sábado, 22 de fevereiro de 2014

Vira a página

Vira-página deste sábado no aaar! Hoje o tema é "Literatura contemporânea. Qual o escritor favorito de vocês e qual o motivo? Qual o estilo da escrita dele? " sugerido pela querida Loriaga. Se você tem algo a comentar sobre esse tema, poste, discute, join us!



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Luiz
: Conheço pouquíssimo, mesmo, de literatura contemporânea. Muito por falta de tempo e por não ter conhecido boa parte das coisas mais a
ntigas que quero conhecer, mas do que já li, penso que meu escritor
favorito atual dessa geração seja Reinaldo Moraes, que por sinal conheci há pouco tempo. Escritor paulistano (também tradutor), tem uma escrita assim, meio talking blues, abusando do livre arbítrio literário. Sua linguagem corre rápida e é desencanada, espontânea. Dá pra sentir o cheiro da vadiagem. Seus personagens são quase como nós e ele utiliza enormes vocabulários em sua escrita. Pra quem quiser conhecer, recomendo Tanto Faz.







Guilherme: Amo e acompanho o quanto posso de literatura contemporânea, principalmente a brasileira, o que me faz ficar em dúvida na hora de escolher um só. Mas vamo lá. A escrita desse cara, pelo que reparo com seus livros, tem muita ligação com o corpo. Sempre rola uma temática com um protagonista num tipo de conflito com
ele. Seja pra mostrar que ele tem uma habilidade ou pra enfrentar alguma coisa ou até levar isso como profissão. Só que isso acaba sempre rolando no contexto da narrativa e firma muito bem a história e a interpretação que podemos fazer do livro e das personagens. Acho que por isso, assim por cima, dá pra dizer que o cara tem um jeito direito de escrever, mas muito calculado, como se fosse um exercício físico. O cara é Daniel Galera. E claro que tem mais coisas além disso, mas é uma parada nos livros dele que sempre me chamou a atenção. Meu favorito: Mãos de Cavalo.



Amanda: Não sei dizer se curto exatamente literatura contemporânea: vou lendo o que tou na vibe de ler. E geralmente, o que tou na vibe é literatura um pouco mais antiga. Mas, o chinês Yu Hua entrou há uns dois anos na minha vida socando os dois pés na porta. Ele tem três livros publicados no Brasil pela Companhia das Letras (e um deles já indicado por mim aqui: http://goo.gl/KTsBp3). Yu Hua é dono de um estilo rápido e agressivo, de frases curtas e de capítulos curtos - o que geram uma literatura com pouca fluidez e constantemente impactante. O tema das obras do autor é a China contemporânea de a partir dos anos 50, a do governo de Mao Tsé-Tung - e é, consequentemente, uma literatura TOTALMENTE quebra-esteriótipos.


Bharbara: Meu escritor favorito contemporâneo é de Itaparica e ganhou o Prêmio Camões em 2008, seu nome é João Ubaldo Ribeiro. Eu já fiz uma resenha do Ubaldo, que foi sobre o livro 'A casa dos budas ditosos', livro super polêmico de sua carreira e que chegou a ser proibido em alguns lugares. Acredito que a escrita dele seja ácida e cheia de luxúria.







Heloísa: Olha, eu não leio muita coisa contemporânea principalmente pela falta de tempo de ficar de olho na cena atual da literatura. Por enquanto tô numa zona de conforto, lendo clássicos. Porém, meu favorito é o Haruki
Murakami, escritor de livros como 1Q84 (esperando ansiosamente pra emprestar o volume três!) e Norwegian Wood. A escrita dele é caleidoscópica, cheia de referências culturas, e tem uma narrativa super rápida, coisa de best seller mesmo, vira página - mas no caso DELE isso é super positivo, porque é algo ágil mas bem construído. Há um toque surrealista em muito do que ele escreve (como um universo com duas luas) e uma reflexão oculta sobre o estado das coisas na sociedade japonesa. É, no mínimo, uma leitura que prima pela originalidade.






quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Vamos falar de tradução?


por Guilherme Bernardes

Vou tentar de uma forma meio rápida e simples quebrar alguns mitos sobre tradução. A intenção é que essa coluna continue, pra tocar em pontos específicos. Mas, pra começar, bora dar um geralzão. Ok? Ok.

Quando a maioria das pessoas lê uma tradução, não para muito pra pensar no que realmente é esse trabalho. Aqueles que tem conhecimento de como era "no original", aqui ou ali, até mandam uma crítica. Principalmente se o livro é uma edição bilíngue.

Mas dentre as várias coisas que se ouve falar, a mais comum é "mas não foi essa a palavra que o autor usou!"

Isso não quer dizer nada.

