sábado, 13 de abril de 2013

Budapeste – Chico Buarque



“Apaguei a tevê, no Rio eram sete da noite, boa hora para telefonar pra casa; atendeu a secretária eletrônica, não deixei recado, nem faria sentido dizer: oi querida, sou eu, estou em Budapeste, deu um bode no avião, um beijo.”
Ao abrir Budapeste, várias coisas vem a nossa cabeça, para quem não conhece os romances do Chico, há de se pensar que é o cantor contando uma aventura dele em Budapeste. Mas não é, a medida que as páginas avançam, narrador (o livro é todo em primeiro pessoa) e autor se distanciam, e isto torna o livro simplesmente fantástico.

José Costa, um ghost writer, que trabalha numa agência com o amigo Álvaro, conta logo no inicio como acabou em Budapeste, graças a um pouso inesperado, a companhia acabou lhe ofertando uma noite num hotel, e ele então ligou a TV que apresentava uma jornalista falando em húngaro, nas palavras de Costa: “Dizem as más línguas, que o húngaro é a única língua que o Diabo respeita”. O fascínio do escritor pelo idioma, despertado na viagem é então trabalhado por todo o romance, assim como seus envolvimentos amorosos, a mulher no Brasil, Vanda, que trabalha apresentando um telejornal, e Kriska, sua professora de húngaro em Budapeste, quando José volta a cidade, os dois casos amorosos são dois pontos altos da narrativa, porque mesmo traindo ambas as mulheres José de certa forma as ama verdadeiramente, sabemos disso porque temos acesso aos seus pensamentos, e a maneira como as coisas acontecem, a briga com Vanda, o envolvimento com Kriska, faz com que, mesmo que equivocados perdoemos as atitudes de José.

Outro ponto interessante do livro, é o fato de José trabalhar como Ghost Writer, e não se sentir mal com isso, ele escreve livros que são assinados por outras pessoas e de certa forma recebe bem por isso. Em certo ponto da história ele escreve um livro para um alemão Kasper Krabble, O Ginógrafo, sua mulher lê o livro e fica encantada pelo alemão, sem se dar conta que na realidade o livro foi assinado por seu marido em meio a um casamento que mostra sérios sinais de desgaste.
Em meio a todo esse furacão, e ainda fascinado pelo idioma húngaro, José volta a Budapeste, e lá conhece Kriska numa livraria, ela começa a dar aulas a ele, e lá pelas tantas os dois acabam se envolvendo, e na Hungria José Costa acaba arrumando emprego numa editora para fazer exatamente o que fazia no Brasil, com a diferença que em húngaro, diferentemente do português, ele sabe escreve poesia. O livro é repleto de tiradas de José sobre ser escritor, sobre sua criatividade, sobre seus trabalhos, sobre sues medos e anseios, e sobre como ele se sente bem, mesmo não sendo reconhecido, com seu trabalho sendo elogiado, O Ginógrafo vende como água, e as pessoas passam por ele na livraria falando bem do livro, sem nem imaginar que ele é o real escritor do mesmo.

As idas e vindas de José de Budapeste, suas aventuras com desconhecidos até conhecer Kriska, suspense leve bem apresentando aqui e ali, que te prende páginas a fio esperando respostas, o interesse a dificuldade e o esforço do protagonista em aprender húngaro, o casamento, e a relação com seu filho são os pontos chave do romance.
O livro é muito bem escrito, e trabalhado, quando você se dá conta quer saber o que vai acontecer, o livro segura o clímax de forma absurdamente bem feita, o que amarra os acontecimentos e te leva inevitavelmente ao final do livro que adianto: é repleto de surpresas, revelações interessantes, e confusões que fazem com que a ressaca literária seja extremamente comprida, quando se chega a última página, e você se dá conta de que acabou, dá pra se sentir perdido, sem rumo, porque o livro é tão fantasticamente bem construído que é de se ficar triste quando se chega ao final, você lê Budapeste sempre querendo mais, esperando por mais, por mais tiradas geniais, trechos bem construídos, é um novelo que você vai desenrolando e quando você termina de desenrolar você fica extremamente chateado, mas extasiado porque como dito o livro é muito bom.

Chico Buarque, famoso por suas composições musicais, seu engajamento político, mostra que é um artista muito versátil e grande escritor, seja em poesia, ou em prosa, e Budapeste mostra tamanha riqueza do cantor também em prosa, num texto que flui de forma excepcional porque é bem argumentado e usa todos os recursos estilísticos a seu favor.
Enfim, um livro tão maravilhoso que eu no seu lugar começaria a ler agora mesmo!

O livro virou filme em 2009, com o ator Leonardo Medeiros vivendo José Costa e Giovanna Antonelli dando vida a Vanda. O filme é muito bem realizado, e bem fiel ao livro, o que o torna também muito bom e vale a pena conferir após a leitura. Aqui deixo-vos o trailer: http://migre.me/e69kM
“Abri os olhos num sobressalto e vi o fotógrafo outra vez o revólver na mão, que estava trêmula; por um instante acreditei que não fosse a mão, mas o revólver a tremer ainda com meu tremor. Chegou-o à cabeça, tornou a baixa-lo, examinou, chacoalhou, abandonou-o no carpete, e para mim estava ótimo, passara a bebedeira e o tempo de bravatas. Já me dispunha a lhe dar um abraço, beijar a mão da lourinha, acompanhá-los até a porta, encher os bolsos dele com as garrafinhas do frigobar, quando o vi empurrando a arma com a ponta do pé, na minha direção. Deve ter descoberto que eu não falava húngaro, pois com muita ênfase repetia uns gestos semi-circulares. Queria dizer que a roleta-russa tinha girado no sentido horário e agora deveria reverter o giro, a começar por mim. Estava roubando, estava inventando uma regra absurda, eu queria protestar, mas nem sequer sabia dizer não em húngaro. Quem me socorreu foi a lourinha que tomou o revólver, tentou socá-lo de volta na mão do namorado, e aí ele chamou ela de vaca. Falou vaca com todas as letras, como nós latinos falamos vaca desde a Roma antiga, e concluí que o farsante também não falava húngaro coisa nenhuma. Era romeno, usava um medalhão de bronze no peito, uma argola na orelha, um anel em cada dedo, era um cigano romeno, e teve razão a lourinha em lhe dizer: sinto asco do teu espetáculo grotesco, ao menos foi isso que eu escutei. E a fim de vexá-lo, voltou a arma contra a própria testa e atirou sem pestanejar. Não havia bala, bem feito, ao cigano não restava alternativa; recolheu o revólver, apontou-o contra a têmpora, e quanto o balaço lhe arrombasse os ossos, calculei que a massa encefálica espirraria no cabelo da lourinha, ia ser nojento. Ia ser asqueroso, mas eu não conseguia deixar de olhar, e vi como se fechavam as dobradiças do seu dedo no gatilho, cheguei a ouvir ranger a mola do gatilho e clique. Neca, não morreu, jogou o revólver no meu colo, mostrou os dentes de ouro para a lourinha, em seguida ambos me encararam. E assim ficou evidente que por alguma artimanha, com alguma prestidigitação cigana, eles tinham reservado para mim a bala do tambor. Estavam de olho no meu dinheiro, desde o início, organizavam minha morte. E seria uma morte tão oportuna para eles quanto inglória para mim, o suicídio de um turista alcoolizado em Budapeste.” 

Indicação do Aion
[chega de chegar, depressa é muito devagar]

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