segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Não Verás País Nenhum - Ignácio de Loyola Brandão

Mimimi só lê Loyola Brandão, mimimi só Loyola Brandão não aguento mais.
Calma, pequeno forasteiro. Estou aproveitando as férias pra reler (ou ler) a obra de Ignácio de Loyola Brandão – o meu escritor favorito. Por essa razão, as minhas últimas indicações de livros tem sido sobre ele, e como o glorioso Não Verás País Nenhum foi o último que reli, será ele o bola da vez.
E o pior de tudo é que o livro encaixa com o momento. Não porque se passa numa São Paulo fictícia e distópica, em que um regime autoritário tomou conta do país após uma situação de colapso (parece familiar?) – mas sim, porque o livro tem uma atmosfera sufocante, densa E AQUI TÁ FAZENDO UM CALOR DO CARALHO.
Sério. Diferentemente do contexto geral dos demais livros de Loyola, Não Verás é um livro denso, de capítulos um pouco mais compridos e com um único fio narrativo, que é a história de Souza, um paulistano na casa de seus cinquenta anos que vive num Brasil dos anos 90 ou 2000 (difícil precisar). Um dia, Souza repete toda a sua meticulosa rotina elaborada através dos anos quando, no ônibus a caminho do trabalho, um furo se abre em sua mão. Um furo redondo, sem cicatrizes, um furo através do qual passa a luz do sol e através do qual Souza pode enxergar o chão.
O furo na mão de Souza precipita a ruína de sua vida cuidadosamente construída. Ele passa a questionar os costumes que tinha, a vida que levava, é demitido do trabalho, acaba fazendo com que a mulher saia de casa. Em suma – e aqui tal qual em outras obras de Loyola – um aspecto insignificante da vida de um personagem precipita uma mudança abrupta no fio da história. Mas não é Souza que eu quero seguir nessa indicação.
Eu quero discutir os demais méritos da obra, que vão muito além do puro roteiro. O primeiro grande mérito é um que eu já mencionei no começo: sua atmosfera sufocante e densa. Ignácio discute na literatura em 1981 (lembre-se: últimos anos do regime militar) algo que só viria a ser discutido pelos fóruns mundiais de sustentabilidade nos anos 90 e 2000: as mudanças climáticas. Em Não Verás País Nenhum, o Brasil sofre um racionamento severo de água, a Floresta Amazônica se transformou num imenso deserto e o calor domina o dia e a noite paulistanas.
O calor no qual vive Souza é não só um dos principais tópicos daquela realidade como também é o elemento que torna o texto angustiante, denso, desesperador. Loyola utiliza o elemento climático como um recurso literário, que equipara o que acontece na história ao que o leitor tem acesso. Simplesmente, uma tacada genial. O texto é quente. Sufocante. As pás de um ventilador giram na história, mas tudo o que elas movimentam é mais ar quente.
Outro mérito da obra é a atemporalidade de seu discurso. Muito embora Ignácio escreva seu livro com elementos que datem a obra, como por exemplo, o uso do rádio, da televisão ou do telefone fixo e a proliferação de nomes pomposos que designam períodos daquela história brasileira ou características de pessoas, lugares e governos, a obra é absolutamente atemporal.
Primeiro porque ao invés de ser um futuro distópico, ela é um passado distópico. Em que sentido, Amanda? No sentido de que Loyola situa sua história ali na meiuca entre o fim da Ditadura e a uma abertura democrática, que logo foi encerrada pela chegada do chamado “Esquema” (soa TÃO familiar) ao poder. Essa liberdade que Loyola tomou em datar o seu livro foi o que acabou conferindo sua atemporalidade – a história é uma suposição de passado, mas seus elementos são perfeitamente adaptáveis a todos os nossos medos.
Por fim, o grande outro mérito da obra é a própria constituição do sistema de governo daquela sociedade: o Esquema. O Esquema é um emaranhado burocrático, militarizado, demagógico, que controla os parcos recursos naturais restantes e a população em todos os aspectos – desde a alimentação com as “comidas factícias” – isto é, todos os alimentos, que agora, são produzidos artificialmente – até o “Dia do consumo” e as zonas em que as pessoas podem andar sem sofrerem alguma restrição. Tal qual a própria ditadura militar brasileira, e porque não, nossas democracias subsequentes, o Esquema é a imagem política de um povo que nunca soube muito bem se era governado por um governo legítimo ou por um poder demagógico.
Como já disse, não quero falar da história. Até porque, pouco ou nada acontece – inclusive, se você procura um livro com ação, ESSA NÃO É a dica. Mas se você achar que o que eu disse faz o livro valer a pena, empreste Loyola da biblioteca, mas arrume um lugar confortável e se prepare pra renovar o empréstimo – porque essa é uma leitura densa, difícil de atravessar.
Por fim, quero deixar um trechinho provocante, que tem tudo a ver com esse calor dos infernos:

“E sobre tudo o sol. A impressão é que ele desce milímetro a milímetro. Não sei se é possível, não sei nada de ciência. Possível ou não, a gente olhava para cima e a cabeça estourava, os olhos lacrimejavam. Começou a ficar impossível sair de casa. As pessoas passaram a usar chapéus, e não adiantava. Veio o tempo de guarda-chuvas. Alguém descobriu que o sol não atravessava guarda-chuvas de seda preta. Só os de seda.
Outro pano não resistia. Dois, três dias de uso, o pano se esfarelava. Menos a seda preta. Ela resistia, protegia, formava uma sombra agradável. Não me pergunte por quê. Não me pergunte nada. Ninguém me respondeu, ninguém responde coisa alguma neste país. Havia outra situação estranha, curiosa. As regiões de quentura. Verdadeiros bolsões em que era impossível ficar, passar, atravessar.
Você ia andando, mergulhava naquele calor insuportável. Corria, tentando escapar, porque às vezes o bolsão era pequeno, a gente se livrava logo. No fundo, era um divertimento. Dramático, mas engraçado, porque subitamente alguém a sua frente punha-se a pererecar, gritar, voltava correndo. Voltavam todos, sabia-se que era um bolsão. Mais tarde, quando fizemos a grande travessia, vimos que os bolsões existiam por toda a parte. Eram imensos em certas regiões, estendiam-se por quilômetros. Até que chegou o Tempo Intolerável. Não dava mais para se expor ao sol. Você saía à rua, em alguns segundos tinha o rosto depilado, a pele descascava, a queimadura retorcia.”

Indicação da Amanda Barros
[look at them. they all care so much]


Ignácio de Loyola Brandão nasceu em 1936 na cidade de Araraquara, em São Paulo - ambos, a cidade e o estado, muito recorrentes em sua prosa. Hoje tem 77 anos, e continua a produzir.
Entre seus principais romances estão Não Verás País Nenhum e Zero, premiados e traduzidos para diversas línguas. Uma característica essencial da obra de Loyola são os capítulos curtos, non-sense, que lidam com o surreal na perspectiva de fatos corriqueiros. É importante notar a verve política sempre presente em sua obra, visto que a maioria de seus livros foram escritos durante o período da ditadura militar no Brasil.

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