Esse senso comum de que deve haver uma fidelidade ao texto original, praticamente ipis literis, é uma ideia pra lá de equivocada. Sabe aquela parada de que uma tradução vai ser sempre uma fotografia em preto de branco de uma pintura colorida? Esquece. Principalmente se for um texto literário. Se for de poesia, então...

A Língua Fonte e a Língua Alvo sempre vão possuir duas estruturas diferentes. Pensa comigo: se até o português que é falado em Portugal é bem diferente do falado por aqui, como não devem ser as diferenças de dois idiomas distintos?

As palavras possuem carga semântica, isso é, nós atribuímos certos valores pra elas. Só que cada idioma, ou melhor, cada dialeto atribui um valor que não vai ser necessariamente o mesmo que um outro lugar, uma outra língua. Então quando um tradutor escolhe uma palavra que "não foi a que o autor usou", isso costuma ter um por que.

Um tradutor vai se preocupar com bastante coisa na hora de ler um texto. Não é a toa que dizem que uma tradução é a última revisão que o livro vai passar. O tradutor precisa ficar muito atento nas coisas mais delicadas do texto. Nos mínimos detalhes.

O que isso quer dizer? Que um tradutor é, além de tudo, um escritor. Sim. Se não fosse, ele não ia escrever um livro. Porque é isso que ele faz. O cara pega um livro na L.F. e meio que troca todas as palavras e expressões pra tal L.A. que ele quer. Depois, como se espera de todo bom texto, ele vai revisar, mudar umas palavras, tentar, sobretudo, manter a fluência narrativa que o texto na L.F. tinha.

E isso é só o começo.

Quando a parada é em poesia, aí o bicho pega ainda mais.

Não que a prosa seja mais fácil de traduzir, mas ela te mais liberdade de aumentar sentenças para que elas consigam abranger mais facilmente o sentido que a L.F. precisa que seja transferido para a L.A.

Na poesia, tem que tomar ainda mais cuidado.

Primeiro que o cara tem que ter dissecado o poema: praticamente ter decorado de cabo à rabo tudo que diz nele, a pontuação, as palavras, o sentido. Aí o cara manjou tudo. Beleza. Mas e a rima? E a métrica? Não dá pra tratar um poema como prosa, nesse sentido. O tradutor, quase sempre, vai ter que mudar as palavras. Ele vai ter que quebrar a cabeça dele procurando uma palavra que possa minimamente "substituir" aquela outra. Ou ele vai trocar a ordem delas. O que não dá pra fazer é, de certa forma, trair o poema e fingir que isso não é importante.

Ele vai escrever um poema novo.

Mas que no fundo ainda é o mesmo.

É só pensar: quem leu um soneto de Shakespeare não vai dizer não leu, que o que leu foi a tradução de Shakespeare. Mesmo que aquelas palavras sejam totalmente outras e que a ordem que elas aparecem não seja mais a mesma (e isso dá pé pra outra conversa: sobre como foi mudado o conceito de autoria dentro de uma tradução ao longo do tempo -- mas isso é papo pra mais tarde).

Só pra encerrar, vou pôr o original de um poema da Elizabeth Bishop e sua tradução feita por Paulo Henriques Britto (um cara que é foda demais nessa área). Comparem: vejam se ele foi "infiel" por trocar as palavras.

One Art

The art of losing isn't hard to master; 
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster,

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

- Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster. 

Uma Arte

A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

Pra início de discussão, acho que a gente lançou uma fagulha. Também não vale a pena ficar sendo maçante por aqui. Mas esse é um assunto meio polêmico, tem gente que defende muito uma neutralidade do tradutor. Que cocês acha? Pra mim, é um assunto que vai longe...

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Estorvo - Chico Buarque


estorvo, estorvar, exturbare, distúrbio, perturbação, torvação, turva, torvelinho, turbulência, turbilhão, trovão, trouble, trápola, atropelo, tropel, torpor, estupor, estropiar, estrupício, estrovenga, estorvo.

Volta e meia, falamos de Chico Buarque (confira as outras resenhas aqui e aqui). O Brasil e o mundo o conhecem como “aquele compositor”, “aquele cara que fala dos olhos nos olhos”, que cria cenários e personagens apaixonados em suas músicas. O que muita gente não conhece é a igual qualidade de sua prosa. No DVD “As cidades”, Chico discorre sobre a necessidade de expressar-se além da música, afirmando que é impossível captar determinadas idéias apenas com letra e melodia. E, contudo, o sentimento ao ler seus livros é o de penetrar uma de suas belas canções.

Chico não é um escritor erudito e evita ser prolixo. Possui narrativas claras e concisas que, volta e meia, refletem um pouco daquela poesia de suas letras. Apesar da simplicidade de suas palavras, a complexidade do sentido do texto exige um bom repertório cultural.

