sexta-feira, 10 de maio de 2013

Ainda Orangotangos, de Paulo Scott -- Livros do Mal, 2003; Bertrand Brasil, 2007



“(como cão, que são todos os homens)”

Por mais que os contos não sejam realmente bonitos, no sentido de serem uma história “agradável” de se ler, isso acaba virando um dos maiores atrativos do livro. Nas linhas de Scott, beleza e fealdade são como gêmeos siameses dividindo algum órgão vital. Do mesmo modo que ele consegue narrar um massacre na festinha infantil, ele conta do filho que toureia carros em homenagem a mãe recém falecida. Ambos de forma bela, sem deixar de ser um soco no estômago. Sempre há uma angústia presente, como solidão, raiva, medo. Mas há carinho, amor, proteção. Todos os instintos mais primitivos.

Nenhum conto é dos mais comuns nas suas estruturas. O maior desse livro tem seis páginas. Todos estão em parágrafo único. O primeiro impacto, então, fica na transmutação de vozes narrativas entre narrador e personagens, ou narrador/personagem e diálogos com outras personagens. Também o autor utiliza sem remorso (e com grande habilidade) os parênteses. E a linguagem sempre flerta com a prosa poética.

Algumas histórias (e o tamanho reduzido delas até ajuda nisso) é bom ler duas vezes. Além de uma ocasional não-linearidade, ele costuma entregar os personagens prontos. Não é um romance. Não dá tempo de desenvolver um personagem desde o início, e fazer o leitor, lentamente, afeiçoar-se a ele. É uma característica bem trevisaniana do Scott. Como se ele tivesse escrito muito mais do que ele nos mostra, uma vida inteira, talvez, mas ele nos dá um recorte da tal situação em específico. E é só ali que a ação acontece. Mas claro, há aqueles contos que são mais tranquilos e lineares de ler. Não se espante.

O cenário, quase sempre, é a cidade de Porto Alegre, a qual ele cita nomes de ruas várias vezes. Já os temas passam por futebol, preconceitos, drogas, moradores de rua, relações familiares conturbadas, senhoras ligando para mães de jovens mortos, paraplégicos perseguidos... uma porrada de coisas. Porém todos eles têm em comum essa frieza que tenta ilustrar o lado mais animalesco do ser humano. Não importando se esse é o comportamento natural ou se se está sendo condicionado a agir dessa forma. No meio de um mundo que se diz tão civilizado, histórias como essas nos fazem lembrar que a gente continua bicho.

Como são bem curtos, vai logo um conto na íntegra:

“Um Lugar Como Outro Qualquer
Foram mais de quatrocentos quilômetros. Apesar das dores nas costas, estou exultante, é nossa centésima apresentação. Tudo parece em ordem. Os convidados chegam aos poucos. A banda começa a tocar. O sujeito que nos contratou se aproxima (é um dos padrinhos do noivo), convida-me para um uísque na copa. Aceito. Ele enche meu copo como se estivesse fazendo grande favor, tira do bolso do casaco trinta notas de cinqüenta, conta uma por uma e as coloca sobre o balcão. Agradeço. Ele sai sem rodeios. Fico bebendo sozinho, provo uns salgadinhos e a salada de maionese. Termino o uísque, volto pro solão (está quase cheio). Os pares estão animados, a música dos garotos é boa, empolgo-me. Atravesso a pista em direção a uma das gurias que conversam eufóricas, próximo à porta de entrada, peço licença, convido uma delas pra dançar. Não danço com preto, ela responde. As outras riem, dizem que fez muito bem. Pelo jeito, aqui ninguém dança com o pessoal da minha laia. A mais bonita diz que aprendi rápido e me recomenda o puteiro perto do trevo de entrada da cidade: lá tem umas indiazinhas fedorentas que se tu pagar direitinho dançam contigo a noite toda. Riem ainda mais. Dou um passo à frente: não dançam com preto? Então, ninguém mais dança nesta merda. Emudecem por completo. Faço sinal pro vocalista, os músicos param imediatamente, começam a desmontar o equipamento. O sujeito que nos contratou se aproxima, devolvo-lhe o dinheiro, ele tenta argumentar, viro as costas, vou em direção ao microônibus. Ligo o motor, fico esperando. Assim que o último músico entra, arranco sem dar uma palavra. No terceiro quarteirão, um deles reclama: viemos até aqui pra não tocar... não acredito. Olho-o pelo retrovisor, respondo: vamos tocar sim e vai ser de graça... deixa só eu encontrar um tal lugar ali no trevo de entrada da cidade.”
Indicação do Guilherme
[parangaricutirimírruaro]

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