quinta-feira, 11 de abril de 2013

Cartas de um sedutor, de Hilda Hilst -- Paulicéia, 1991; Globo, 2002



“Com pouquíssimas exceções, os escritores em geral são nojentos! Gosto é dos livros(...)”
Em teoria, quem narra o livro é Stamatius, um catador de lixo que mora com uma mulher chamada Eulália. Por causa do ofício, deparou-se aos montes com os livros que as pessoas jogam fora. E os leu. Provavelmente por isso agora gosta tanto de escrever. A ação se dá entre Tiu e Eulália no tempo presente, com ele escrevendo e ela assistindo. Por isso os escritos do livro não são apenas de Hilda, mas de Stamatius.

O segmento maior são os vinte capítulos das cartas de Karl para sua irmã Cordélia. Numa espécie de homenagem de Hilda à Goethe. Extremamente letrado e erudito, Karl conversa com sua irmã sobre a infância de ambos e as inúmeras relações incestuosas que fizeram parte de suas vidas. Conta-lhe também sobre os amores novos, como o jovem Albert. Utilizando uma prosa extremamente poética, Hilst discorre sobre sexo e escatologia da maneira mais bela possível. Em nenhum momento, porém, vemos as respostas de Cordélia. Podemos apenas imaginar o que ela disse através das cartas de Karl. E aí entender o que aconteceu com ela.

O livro faz parte da fase tida como erótica da autora. Recheadíssimo de cenas de sexo, principalmente nas lembranças, nas descrições dos corpos, dos atos, variando entre o erudito e o popular, entre o falo e o caralho, entre os lábios e a buceta, as nádegas e o cu. Se tivesse sido publicado alguns anos antes, poderia ter causado muito furor com esse caráter explícito, do mesmo jeito que os livros de Henry Miller ficaram banidos por anos. Aliás, as influências não ficam nem um pouco implícitas. Ela usa o conhecimento de Karl para poder falar dos autores que gosta, como se fossem mesmo parte dos assuntos das correspondências, passando por Camus, Foucault, Nietzsche, Wittgestein e mais uns tantos.

O romance estruturado em cartas pessoais permite que todos os assuntos sejam tratados com a intimidade que remetente e destinatário desfrutam. Além de o conhecimento e inteligência da personagem fazerem a linguagem utilizada soar extremamente natural. Mas ao final do segmento, Tiu e Eulália reaparecem: um concentrado na sua escrita outro querendo atenção. E dessa relação dos dois surgem outros contos, com temas sugeridos por Eulália. Por exemplo, se ela diz “escreve uma coisa horrível”, o nome do conto fica Horrível. A mesma coisa com Bestera e por aí vai.

Hilda brinca bastante com sua própria escrita porque a domina muito bem. Constrói personagens e lhes dá vozes com facilidade, por isso o livro tem tantos narradores. Ou talvez tenha apenas um que cria outros tantos. Sempre rola uma metalinguagem nessas horas... mas ela também fica livre na hora de escrever com os sotaques que as personagens usam, e carregá-los ainda mais de personalidade. Assim como utiliza da pontuação com aquelas características bem modernistas, de vírgulas excluídas e preocupação com o fluxo da leitura, da proximidade com a língua falada. Às vezes expões as falas como nas peças de teatro, noutras ignora travessão ou aspas. Coisa fina.

Pode ser que ela tivesse muitas histórias na cabeça e esse foi um meio de por todas pra fora num único livro sem declará-lo como de contos. Vai ver ela queria mesmo mostrar um personagem escritor marginal e um pouco de sua vida e seu processo de criação. Contos disfarçados de romance ou não, Hilda Hilst é quem nos seduz com esse livro.

Um trecho, agora:

“Continuando. Foi-se. Às vezes é insuportável. Diz que me ama mas não suporta quando nos meus ‘arroubos’ digo a palavra boceta. Pergunto-lhe se é um problema de ordem moral ou de semântica. Arregala os olhos, e fica claro que não tem a menor idéia do que seja semântica, e responde: é apenas disgusting, meu bem, nada a ver com a moral, há outras palavras que me soam também desagradáveis.
quais?
ah, você vai rir de mim... mas não suporto a palavra efusão nem a palavra fartura... fico até fria... veja, será que são os us?
mas o que acontece se alguém ficar repetindo boceta fartura efusão?
ah, benzinho, por favor, posso até desmaiar, já não estou bem... não repita...(...)Enfiou-se embaixo da cama, aos prantos, fui atrás, nu, cravei-lhe as unhas na bundinha e fui repetindo fartura efusão boceta, dei-lhe uns sopapos, até que desmaiou. Quando acordou, falei: tô repetindo: fartura efusão boceta. Sorriu. Sarou. (...) Talvez Marcius (!) deseje isso mesmo, ficar surdo enfim, porque Petite é um rádio na cama. Abrindo as pernas já começa uma arenga doentia. Tento contê-la tapando-lhe a boca, mas ela não entende, pensa que é um vício meu, que gosto de tapar sua boca como se eu gostasse de me sentir um estuprador, é burrinha, coitada, mas me diverte. Ah! se fosses tu, Cordélia! Poríamos a fotografia de papai na nossa frente (tenho algumas lindas! posso mandar ampliá-las...), e nos chuparíamos, de cada lado uma fotografia de papai. Depois eu derramaria champanha na tua cona, que deve estar tão sequinha, coitada... ou não? Ou o tal de Iohanis... não, não quero nem pensar... e chuparia teus dedinhos do pé, um por um, os buraquinhos das tuas orelhas (ainda usas Calèche?) e o buraquinho da frente e o buracão de trás... vem, irmã, penso que te negas ilusões e as ilusões são os sustentáculos da vida.”

Indicação do Guilherme
[parangaricutirimírruaro]

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