Enfim, procurando por uma luz no fim do túnel – chamada livro no fundo da prateleira -, me deparei com “Estorvo”, seu primeiro livro. Publicado em 1991, é considerado uma das obras-primas contemporâneas da Literatura Brasileira e recebeu o Prêmio Jabuti de Melhor Romance, em 1991.

Com 11 partes e cerca de 140 páginas, é narrado em primeira pessoa. Apesar do tamanho, não é um livro fácil. Se há muito mais entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia, há muito mais entre o que Chico escreve e o que Chico quer dizer. O próprio livro é um estorvo.

No início da narrativa nos deparamos com um sujeito barbudo à campainha de um apartamento, no qual o personagem principal está à espreita, tentando identificar o tal através do olho mágico. E é ali que o estilo do texto é definido: o personagem trabalha incessantemente com hipóteses e teoriza todo o futuro próximo, narrando todos os possíveis acontecimentos que sucederão ao abrir a porta ou ao ignorar o chamado.  Ao longo do livro, o personagem trata toda e qualquer situação da mesma forma, revelando um limiar entre sonho e realidade, idéia reforçada pela ausência de nomes. Todos os personagens são tratados a partir de uma característica principal: “minha ex-mulher”, “o ruivo”, “um dos gêmeos”, “meu amigo”. Não se sabe o que de fato é real. O homem à campainha é um desconhecido, assim como, em termos, toda pessoa apresentada ao leitor, como até mesmo personagem principal. Todos são estorvos.

O livro se divide entre cenários ambivalentes, hora focando a cidade, hora focando o campo. Também os personagens carregam tal característica, principalmente o interlocutor, revelando inquietude e conformidade, saudade e indiferença a todo o momento. Todo lugar é um estorvo.


Estorvo. Estorvo. Estorvo. Repeti centenas de vezes até a palavra perder todo e qualquer sentido.  Ainda não o recuperei. Talvez precise ler e reler e reler eternamente essas palavras de Chico Buarque. Eu sou um estorvo.

"Se eu soubesse que minha irmã dava uma festa, teria ao menos feito a barba. Teria escolhido uma roupa adequada, se bem que ali haja gente de tudo quanto é jeito; jeito de banqueiro, jeito de playboy, de embaixador, de cantor, de adolescente, de arquiteto, de paisagista, de psicanalista, de bailarina, de atriz, de militar, de estrangeiro, de colunista, de juiz, de filantropa, de ministro, de jogador, de construtor, de economista, de figurinista, de contrabandista, de publicitário, de viciado, de fazendeiro, de literato, de astróloga, de fotógrafo, de cineasta, de político, e meu nome não constava na lista."

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

CENA LOCAL - PIAUÍ

Para Enfeitar Domingos

já era tarde demais para
acordar e fincar as unhas
na parede ou em qualquer
lugar que deixe marcas
iguais as que estão no
meu colchão e na minha
vida e mesmo que hoje as
palavras de carinho estejam
guardadas na gaveta e sequer
meus olhos você queira fitar
- eu estarei aqui
com um sorriso meio torto
e uma vontade tremenda
de falar de amor


Ícaro Uther é poeta, possui um romance premiado que será publicado em breve pela Fundação Cultural Monsenhor Chaves, além de possuir mais um título chamado 'Antes do Sol', que será uma coletânea de devaneios, sentimentos, utopias e obviamente poesias e contos, onde o autor já vem trabalhando faz certo tempo. Atualmente mora em Teresina - PI!


Confira mais sobre o autor e suas obras em:

https://aartedaprolixidade.wordpress.com/


Coluna dessa semana assinada por : Bharbara Morato

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Ligue os pontos - poemas de amor e big-bang - Gregorio Duvivier

