. Nenhum animal dormirá em cama.
5. Nenhum animal beberá álcool.
6. Nenhum animal matará outro animal.
7. Todos os animais são iguais”

Todos os animais eram iguais no início, porém, sob o domínio de Napoleão e a partir da ignorância dos demais, as coisas vão sendo transformadas. As rações vão sendo cortadas, o trabalho é maior, mas com a ajuda dos discursos de Garganta, todos ainda se convencem de que estão melhores do que antes – apesar da horrível situação de exploração, medo e dominação em que se encontram.

Os princípios ideais vão sendo transformados – uma sacada b-r-i-l-h-a-n-t-e do autor, como por exemplo:
“4. Nenhum animal dormirá em cama com lençóis.
5. Nenhum animal beberá álcool em excesso.
6. Nenhum animal matará outro animal sem motivo.”

Por fim, todas as máximas são substituídas na calada da noite por outra – a suprema genialidade de George Orwell e suprema subversão da idéia original dos bichos:

“Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros.”

Há centenas de outras coisas que eu adoraria colocar aqui, mas realmente, a resenha não terá mais fim. Antes de terminar, contudo, lembra-se de quando eu disse que era importante que a idéia de que George Orwell era socialista fosse lembrada durante a leitura? Pois bem.

É importante esclarecer que a teoria do socialismo e do comunismo é bastante diferente de suas aplicações no mundo político de hoje. Porém, Orwell ao escrever Revolução dos Bichos (que até seria usada posteriormente como propaganda negativa pela América na Guerra Fria) e ao escrever suas outras obras, como 1984, cai numa armadilha: a de enterrar a ideologia em que ele próprio acreditava.

Reformulando: Orwell não enterra a teoria. Ele enterra sua viabilidade, de certa forma, quando exalta sua fácil perversão nas mãos de quem não enxerga outro propósito a não ser o próprio. Nas mãos de quem, mesmo por instituição da maioria, tem o poder depositado em si e tem os elementos necessários para mantê-lo.

Para terminar, o último trecho do livro. Lembra-se de como no início, os animais queriam apenas e tão somente libertar-se dos humanos? A verdade é que no fim – sob perversão – não há distinção entre bom e mau, entre humanos e porcos.

“O Sr. Pilkington referira-se o tempo todo à "Granja dos Bichos". Naturalmente ele não podia saber – mesmo porque Napoleão o estava proclamando, naquele instante, pela primeira vez – que a denominação "Granja dos Bichos" fora abolida. A partir daquele momento, sua granja voltaria a ser conhecida como "Granja do Solar", que, aliás, parecia-lhe, era seu nome correto e original. Senhores – concluiu Napoleão, levantarei o mesmo brinde, mas sob forma diferente. Encham, até a borda, seus copos. Senhores, este é o meu brinde. À prosperidade da Granja do Solar! Houve as mesmas calorosas felicitações de antes, e os copos foram esvaziados. Mas aos olhos dos bichos, que lá de for a espiavam, pareceu que algo estranho estava acontecendo. Que diabo teria alterado a cara dos porcos? Os olhos embaçados de Quitéria iam de uma cara para outra. Algumas tinham cinco queixos, outras quatro, outras três. Mas alguma coisa parecia misturá-las e modificá-las. Então, findos os aplausos, o grupo pegou novamente nas cartas, recomeçando o jogo interrompido, e os animais afastaram-se silenciosamente. Não haviam, porém, chegado sequer a vinte metros quando se detiveram, ante o vozerio alto que vinha lá de dentro. Voltaram correndo e tornaram a espiar pela janela. Realmente, era uma discussão violenta. Gritos, socos na mesa, olhares suspeitos, furiosas negativas. A origem do caso, ao que parecia, fora o fato de Napoleão e o Sr. Pilkington haverem, ao mesmo tempo, jogado um ás de espadas. Doze vozes gritavam cheias de ódio e eram todas iguais. Não havia dúvida, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco.”

Senhoras e senhoras, esperamos que tenham gostado. Amanhã segue a segunda parte da resenha, que relacionará a obra e a música do Pink Floyd.

Até o retorno normal das resenhas!
Indicação da Amanda.