"Eu prometi levar a cruz até dentro da igreja, tenho que levar. Andei sete léguas. Não vou me sujar com a santa por causa de meio metro."
Bem por motivos de força maior, acabei atrasando a resenha de ontem. Prometo, que depois do atraso, não vou me ater aos rodeios. Essa semana eu escolhi falar de outra peça de teatro, e também de outro escritor brasileiro, digamos assim, mais contemporâneo. O dramaturgo da vez é o excelente Dias Gomes.
Como eu prometi, não vou fazer rodeios, e não vou falar da vida do Dias Gomes, por dois motivos, primeiro porque este é o único livro dele que eu li. Segundo, porque ele foi inevitavelmente mais conhecido por seus trabalhos na televisão, e eu poderia falar mil horas a respeito dele, mas fugiria até do tema desta página.
O pagador de promessas, é uma peça de teatro, que conta a história de Zé do Burro, um fazendeiro, por vezes meio turrão, mas que ganha a nossa simpatia ao longo da história. Zé, mora com a esposa Rosa em uma fazenda, e seu burro, seu amado burrico acaba adoecendo. Zé então promete a Iansã (do Candomblé, equivalente a Santa Barbara do Catolicismo) que se o animal se recuperar, vai levar uma cruz, a pé, até a igreja de Santa Barbara.
O animal de recupera, e Zé precisa cumprir sua promessa. A história começa efetivamente com Zé e Rosa chegando em frente a igreja pela manhã, quando falta pouco para Zé terminar de cumprir o que veio fazer.
Pois bem, Dias Gomes, aqui, ao apresentar este enredo relativamente simples, quer discutir diversas coisas comuns a sociedade brasileira, a devoção de todos a santos, e principalmente a intolerância da Igreja Católica. Ao chegar, Zé recebe uma negativa do padre, o religioso não aceita que Zé coloque sua cruz dentro da igreja de Santa Barbara. O motivo? Diz o Padre, que Zé fez a promessa a Iansã, e não a Santa Barbara, o que o padre não sabe, e o que o texto trabalha muito bem, é que Iansã e Santa Barbara, são exatamente a mesma santa, equivalendo para religiões diferentes, aqui se faz presente não só a figura da intolerância, mas o Padre reflete o preconceito de muitas religiões para outras, o padre reflete a opinião de vários brasileiros, que não respeitam, não conhecem, e por não conhecerem saem dizendo que a religião do outro não presta, confundem tudo, e isto é trabalhado muito bem por Dias Gomes.
Zé não desiste, ele precisa cumprir sua promessa, o burro sobreviveu, seu animal favorito está vivo, Zé tem a determinação de colocar a cruz dentro da igreja, e conseguir cumprir a sua promessa, e depois seguir com a sua vida, é somente isso que o protagonista quer. Ele por vezes não apresenta nenhum tipo de outra vontade, ou desejo, ele apenas quer cumprir uma promessa. A intolerância do Padre é tamanha, que ele fecha a porta da igreja a Zé, que decide fazer campana na frente do local, até conseguir cumprir o que veio cumprir.
A movimentação no local, traz outros personagens a história, como Bonitão, que acaba se envolvendo com Rosa, e esta trai seu marido. E a também a chegada de um repórter, que se aproveita da situação de Zé, para noticias coisas bombásticas em seu jornal. O repórter é um dos mais bem delineados personagens, ele aparentemente está muito preocupado com a situação de Zé, se compadece do drama do protagonista, está determinado a ajuda-lo, aparentemente, no entanto, tudo que ele quer é se aproveitar da ingenuidade do personagem para aí, ter um excelente furo de reportagem e fazer a festa com a vendagem do seu jornal no dia seguinte, O repórter, é o retrato de uma mídia brasileira, o drama de espetáculo, se aproveitar da desgraça alheia pra fazer barulho e vender mais jornal. Tema atemporal vide o tratamento que a mídia dá a casos como o da menina Isabela Nardoni...
A policia também aparece na peça, e outros sertanejos que entendem o pedido de Zé do Burro, aqui há ainda o choque entre um Brasil urbano e um Brasil rural, e a também a presença da diversidade religiosa, o que confunde a cabeça de Zé do Burro, que fez uma promessa a Santa Barbara, num templo de Iansã. Ele prometeu colocar a cruz dentro da igreja de Santa Barbara, e não quer discussões, ele veio para fazer isto, e só vai sossegar quando o fizer, nem que seja a última coisa que ele faça em sua vida.