Leia antes a minha indicação do primeiro livro de Gregorio Duvivier aqui: http://goo.gl/7YkqHN
Li o segundo livro de poesia da minha vida. E novamente, é de Gregorio Duvivier. Sua segunda obra ficou badalada nas interwebs graças ao sucesso do autor no canal Porta dos Fundos (do qual sou fã) – diferente da primeira, mais underground, introspectiva.
A diferença entre a popularidade das duas obras também expõe um novo viés igualmente distinto: o do conteúdo. Se no antigo livro, Duvivier brincava com o tragicômico com uma poesia agridoce, triste, mas de sorriso de canto de boca, no novo livro, o autor e roteirista reúne uma coletânea mais doce, amorosa, de riso um pouco menos doído.
“Ligue os pontos – poemas de amor e big-bang” tem o seu tom dado já no título e na dedicatória: “Para Clarice, é claro”. Clarice Falcão (aquela, das músicas fofinhas) é namorada do poeta e ambos são conhecidos por lidar com o amor de uma maneira cômica e doce. Em Ligue os pontos, Gregorio desenvolve sua poesia mais amadurecida – tanto no tom romântico, que procura fugir da retórica pegajosa que se usa normalmente ao falar de amor, quanto nos próprios elementos que constróem seus poemas.
Um exemplo disso é a abundante presença de clichês, objetos e situações cotidianas que dão veracidade ao impensável que está sendo dito. Como no poema a seguir (na página 61):
“se eu fosse um faraó do egito antigo
não me faria falta o carnaval do rio
o ipod o iphone o iogurte grego
o mate de galão ou o miojo
de galinha caipira eu viveria feliz
por meses entre múmias e deuses
com cara de cachorro — ou quase:
a única invenção cuja inexistência
me obrigaria a tomar o cianureto
mais em voga das maravilhas do mundo
moderno a única que me faria falta
é você (e talvez quem sabe o ar
condicionado, mas sobretudo você)”
Mas nem só de amor fala o novo livro de Duvivier. Também, como no livro anterior, existe a forte presença de uma memória afetiva – que é importante lembrar, não me diz respeito, porque sou bem mais nova que Gregorio. Mas se você é da “geração do bug do milênio”, existe uma grande possibilidade de identificação com a obra de Duvivier, pela qual eu recomendo fortemente a leitura de sua nova obra – mais madura, mas menos triste – porque afinal, não é incrível saber exatamente do que o autor está falando?
Cheers! Fique com uma música de Clarice Falcão: http://goo.gl/LKr8JE
Indicação da Amanda Barros.
[look at them. they all care so much]
Gregorio Duvivier é ator, roteirista, poeta e sócio do canal Porta dos Fundos. Carioca de 27 anos, atuou no cinema nacional, no teatro e na TV. Tem dois livros publicados: o primeiro, "A partir de amanhã eu juro que a vida vai ser agora", e o segundo, o indicado nesse post. Conheça um pouco de seu trabalho no Porta dos Fundos aqui: http://goo.gl/lHfYTn

domingo, 16 de fevereiro de 2014

O limite de empréstimos

Por Aion Roloff

Joaquim entrou no salão. Era segunda-feira (sim, amanhã). Tudo que viu foram várias estantes, muitas estantes, insanamente estantes. E o que tinham nas estantes? Sim meus caros, livros! Ah, muitos livros, insanamente livros. Joaquim – ele me contou depois – Ficou maravilhado, extasiado, para um amante de leitura, que contava moedas para comprar edições de bolso, e assim ir aumentando uma modesta coleção, era muito, era mais do que o coração dele conseguia suportar.

De literatura americana, livros de história, passando por romances do inicio do século XX, Livros de capa dura, edições desgastadas pelo uso e pelo tempo, dicionários de italiano, inglês, francês, árabe... livros de lógica formal, capitalismo, socialismo, a eterna briga, revistas dos anos 60, capas históricas, o segurança bravo porque entrou na seção sem ser anunciado...

Joaquim desbravou cada estante, cada andar, cada pedaço do céu daquele lugar. Já havia ouvido uma vez, que o paraíso era uma espécie de livraria, agora parecia que tinha certeza, era mesmo. E o melhor! Era gratuito! Tudo que ele precisava era de uma carteirinha, a taxa de inscrição, e um comprovante de endereço. Tudo isso, e tudo aquilo seria dele!
Joaquim, me telefonou extasiado – mais uma razão pela qual me arrependi de ter dado meu numero a ele – Aion! Berrava ele no telefone, você precisa vir aqui, você nem imagina o que eu encontrei! Eles deixam levar para casa! Aion! Aion! Tudo que eu consegui pensar na minha cabeça foi o seguinte, meu caro Joaquim, você nunca foi numa biblioteca antes? Nunca mesmo? Ela estão espalhadas pela cidade, abarrotadas de livros, prontos para serem lidos e admirados, basta você entrar e se maravilhar.

O rapaz – filho não lembro de quem – já havia sim frequentado uma biblioteca, a modesta biblioteca de sua escola, onde havia um dois exemplares de livros infantis, a maior parte em edições condensadas, isso não por que a escola era ruim, ou agia de má vontade, era falta de recurso mesmo. Eu, cabeça dura e com pouca sensibilidade, estava me esquecendo que ele havia finalmente conhecido uma biblioteca de verdade. Normal estar daquele jeito, eu mesmo quando entrei pela primeira vez numa biblioteca dessas, grandes, enormes, cheias de livros, também perdi o fôlego. Mentira, quando olhei da rua, um prédio, um enorme prédio, só para livros, é muito melhor que uma livraria, mas infinitamente melhor.

