quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Estorvo - Chico Buarque


estorvo, estorvar, exturbare, distúrbio, perturbação, torvação, turva, torvelinho, turbulência, turbilhão, trovão, trouble, trápola, atropelo, tropel, torpor, estupor, estropiar, estrupício, estrovenga, estorvo.

Volta e meia, falamos de Chico Buarque (confira as outras resenhas aqui e aqui). O Brasil e o mundo o conhecem como “aquele compositor”, “aquele cara que fala dos olhos nos olhos”, que cria cenários e personagens apaixonados em suas músicas. O que muita gente não conhece é a igual qualidade de sua prosa. No DVD “As cidades”, Chico discorre sobre a necessidade de expressar-se além da música, afirmando que é impossível captar determinadas idéias apenas com letra e melodia. E, contudo, o sentimento ao ler seus livros é o de penetrar uma de suas belas canções.

Chico não é um escritor erudito e evita ser prolixo. Possui narrativas claras e concisas que, volta e meia, refletem um pouco daquela poesia de suas letras. Apesar da simplicidade de suas palavras, a complexidade do sentido do texto exige um bom repertório cultural.

Enfim, procurando por uma luz no fim do túnel – chamada livro no fundo da prateleira -, me deparei com “Estorvo”, seu primeiro livro. Publicado em 1991, é considerado uma das obras-primas contemporâneas da Literatura Brasileira e recebeu o Prêmio Jabuti de Melhor Romance, em 1991.

Com 11 partes e cerca de 140 páginas, é narrado em primeira pessoa. Apesar do tamanho, não é um livro fácil. Se há muito mais entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia, há muito mais entre o que Chico escreve e o que Chico quer dizer. O próprio livro é um estorvo.

No início da narrativa nos deparamos com um sujeito barbudo à campainha de um apartamento, no qual o personagem principal está à espreita, tentando identificar o tal através do olho mágico. E é ali que o estilo do texto é definido: o personagem trabalha incessantemente com hipóteses e teoriza todo o futuro próximo, narrando todos os possíveis acontecimentos que sucederão ao abrir a porta ou ao ignorar o chamado.  Ao longo do livro, o personagem trata toda e qualquer situação da mesma forma, revelando um limiar entre sonho e realidade, idéia reforçada pela ausência de nomes. Todos os personagens são tratados a partir de uma característica principal: “minha ex-mulher”, “o ruivo”, “um dos gêmeos”, “meu amigo”. Não se sabe o que de fato é real. O homem à campainha é um desconhecido, assim como, em termos, toda pessoa apresentada ao leitor, como até mesmo personagem principal. Todos são estorvos.

O livro se divide entre cenários ambivalentes, hora focando a cidade, hora focando o campo. Também os personagens carregam tal característica, principalmente o interlocutor, revelando inquietude e conformidade, saudade e indiferença a todo o momento. Todo lugar é um estorvo.


Estorvo. Estorvo. Estorvo. Repeti centenas de vezes até a palavra perder todo e qualquer sentido.  Ainda não o recuperei. Talvez precise ler e reler e reler eternamente essas palavras de Chico Buarque. Eu sou um estorvo.

"Se eu soubesse que minha irmã dava uma festa, teria ao menos feito a barba. Teria escolhido uma roupa adequada, se bem que ali haja gente de tudo quanto é jeito; jeito de banqueiro, jeito de playboy, de embaixador, de cantor, de adolescente, de arquiteto, de paisagista, de psicanalista, de bailarina, de atriz, de militar, de estrangeiro, de colunista, de juiz, de filantropa, de ministro, de jogador, de construtor, de economista, de figurinista, de contrabandista, de publicitário, de viciado, de fazendeiro, de literato, de astróloga, de fotógrafo, de cineasta, de político, e meu nome não constava na lista."

Um comentário:

Diogo Branco disse...

Deve ser tão bom quanto escutar uma de suas canções. E olhe que é páreo-duro. Ah, bom demais também foi ler seu texto aqui. Ou melhor, bom foi ler os seus textos, porque dei uma bela fuçada no blog e posso, a partir de agora, indicar esse blog aos meus amigos. Beijos