“Na tarde em que esqueci meu nome, mastiguei um amendoim.”
Três crianças estavam a passear na velha pedreira de Baixo do Ribas quando encontram um dedo negro com unha. De onde ele veio e por que ele estava ali, só Pellizzari pra nos contar.
O interesse do autor pelo absurdo já era notado nos seus dois livros anteriores, só que na forma de contos. Aliás, apesar de não ser indispensável, recomendo a procura dos outros dois, ou então da nova coletânea que ele publicou há não muito tempo em seu site oficial (www.cabrapreta.org) com download gratuito, fazendo uma espécie de junção dos contos dos dois livros, mas abstraindo alguns, remanejando vários etc. – o cara tá sempre se mexendo quanto à própria obra –, porque acho que há umas sacadas que ele utiliza nas três obras que são bem legais.
O livro é dividido em três arcos, aparentemente díspares, porém todos com função precisa. O primeiro conta como as crianças Adinho, Evita e Lili acham o tal dedo e as consequências da descoberta. O segundo apresenta a personagem Fedora Danilovna Pózdnicheva, numa paródia que Pellizzari faz da maneira como eram traduzidos os livros russos clássicos, na época em que eram, na verdade, retraduzidos do francês. O terceiro…se pá que é melhor nem contar porque é muita piração e pode ser meio que spoiler. Mas sigamos.
O cara experimenta de um jeito alucinante as maneiras de nos apresentar a narrativa ao mesmo tempo em que conta uma história incrível. Pra dar uma ideia, no Arco Segundo tudo parece bem clássico, na maneira de descrever o cenário, as personagens, a ação e tudo mais. Entretanto, ele dá um jeito de quebrar com esse padrão inserindo notas de rodapé toda vez que é usada a palavra eu. Assim se sai um pouco da terceira pessoa e se escuta mais intimamente a personagem em questão. Ou então ele para de contar da vida da Fedora e nos dá uma aula de História e mitologia para nos explicar como é que viemos a chegar aos tais tempos pentadiluvianos.
Mesmo que a linguagem seja verbal, a maneira como ficam dispostas as notas ou quando aparecem algumas imagens, como a placa de Baixo do Ribas, nos dão uma ideia que ele está tentando fazer algo diferente. No Arco Terceiro, chega uma hora que uma personagem precisa sussurrar. E o que acontece? As letras utilizadas para as falas ficam menores, enquanto o narrador continua com aquele mesmo tamanho do resto do livro. Ele realmente tenta explorar as maneiras de que um livro dispõe para expressar o que ele deseja.
O livro brinca muito com linguagem, com o objeto livro, com narrativa, com mitologia...além de o cara tem umas ideias tão loucas que é quase como ler um filme do Jodorowsky. Ele mesmo dá um subtítulo para o livro: “Uma farsa épica contendo as mais abstrusas, discutíveis, taumatúrgicas e desopilantes desventuras ocorridas desde o início dos tempos até os atribulados dias pentadiluvianos.”
Quem quiser definir como surrealismo, que seja. Se preferir realismo fantástico, também cabe. Absurdismo funciona tão bem quanto. Mas a cima de tudo é um livro em que ele se dedicou muito. O número de referências é tremendo, mas não conhecer todas não torna a obra incompleta pra quem lê, e isso é o mais importante. Aí fica até engraçado quando a gente lê algo mais antigo, depois de ler Dedo Negro, e vê que o Pellizzari fez uma brincadeira com aquilo. Da mesma maneira que é divertido sacar a jogada dele na hora em que se lê, porque está familiarizado. Um livro foda de um autor muito foda e ambos pouco conhecidos. Como bem definiu Joca Reiners Terron sobre Pellizzari: um poliglota em terra de surdos.
Eis um trecho:
"A natureza, borbulhante e fedegosa, não passa de uma destruidora contumaz, resmunga Fedora em silêncio. Quando não está entretida em demolir cidades com um estremecer aleatório, ocupa-se de transformar qualquer cousa em um acontecimento prosaico. Mesmo a putrefação que o corpo de sua vizinha defunta sofreria após o funeral, não fosse o embalsamento, teria um quê de sublime ao ser contemplada por alguém com uma percepção capaz de, por treino e inclinação, reconhecer todas as nuances de sua beleza. Sem este observador imaginário, a podridão tornar-se-ia vulgar, perdendo toda sua poesia. Seria apenas natural, simples matéria orgânica se decompondo, como chuva evaporando nas pedras ou neve derretendo sobre o mar.
Tão ou ainda mais bela que a estrela do funeral, Fedora levanta-se da penteadeira, apanha a sombrinha e resolve abortar qualquer raciocínio por algumas horas. Nada mais adequado do que um funeral para ajudar alguém a espairecer as ideias, reflete. Assobiando uma canção de infância, bate a porta ao sair de casa. Na cama, ainda quieto, Ievguêni sorri de olhos fechados. É um verme e sabe disso, mas, idealista, decidiu que não, não sabe."
Indicação do Guilherme
[parangaricutirimírruaro]
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