Tudo que irritou Joaquim naquele dia, foi apenas uma coisa, ele que passou por todas a seções e andares da biblioteca, corredores e escadarias, escolhendo livros e mais livros, e mais livros, e mais livros, de maneira insana e ávida por leitura, chegou ao balcão de empréstimos, com nada menos que vinte exemplares – que acreditem, ele iria devorar em uma semana. A bibliotecária, uma simpática mulher de uns quase 30 ou 40 anos, ainda muito bonita, de maneira muito terna e cuidadosa, alertou o jovem Joaquim que aquele número infringia o limite de empréstimos, que ele só poderia levar 3 exemplares, mas os 17 que sobrassem ele poderia buscar em outras oportunidades. É claro que Joaquim achou aquilo um absurdo, e quem não acharia, não é mesmo? Como assim, vocês estão limitando o meu poder de leitura? Estão limitando as minhas aventuras literárias?

Calmamente, a bibliotecária explicou que não poderia liberar vinte exemplares, primeiro, porque havia um limite pré estabelecido, regido por normas internas daquele local, e também de qualquer outra biblioteca, e depois porque a biblioteca – pública – era de todos, ou seja, mais pessoas apaixonadas por leitura, assim como Joaquim, também gostariam de poder ler vários livros, e que o número de livros era sugestivo, e que Joaquim poderia pegar três, lê-los, devolver, e pegar mais três...
Pouco convencido, Joaquim teve que tomar uma das piores decisões de toda a sua vida, escolher apenas, e tão somente três livros, da lista maravilhosa que estava em suas mãos. Com muita dificuldade escolheu, depositou os três que levaria em cima do balcão, e prometeu a si mesmo que voltaria tão logo quanto possível buscar os outros.


*Essa crônica é baseada em fatos reais, não que Joaquim exista – bem talvez ele exista, creio que em minha memória, uma vez quando eu tinha sua idade, eu entrei numa biblioteca e fiz exatamente todas as coisas que Joaquim fez. E hoje, toda a vez que eu entro, me lembro do jovem Joaquim e sua paixão por livros e literatura, e isso piora com o tempo. 

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Vira a Página

Hoje é dia de estréia aqui no "Posso?". A coluna Vira a Página vem no estilo bate-bola - assim definiu o Tio Aion - e vai reunir opiniões de todos os integrantes da equipe sobre determinado assunto.

Publicada aos sábados, funcionará assim: toda semana, escolheremos uma pergunta e cada um vai responder o que acha, o que acredita. Quer enviar perguntas pra gente? É só comentar aqui ou na página do Facebook!

Pra hoje, escolhemos falar um pouco sobre o cenário atual da música brasileira.  A pergunta, bolada pela querida Amanda, é: O que pensar de quem afirma que a música brasileira não presta?

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Luiz: O que acho dessa galera? Não acho nada, não. Se o sujeito conhece música brasileira, não vejo problemas em emitir tal opinião, agora se não sabe diferenciar Marcelo Camelo de Humberto Gessinger, penso que está vomitando um juízo sobrecarregado de preconceitos superficiais. No mais, gosto pra caralho de muita coisa dessas bandas.
(http://www.youtube.com/watch?v=dOvgmfz9aRA)





Aion: Olha, essa galera que diz que a música brasileira não presta, está um pouco por fora. Já ouvi gente falando de música que não presta, não é cultura e blá blá blá. E quem diz isso além de precisar rever seus conceitos sobre cultura, esquece que a música brasileira consegue agradar a todos os gostos. Basta saber escolher. De funk a MPB, acho que todo mundo consegue ser agradado. (e pare de achar que cultura é só aquilo que você gosta). Deixo-vos uma musica de um cantor “aparentemente” desconhecido para vocês (e comprovo a minha tese). (http://www.youtube.com/watch?v=3KzKxXpTWr4)


Amanda: Pra galera que diz que música brasileira não presta, eu quero apresentar o Google. Brinks. Afirmar que música brasileira não presta é sobretudo desconhecer a produção musical brasileira. Tá certo não curtir os gêneros populares, tudo ok, mas jogar no mesmo balaio toda a incrível produção brasileira de todos os gêneros não é algo de que você deveria se gabar. Fica Silva, cantor brasileiro que combina sons eletrônicos e uma voz maravilhosa.
(http://www.youtube.com/watch?v=e2cOqWsRzFE)


Loriaga: O Brasil é aquele país que reúne todo tipo de gosto, todo tipo de som, todo tipo de tudo pra todo mundo. No cinema, na TV, na música ou na literatura, você vai encontrar um leque gigante de opções e obras maravilhosas. Dizer que a música brasileira não presta é desinformação, é extremismo, é falar bobagem. Pra todos os loucos do mundo, fica Clarice Falcão - há quem a ame, há quem a odeie. Faço parte da primeira leva e amo toda essa simplicidade da música dela. (http://www.youtube.com/watchv=sXJ9wTd4xoE)

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Leite Derramado – Chico Buarque

“Não choremos o leite derramado”

