quinta-feira, 23 de maio de 2013

Sinuca Embaixo D’água, de Carol Bensimon -- Companhia das Letras, 2009



“Você vai ao banheiro e, assim que a cabeça se põe a funcionar, você se depara com a velha novidade.”

Antônia bateu o carro e morreu. Parece spoiler, mas não é. Isso nos é apresentado logo no início do livro. E mesmo sabendo disso, ainda causa uma estranheza ler uma personagem falando de outra que não está mais ali, porque pra nós ela nunca esteve ali. Ou talvez nunca tenha deixado de estar.

Cada capítulo é narrado por uma personagem diferente. Alguns aparecem apenas uma vez, para dar um entendimento de como a morte de Antônia afetou suas vidas de algum modo. Mas há também aquelas que se repetem, que são Bernardo (amigo próximo de Antônia), Camilo (irmão de Antônia) e Polaco (dono do bar que ela costumava ir com os amigos).

Carol Bensimon conseguiu empregar vozes diferentes no decorrer do livro com muita propriedade, conseguindo alternar entre o tímido Bernardo e o rebelde Camilo, dando a personalidade devida para cada um na forma de escrever. Os diálogos geralmente estão inseridos dentro dos parágrafos, sem qualquer sinal de que aquilo é uma fala que não seja a nossa percepção de leitor. Mas há momentos em que ela prefere abrir novo parágrafo, por travessão e deixar o personagem falar pra fora, além dos pensamentos que acompanhamos.

Polaco, apesar de abatido, parece mais preocupado com seu passado, que aparenta estar de alguma forma voltando para lhe assombrar. O que ele não entende muito bem por que, nem como seria possível. Já Lucas é uma criança que por acaso ouviu o acidente da janela de seu quarto, narrando com toda sua inocência o que aconteceu na fatídica noite, segundo sua visão. A magnitude do acidente chega a atingir pessoas desconhecidas, já que depois do acorrido uma campanha de segurança no trânsito começa a se propagar pelo local.

A obra toca em pontos delicados. A preocupação com o que realmente aconteceu está lá. O sentimento de culpa de achar que poderia ter evitado o pior está lá. A impotência de que não há mais nada a se fazer está lá. O passado e o presente tendo que se enfrentar para que surja o futuro está lá.

Quando a morte te atinge de algum modo é praticamente como se um pedaço seu morresse também. A gente precisa reconstruir uma base de pensamento e começar a assimilar que alguém muito próximo não vai mais estar ali – a não ser em memória. E é isso que os personagens principais desse livro fazem. Se deparam com lembranças de alguém que se foi enquanto a vida deles continua. A única saída é aprender a lidar com isso. É treinando que se aprende a jogar.

Um trecho da personagem Polaco:

“Os outros precisavam ser lembrados. Eu precisava é ser esquecido. mas eles faziam o coro do você deve ficar, ficar e ter uma família (mas não com a Rosa). É algo que simplesmente emana das pessoas até que seja mais do que a vontade de uma ou de um grupo delas, até que seja a própria cidade se dobrando ao seu redor. Eu sempre fui assim, insatisfeito com o que já tinham escolhido para mim mesmo antes de eu nascer, e vai ver por isso que meu pai tinha aquela cara. Só comigo. Uma cara de descrença generalizada, a boca salivando a antecipação do meu erro. O meu erro era a sua grande vitória. Mas o que fazer com o que fica a meio caminho de qualquer entendimento, o que fazer com todo esse bolor? Deixo longe. Não sou burguês de ir em terapia, nem acredito na cura pela conversa, num deitado e noutro sentado, e na falta do olho no olho. Você fala o que queria esquecer, eles anotam para poder lembrar, e se tanto, porque é impossível que estejam fazendo listas de compras durante a conversa, desenhos abstratos, e eu entendo, a minha conduta é exatamente a conduta do não se meta no problema dos outros. Não parece nada digno. E não é. Mas sei que honra também é luxo.
Antônia era ainda uma garotinha quando eu cheguei aqui, parada na frente de casa e olhando seu cata-vento girar. Talvez tenha sido isso, a vontade de ficar neste lugar, que me fez ver o bar e a placa de Precisa-se.(...)Isabel me abre a porta, com uma velha camiseta do Mickey e uma bermuda. Como se jamais fosse receber uma visita novamente.
– Oi, Alexandre.
Retribuo um leve sorriso que surge, e pergunto se Camilo está em casa. Ele foi viajar, ela diz, com uma tristeza de saber que era ele quem eu procurava, ou desapontada com Camilo por ele não estar aqui agora. Hesito por alguns instantes e sigo parado em frente da casa, olhando pra baixo, Isabel com a porta aberta esperando. Quer que eu dê algum recado?, ela pergunta. Eu a encaro, e de repente posso ver no seu rosto que faria bem para ela se eu perguntasse, se eu perguntasse sem pudores e sem medo das lembranças que viriam. Então eu pergunto.
– Pode parecer besteira, mas será que você se lembra daquele cata-vento?
Ela sorri pra valer, e me pede pra entrar.”

Indicação do Guilherme
[parangaricutirimírruaro]

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