Não vou falar mais nada, nem do enredo, nem de nada, nem das criticas sociais muito bem trabalhadas pela peça. Apenas quero dizer, que O pagador de promessas, tem qualidade literária, e excelentes diálogos, como livro, te puxa numa teia da primeira a última página, mesmo que você não seja religioso – ou até nem acredite em Deus – você se pega torcendo por Zé do Burro, você quer que ele consiga o seu intento, que ele possa viver a sua vida, e consiga cumprir a promessa.
Ainda no tempo do cinema em preto e branco, em 1962, foi realizada uma versão cinematográfica da obra, com o ator Leonardo Villar vivendo o personagem Zé do Burro, o filme é praticamente uma representação na telona, igual à peça de teatro de Dias Gomes, o que dá ao filme todos os elogios que eu vim fazendo ao livro, então vale a muito a pena ver.
Como eu sou legal aqui vai o link para o filme, que está disponível completo e online para você ver:http://migre.me/dnJQa , O referido filme recebeu diversos prêmios e uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro.
O livro e o filme são fantásticos, vale muito a pena conferir ambos.
É isso aí, e mais uma vez perdoem o meu atraso.
“REPÓRTER (Entra acompanhado do Fotógrafo) Lá está ele.(Vai a Zé, enquanto o Fotógrafo circula à procura de ângulos. O Repórter é vivo e perspicaz. Dirige um cumprimento entusiasta a Zé-do-Burro) Bom dia, amigo! (Aperta efusivamente a mão de Zé-do-Burro) Parabéns! O senhor é um herói.ZÉ (com estranheza) Herói?REPÓRTER (Com entusiasmo) Sim, sete léguas carregando esta cruz. (Calcula o peso) Pesada, hem? Sete léguas... quarenta e dois quilômetros. A maior marcha que eu fiz foi de vinte e quatro quilômetros, no Serviço Militar. E o fuzil não pesava tanto assim. (Ri, mas seu riso murcha como um balão, ante o ar de desconfiança de Rosa e Zé-do-Burro) Oh, desculpe... eu sei que o senhor fez uma promessa. A comparação não foi muito feliz... (Para o Fotógrafo) Carijó, pode bater uma chapa. (Posa de frente para Zé-do-Burro, de caderno e lápis em punho) Finja que está falando comigo.ZÉ (Começa a impacientar-se) Fingir que estou falando... pra quê?REPÓRTER E dentro de algumas horas o Brasil inteiro vai saber. O senhor vai ficar famoso.ZÉ (Contrariado) Mas eu não quero ficar famoso, eu quero...ROSA (Interrompe, em tom de repreensão) Que é isso, Zé. Seja mais delicado com o moço. Ele é da gazeta...REPÓRTER A que horas chegaram aqui?ROSA Antes das cinco.REPÓRTER Fizeram o percurso então em 24 horas. Com uma cruz que deve pesar?... (Olha interrogativamente para Zé-do-Burro)ZÉ (Contrariado) Não sei, não pesei.REPÓRTER Por menos que pese, é um “record”! Sob este aspecto, podemos considerar umgrande feito esportivo. Uma prova de resistência física... (para Rosa) e de dedicação...Rosa sorri, envaidecida, sentindo-se heroína também.REPÓRTER Mas como nasceu a idéia dessa... peregrinação? (As perguntas são feitas a Zé-do-Burro, mas este recusa-se a respondê-las).ROSA Não nasceu idéia nenhuma. O burro adoeceu, ia morrer - ele fez promessa pra Santa Bárbara.REPÓRTER O burro? Que burro?ROSA O Nicolau.ZÉ (Irritado) Por quê? O senhor também vai achar que o meu burro não vale uma promessa?REPÓRTER Não, de modo algum... eu... eu apenas não sabia... então, tudo isso... quarenta e dois quilômetros... a cruz... tudo por causa de um burro... (Repentinamente, antevendo o Interesse que despertará a reportagem) Fabuloso!ROSA E não foi só isso. Ele prometeu também repartir o sítio com aquela cambada de preguiçosos.ZÉ Que preguiçosos. Gente que quer trabalhar e não tem terra.REPÓRTER Repartir o sítio... diga-me, o senhor é a favor da reforma agrária?ZÉ (Não entende) Reforma agrária? Que é isso?”
Indicação do Aion.
[chega de chegar, depressa é muito devagar]
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