Cá estamos nós de novo. Estou escrevendo de novo – numa sexta-feira e para a Posso te indicar um livro?
Bem, para a minha volta decidi indicar um livro assinado pelo compositor Chico Buarque. No tempo ativo da página eu já havia assinado uma outra resenha sobre outro livro do Chico (que você confere aqui: http://migre.me/hRTVL) o Budapeste.
Lembro que naquela resenha atentei para a qualidade literária do Chico – é dizer – Autor e obra se distanciam MUITO naquele livro. Quando você começa a ler, pensa HÁ, é o Chico contando sobre uma ida dele e a Budapeste... E não é nada disso, o livro em primeira pessoa, cativa, e captura o leitor. O mesmo acontece em Leite Derramado (agora sim, o meu lenga lenga acabou e eu estou finalmente indicando o que vim indicar).
Leite Derramado, tem todas as qualidade que eu mencionei que Budapeste tem, com um adicional, é outro livro! E nos mostra a versatilidade enorme de Chico Buarque, é um livro bem diferente do Budapeste, e isso é simplesmente fantástico.


O Livro começa com um velhinho numa cama de hospital. Ele está conversando com a enfermeira, com a filha, e com quem mais quiser ouvir, no caso, ele está conversando mais precisamente com o leitor no final das contas, então, de inicio nós achamos o velhinho bem chato e falador, mais aos pouquinhos vamos nos afeiçoando a ele.
O velhinho é Eulálio D’Asumpção, que veio de uma família muito rica e esteve – há várias gerações – ligada a momentos importantes da história do Brasil, e é aqui que mora o grande diferencial do livro. Eulálio vai contando tudo que lhe aconteceu durante a vida, sem medo, pois como parece ele está num leito de hospital e está quase encontrando o final de sua vida. Então ele começa a lembrar o passado, e vai lembrando, sem se preocupar muito bem com a ordem cronológica dos acontecimentos. Nos conta sobre o amor por Matilde, a história do neto revolucionário que morreu durante a ditadura militar, tudo isso se costurando e conectando com o presente, onde ele nos conta sobre a filha que está atualmente cuidando dele, e como está irritado pelo tratamento que vem recebendo...
O interessante aqui é que Eulálio não está lamentando as vicissitudes de sua vida passada, ou as coisas ruins que aconteceram ao longo de sua vida, ele apenas está contando, é como um velho que está narrando sua vida, então é interessante pensar que o título do livro – como era de se esperar – faz referência sim ao famoso ditado: “Não adianta chorar pelo leite derramado”, mas vai para além disso, é simplesmente um homem comentando o leite derramado.


Eulálio é chato – sim eu disse chato – mas aos decorrer da narrativa o velhinho vai ganhando a nossa simpatia, aos pouquinhos nós vamos gostando mais e mais dele, e lá pelo meio do livro nós já esquecemos a chatice dele e nos afeiçoamos por ele, e vamos nos interessando cada vez aos causos que ele vem contando.
Outro diferencial do Budapeste, é que aqui cada capítulo é basicamente uma nova história, um novo acontecimento na vida de Eulálio, e sempre tendo como pano de fundo a história do Brasil, o que dá ao livro um sabor ainda mais especial (ainda mais para os apaixonados por história, como eu), Eulálio tece sua narrativa passando pelo Império, a primeira República, a ditadura militar e a atualidade, além de comentários sobre outros períodos e épocas do Brasil, e Chico Buarque consegue nos fazer estar por dentro disso tudo, sem didatismos, sem nada que pareça artificial.


Sim, eu já elogiei a qualidade literária de Chico, então, se tudo que eu falei não te convencer a parar tudo que você estiver fazendo e ir correndo ler Leite Derramado, falo que o livro é muito bem escrito, flui que é uma maravilha – dá pra ler no ônibus, no metrô, na rua, esperando o taxi, sentado na praça, andando no sol, se protegendo da chuva... E além de tudo nos guarda várias surpresas ao longo de sua narrativa. Não seria legal descobrir quais são elas?
A página está voltando, Espero que vocês estejam gostando então não deixem de dar o feedback. Eu volto a escrever no domingo, assinando uma crônica/coluna sobre bibliotecas, espero todos lá.

Indicação do Aion
[Ainda é cedo amor, mal começaste a conhecer a vida]

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Lançamentos - Fevereiro de 2014

A partir de agora, a Posso te indicar um livro? irá publicar, mensalmente, os próximos lançamentos de algumas das maiores (ou pelo menos aquelas que disponibilizam os lançamentos) editoras brasileiras, para que você possa ver o que há por vir com maior facilidade. Seguem abaixo alguns dos próximos lançamentos.

-Companhia das Letras

Engenheiros da vitória
Paul Kennedy

Esta valsa é minha (Nova edição) 
Zelda Fitzgerald

Bom dia, camaradas 
Ondjaki

Entre amigos 
Amós Oz

O corpo no escuro 
Paulo Nunes 

A cabeça do santo 
Socorro Acioli

Quando é dia de futebol 
Carlos Drummond de Andrade

O mundo é plano (edição econômica)
Thomas L. 

