sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Cartas do Inferno – Ramón Sampedro



“Pienso que vivir es un derecho y no una obligación.”

Cartas do inferno (do original em espanhol “Cartas desde el infierno”) é um desses livros que te fazem pensar a cada página virada. Por vezes, não é uma leitura agradável porque toca em temas que muitos de nós preferimos não tocar. Cartas do Inferno, como o titulo sugere, é uma sucessão de cartas que o autor, o espanhol Ramón Sampedro foi trocando ao longo de sua vida, mas precisamente depois que sofreu um acidente que o tornou tetraplégico.

Ramón era marinheiro; um dia acabou caindo de uma rocha, num lago não muito fundo, fraturando o pescoço e ficou tetraplégico, condição essa que se estendeu de 1968 data do acidente, até 1998 quando Ramón morreu.
Cartas do Inferno não é uma biografia sobre um homem com desejo de viver ou um homem que supere as condições em que se encontra, muito pelo contrário, todas as cartas presentes no livro são na verdade o pedido suplicante de um homem que não aceita a sua própria condição de vida e pede a morte. Rámon se considera nas primeiras linhas do livro como “uma cabeça viva em um corpo morto”. Só essa frase já nos faz pensar em uma série de coisas.

Ramón, quando vivo, pediu ao estado espanhol que lhe deferisse um pedido: a sua própria morte, que alguém lhe desse veneno ou algo parecido, uma vez que ele próprio não tinha condições físicas para isso. O pedido foi negado e Ramón lutou contra a justiça, a igreja e o estado espanhol durante toda a sua vida. Abertamente ateu, o que fica claro por várias das cartas presentes no livro, Ramón defendia o direito de poder cessar com a vida, sua vida, a vida que ele não considerava digna.

Ao longo do livro, várias cartas que Ramón dirigia a opositores, amigos, jornalistas, nos são mostradas. O autor tem grande habilidade no uso das palavras, convencendo-nos sempre de que só quer que o seu pedido seja reconhecido, só quer que a sua vontade seja feita. Ele fala da morte e da vida com naturalidade, da vida como o fim de um ciclo, como não tem medo nenhum de morrer, como já se considera como um morto. Ramón não tem medo do que fala, não tem papas na língua, quer defender suas opiniões a todo custo e de qualquer forma. É um testemunho que por vezes nos faz pensar, por vezes nos faz discordar dos pontos de vista dele ou então nos faz concordar, em suma, atira-nos em situações ambíguas nas quais nunca nos preocupamos.

O ponto de vista às vezes autoritário ou mesmo exagerado, não muda a personalidade de Ramón, que no livro passa a sensação de que era um homem doce, divertido, terno, que teve a infelicidade de que algo tão ruim acontecesse com ele. Além das cartas, o livro também as intercala com alguns poemas e alguns contos, de novo sobre o mesmo tema, a oposição sobre vida e morte, falam sobre o amor, sobre o outro, sobre a busca de si mesmo.

O diretor de cinema Alejandro Amenábar, tocado pelo livro, decidiu fazer um filme sobre Ramón Sampedro, que se intitula Mar Adentro; nome que leva uma das poesias mais célebres de Sampedro. Ramón ganhou vida na tela magistralmente interpretado pelo ator Javier Bardem. O filme foca em uma biografia de Ramón, coisa que não acontece no livro, o livro funciona mais como uma forma que Ramón encontrara para dizer ao mundo suas opiniões e justificar ao estado que o que ele estava pedindo era de fato digno de atenção.

Ramón morreu em 13 de Janeiro de 1998, depois de trinta anos vivendo num inferno, do qual ele queria tanto se libertar. As Cartas que ele enviou daquele inferno são um testemunho, por vezes difícil de ler, mas sempre necessário, para se refletir sobre o que de fato fazemos aos seres humanos e até que ponto a religião consegue interferir num governo, e na vida de um homem.

Segue o trecho de um dos poemas do livro:

“A renúncia.sempre presente como um tormento,como um feitiço, pela palavra que pronunciou como o inseto que voa enlouquecido com uma idéia pelo infinito de uma obsessão.
Uma palavra, talvez perdida, sem importância,uma comparação inexata talvez,não quero saber se é premeditada, com perfídia,seja falsa ou verdadeira, me faz estremecer.
Um sensível lamento do lugar profanado onde esteve minha chama a ponto de se acender de novo com a magia de uma palavra afetuosa, de um nome saudoso,porém há chamas que mais vale não deixar renascer.
Viver é somente uma eterna renúncia e há renúncias que são impossíveis de poder explicar por exemplo, mãos amigas que doam ternura;como lhes dizer: “não quero a ternura, porque me faz sangrar”.

Indicação do Aion

[nos perderemos entre monstros, da nossa própria criação]

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