sábado, 6 de abril de 2013

Felicidade Clandestina - Clarice Lispector


“A Felicidade ia ser sempre clandestina para mim...”
Brainstorm, é um termo em inglês, que em tradução literal poderia significar: Tempestade Mental ou Tempestade de Ideias, o que consiste basicamente em colocar no papel exatamente aquilo, a ideia, que você está pensando, da maneira como apareceu pela primeira vez no seu pensamento. Diria eu que trata-se de escrever em fluxo de consciência. Algo que a autora, cujo livro vos resenho agora, fazia. E fazia muito bem.

Abro um parênteses para alerta-los de uma coisa: Estou falando, aqui, DA Clarice Lispector, e não daquelas frases bregas que ATRIBUEM a ela, e que infelizmente lotam a internet de maneira assustadoramente absurda.
Clarice Lispector, nasceu na Ucrânia, mas viveu durante a maior parte da sua vida no Brasil, e sua infância no estado de Pernambuco no nordeste brasileiro – algo muito presente em sua literatura e no livro que estou resenhando – Clarice, é uma dessas escritoras que estavam a frente do seu tempo, uma dessas escritoras, desses fantásticos seres que mexem com literatura que realmente amava o que estava fazendo, que gostava do que escrevia, amava a profissão, Sentia-se morta se não estivesse escrevendo, como ela mesmo admitiu em uma entrevista muito famosa diga-se de passagem para a TV Cultura nos anos 70.

Ela, que escrevia em fluxos de consciência, colocava todas as suas epifanias no papel, era muito versátil e sabia criar e cuidar do universo de seus personagens. Mas, Clarice, era mais do que isso, ela era muitas escritoras em uma só e dotada de um estilo único e isso fica muito claro no livro dela, escolhido por esse humilde senhor que vos fala para ganhar resenha, Felicidade Clandestina, uma seleção de contos, em sua grande maioria que trabalham justamente o tema sugerido pelo titulo: A Felicidade, conseguida através da clandestinidade, compartilhada por outros, e pela autora, que rememora em alguns contos sua infância em Recife, como o belíssimo Restos do Carnaval, autobiográfico, sobre um episódio passado com uma menina que queria uma fantasia de carnaval, mas não tinha condições de tê-la, mesmo assim era bondosa e ajudara uma colega na confecção de uma outra fantasia, o que lhe renderia um prêmio: Uma fantasia – agora de verdade, para que ela pudesse aproveitar o carnaval – adquirida com os restos da fantasia que a menina havia ajudado a confeccionar, é claro que peças pregadas pelo destino dão ao conto um ar doce, tenro, e de um sensibilidade fantástica, e sobre os motivos que eu não vou falar aqui, esperando que o leitor se interesse pela leitura...

Alguns contos são escritos em fluxo de consciência, sim, puro brainstorm no papel, e não precisam ser desmerecidos por isso, outros são bem elaborados, e chegam até a arrancar algumas lágrimas dos mais sensíveis, é um livro sobre felicidade, sobre clandestinidade, sobre infância.
Outro conto que merece menção é aquele que titula a coletânea: Felicidade Clandestina, que se refere a uma menina que apaixonada por Monteiro Lobato, sofre nas mãos de uma amiguinha – filha de dono de livraria – que lhe promete o maravilhoso volume As Reinações de Narizinho emprestado, mas nunca se dispõe a completar a promessa. A menina apaixonada por livros, sofre com aquela situação, o amor a leitura é algo muito tocante nesse primeiro conto. Lá pelas tantas, a menina consegue o livro “e já não era mais uma menina com seu livro, era uma mulher com seu amante”[...]
Mais um conto que merece ser falado, é o bonitinho e tocante: O Grande Passeio, que narra a história de uma senhora idosa, que vai a um grande passeio, sem imaginar que seus parentes estão a enviando a um asilo... Tocante perceber como a autora trabalha a narrativa, ponto a ponto, falando sobre todas as expectativas da senhora, que nunca saía de casa.

O livro tem tudo, absolutamente tudo que era tão fantástico em toda a literatura de Clarice Lispector, literatura essa, até complicada de se classificar. Todos os vinte e cinco contos, são ótimos, dignos de releituras e mais releituras. Destaco aqui como os meus favoritos: Uma amizade sincera, Os desastres de Sofia, O primeiro beijo, enfim, a grande maioria.
Evidentemente, que não posso deixar de comentar sobre O Ovo e a galinha, conto de total fluxo de consciência da autora. O ovo e a galinha, é um desses mistérios na literatura, ninguém consegue entender ele muito bem, ninguém consegue explicar ele muito bem. Nem a própria Clarice conseguia, indagada sobre o conto, em uma entrevista ao jornalista Julio Verner, da TV Cultura, Clarice afirmava que o conto era um grande mistério para ela...
O Ovo e a galinha, é filosofia, é duvida existencial, é loucura, é fluxo de consciência, é conversa, é intimismo, é muita coisa em uma coisa só.

Deixando isso de lado, o livro ainda reserva surpresas, escondidinhas aqui e ali, coisas deliciosas, histórias bem amarradas, olhares de criança sobre a realidade, olhares adultos sobre as crianças, infância e tudo que ela pode suscitar, contos que prendem a atenção do leitor. É uma reunião de versatilidade, assim como toda a obra e a própria Clarice Lispector. Simplesmente única e imperdível. Acreditem, vale a pena, cada linha, cada página virada.
Aqui deixo-vos, o link da entrevista que a autora deu em 1977, e a qual eu me referi duas vezes nesta resenha: http://migre.me/e08lW, ao terminar de ver o vídeo, acredite, dá para entender um pouco (e bem pouco), de como Clarice era uma escritora grandiosa.

Trecho do conto Restos do Carnaval, um dos mais fantásticos do livro:
“No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com os quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito.”
Indicação do Aion
[chega de chegar, depressa é muito devagar]

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