Goya à sombra das Luzes 
Tzvetan Todorov

Soldados, 
Harald Welzer

Semíramis, 
Ana Miranada 

Boca do inferno, 
Otto Lara Resende

- Penguin-Companhia

Orlando, 
Virginia Woolf

Caninos brancos 
Jack London 

Doze anos de escravidão
Solomon Northup

-L&PM Editores

Matem e Devorem!
Jean Teulé
Tradução de Ivone C. Benedetti

Zadig ou o Destino
Voltaire

Compêndio da Psicanálise
Sigmund Freud
Tradução de Renato Zwick

Dilbert 8 - Pausa para o café
Scott Adams
Tradução de Alexandre Boide

A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica
Walter Benjamin
Tradução de Gabriel Valladão Silva

Entre dois amores
Agatha Christie
Tradução de Alessandro Zir

A queda da América
Allen Ginsberg
Tradução de Paulo Henriques 

Mandela: o homem, a história e o mito
Elleke Boehmer
Tradução de Denise Bottmann

Retrato do artista quando jovem
James Joyce
Tradução de Guilherme da Silva Braga

1964 - Golpe ou contragolpe?
Hélio Silva

Cipreste Triste
Agatha Christie
Tradução de Petrucia Finkler

Sobre a vontade na natureza
Arthur Schopenhauer
Tradução de Gabriel Valladão Silva

- Cosacnaify

Formas de voltar para casa 
Alejandro Zambra

Uns contos 
Ettore Bottini

- Rocco

Os hungareses 
Suzana Montoro

As irmãs e o mar
Lucy Clarke

Caçadores de obras primas
Robert M. Edsel e Bret Witter

- Editora Seguinte 

Contos da Seleção
Kiera 

Contos e lendas dos grandes enigmas da História 
Gilles Massardier

- Editora Paralela 

A invenção das asas
Sue Monk 

Tabuleiro dos deuses (A era do X #1)
Richelle Mead

Manual antiautoajuda
Oliver Burkeman

Um desejo selvagem (Renegade Angels #2)
Sylvia Day

A estrela de Strindberg
Jan Wallentin

- Claro Enigma 

O planeta dos sábios
Charles Jacques Pépin

***
Estes são os próximos lançamentos de algumas editoras. Caso tenha alguma editora que você gostaria de indicar, entre em contato com nossa página.

Até logo.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Não Verás País Nenhum - Ignácio de Loyola Brandão

