por Guilherme Bernardes
Vou tentar de uma forma meio rápida e simples quebrar alguns mitos sobre tradução. A intenção é que essa coluna continue, pra tocar em pontos específicos. Mas, pra começar, bora dar um geralzão. Ok? Ok.
Quando a maioria das pessoas lê uma tradução, não para muito pra pensar no que realmente é esse trabalho. Aqueles que tem conhecimento de como era "no original", aqui ou ali, até mandam uma crítica. Principalmente se o livro é uma edição bilíngue.
Mas dentre as várias coisas que se ouve falar, a mais comum é "mas não foi essa a palavra que o autor usou!"
Isso não quer dizer nada.
Esse senso comum de que deve haver uma fidelidade ao texto original, praticamente ipis literis, é uma ideia pra lá de equivocada. Sabe aquela parada de que uma tradução vai ser sempre uma fotografia em preto de branco de uma pintura colorida? Esquece. Principalmente se for um texto literário. Se for de poesia, então...
A Língua Fonte e a Língua Alvo sempre vão possuir duas estruturas diferentes. Pensa comigo: se até o português que é falado em Portugal é bem diferente do falado por aqui, como não devem ser as diferenças de dois idiomas distintos?
As palavras possuem carga semântica, isso é, nós atribuímos certos valores pra elas. Só que cada idioma, ou melhor, cada dialeto atribui um valor que não vai ser necessariamente o mesmo que um outro lugar, uma outra língua. Então quando um tradutor escolhe uma palavra que "não foi a que o autor usou", isso costuma ter um por que.
Um tradutor vai se preocupar com bastante coisa na hora de ler um texto. Não é a toa que dizem que uma tradução é a última revisão que o livro vai passar. O tradutor precisa ficar muito atento nas coisas mais delicadas do texto. Nos mínimos detalhes.
O que isso quer dizer? Que um tradutor é, além de tudo, um escritor. Sim. Se não fosse, ele não ia escrever um livro. Porque é isso que ele faz. O cara pega um livro na L.F. e meio que troca todas as palavras e expressões pra tal L.A. que ele quer. Depois, como se espera de todo bom texto, ele vai revisar, mudar umas palavras, tentar, sobretudo, manter a fluência narrativa que o texto na L.F. tinha.
E isso é só o começo.
Quando a parada é em poesia, aí o bicho pega ainda mais.
Não que a prosa seja mais fácil de traduzir, mas ela te mais liberdade de aumentar sentenças para que elas consigam abranger mais facilmente o sentido que a L.F. precisa que seja transferido para a L.A.
Na poesia, tem que tomar ainda mais cuidado.
Primeiro que o cara tem que ter dissecado o poema: praticamente ter decorado de cabo à rabo tudo que diz nele, a pontuação, as palavras, o sentido. Aí o cara manjou tudo. Beleza. Mas e a rima? E a métrica? Não dá pra tratar um poema como prosa, nesse sentido. O tradutor, quase sempre, vai ter que mudar as palavras. Ele vai ter que quebrar a cabeça dele procurando uma palavra que possa minimamente "substituir" aquela outra. Ou ele vai trocar a ordem delas. O que não dá pra fazer é, de certa forma, trair o poema e fingir que isso não é importante.
Ele vai escrever um poema novo.
Mas que no fundo ainda é o mesmo.
É só pensar: quem leu um soneto de Shakespeare não vai dizer não leu, que o que leu foi a tradução de Shakespeare. Mesmo que aquelas palavras sejam totalmente outras e que a ordem que elas aparecem não seja mais a mesma (e isso dá pé pra outra conversa: sobre como foi mudado o conceito de autoria dentro de uma tradução ao longo do tempo -- mas isso é papo pra mais tarde).
Só pra encerrar, vou pôr o original de um poema da Elizabeth Bishop e sua tradução feita por Paulo Henriques Britto (um cara que é foda demais nessa área). Comparem: vejam se ele foi "infiel" por trocar as palavras.
One Art
The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster,
Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.
Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.
I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.
I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.
- Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.
Uma Arte
A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.
Pra início de discussão, acho que a gente lançou uma fagulha. Também não vale a pena ficar sendo maçante por aqui. Mas esse é um assunto meio polêmico, tem gente que defende muito uma neutralidade do tradutor. Que cocês acha? Pra mim, é um assunto que vai longe...