Mimimi só lê Loyola Brandão, mimimi só Loyola Brandão não aguento mais.
Calma, pequeno forasteiro. Estou aproveitando as férias pra reler (ou ler) a obra de Ignácio de Loyola Brandão – o meu escritor favorito. Por essa razão, as minhas últimas indicações de livros tem sido sobre ele, e como o glorioso Não Verás País Nenhum foi o último que reli, será ele o bola da vez.
E o pior de tudo é que o livro encaixa com o momento. Não porque se passa numa São Paulo fictícia e distópica, em que um regime autoritário tomou conta do país após uma situação de colapso (parece familiar?) – mas sim, porque o livro tem uma atmosfera sufocante, densa E AQUI TÁ FAZENDO UM CALOR DO CARALHO.
Sério. Diferentemente do contexto geral dos demais livros de Loyola, Não Verás é um livro denso, de capítulos um pouco mais compridos e com um único fio narrativo, que é a história de Souza, um paulistano na casa de seus cinquenta anos que vive num Brasil dos anos 90 ou 2000 (difícil precisar). Um dia, Souza repete toda a sua meticulosa rotina elaborada através dos anos quando, no ônibus a caminho do trabalho, um furo se abre em sua mão. Um furo redondo, sem cicatrizes, um furo através do qual passa a luz do sol e através do qual Souza pode enxergar o chão.
O furo na mão de Souza precipita a ruína de sua vida cuidadosamente construída. Ele passa a questionar os costumes que tinha, a vida que levava, é demitido do trabalho, acaba fazendo com que a mulher saia de casa. Em suma – e aqui tal qual em outras obras de Loyola – um aspecto insignificante da vida de um personagem precipita uma mudança abrupta no fio da história. Mas não é Souza que eu quero seguir nessa indicação.
Eu quero discutir os demais méritos da obra, que vão muito além do puro roteiro. O primeiro grande mérito é um que eu já mencionei no começo: sua atmosfera sufocante e densa. Ignácio discute na literatura em 1981 (lembre-se: últimos anos do regime militar) algo que só viria a ser discutido pelos fóruns mundiais de sustentabilidade nos anos 90 e 2000: as mudanças climáticas. Em Não Verás País Nenhum, o Brasil sofre um racionamento severo de água, a Floresta Amazônica se transformou num imenso deserto e o calor domina o dia e a noite paulistanas.
O calor no qual vive Souza é não só um dos principais tópicos daquela realidade como também é o elemento que torna o texto angustiante, denso, desesperador. Loyola utiliza o elemento climático como um recurso literário, que equipara o que acontece na história ao que o leitor tem acesso. Simplesmente, uma tacada genial. O texto é quente. Sufocante. As pás de um ventilador giram na história, mas tudo o que elas movimentam é mais ar quente.
Outro mérito da obra é a atemporalidade de seu discurso. Muito embora Ignácio escreva seu livro com elementos que datem a obra, como por exemplo, o uso do rádio, da televisão ou do telefone fixo e a proliferação de nomes pomposos que designam períodos daquela história brasileira ou características de pessoas, lugares e governos, a obra é absolutamente atemporal.
Primeiro porque ao invés de ser um futuro distópico, ela é um passado distópico. Em que sentido, Amanda? No sentido de que Loyola situa sua história ali na meiuca entre o fim da Ditadura e a uma abertura democrática, que logo foi encerrada pela chegada do chamado “Esquema” (soa TÃO familiar) ao poder. Essa liberdade que Loyola tomou em datar o seu livro foi o que acabou conferindo sua atemporalidade – a história é uma suposição de passado, mas seus elementos são perfeitamente adaptáveis a todos os nossos medos.
Por fim, o grande outro mérito da obra é a própria constituição do sistema de governo daquela sociedade: o Esquema. O Esquema é um emaranhado burocrático, militarizado, demagógico, que controla os parcos recursos naturais restantes e a população em todos os aspectos – desde a alimentação com as “comidas factícias” – isto é, todos os alimentos, que agora, são produzidos artificialmente – até o “Dia do consumo” e as zonas em que as pessoas podem andar sem sofrerem alguma restrição. Tal qual a própria ditadura militar brasileira, e porque não, nossas democracias subsequentes, o Esquema é a imagem política de um povo que nunca soube muito bem se era governado por um governo legítimo ou por um poder demagógico.
Como já disse, não quero falar da história. Até porque, pouco ou nada acontece – inclusive, se você procura um livro com ação, ESSA NÃO É a dica. Mas se você achar que o que eu disse faz o livro valer a pena, empreste Loyola da biblioteca, mas arrume um lugar confortável e se prepare pra renovar o empréstimo – porque essa é uma leitura densa, difícil de atravessar.
Por fim, quero deixar um trechinho provocante, que tem tudo a ver com esse calor dos infernos:

“E sobre tudo o sol. A impressão é que ele desce milímetro a milímetro. Não sei se é possível, não sei nada de ciência. Possível ou não, a gente olhava para cima e a cabeça estourava, os olhos lacrimejavam. Começou a ficar impossível sair de casa. As pessoas passaram a usar chapéus, e não adiantava. Veio o tempo de guarda-chuvas. Alguém descobriu que o sol não atravessava guarda-chuvas de seda preta. Só os de seda.
Outro pano não resistia. Dois, três dias de uso, o pano se esfarelava. Menos a seda preta. Ela resistia, protegia, formava uma sombra agradável. Não me pergunte por quê. Não me pergunte nada. Ninguém me respondeu, ninguém responde coisa alguma neste país. Havia outra situação estranha, curiosa. As regiões de quentura. Verdadeiros bolsões em que era impossível ficar, passar, atravessar.
Você ia andando, mergulhava naquele calor insuportável. Corria, tentando escapar, porque às vezes o bolsão era pequeno, a gente se livrava logo. No fundo, era um divertimento. Dramático, mas engraçado, porque subitamente alguém a sua frente punha-se a pererecar, gritar, voltava correndo. Voltavam todos, sabia-se que era um bolsão. Mais tarde, quando fizemos a grande travessia, vimos que os bolsões existiam por toda a parte. Eram imensos em certas regiões, estendiam-se por quilômetros. Até que chegou o Tempo Intolerável. Não dava mais para se expor ao sol. Você saía à rua, em alguns segundos tinha o rosto depilado, a pele descascava, a queimadura retorcia.”

Indicação da Amanda Barros
[look at them. they all care so much]


Ignácio de Loyola Brandão nasceu em 1936 na cidade de Araraquara, em São Paulo - ambos, a cidade e o estado, muito recorrentes em sua prosa. Hoje tem 77 anos, e continua a produzir.
Entre seus principais romances estão Não Verás País Nenhum e Zero, premiados e traduzidos para diversas línguas. Uma característica essencial da obra de Loyola são os capítulos curtos, non-sense, que lidam com o surreal na perspectiva de fatos corriqueiros. É importante notar a verve política sempre presente em sua obra, visto que a maioria de seus livros foram escritos durante o período da ditadura militar no Brasil.