quinta-feira, 25 de julho de 2013
a máquina de fazer espanhóis, de valter hugo mãe -- Alfaguara, 2010; Cosac Naify, 2011
"com a morte, também o amor devia acabar.”
Um senhor de oitenta e quatro anos sofre a perda do amor de sua vida. Nos quase cinquenta anos que fora casado, amou sua mulher a cada instante, e protegeu sua família o quanto pode. Barbeiro durante a ditadura salazariana, nunca se mostrou contrário ao regime, a fim de proteger aqueles que tanto prezava. Após a morte de laura, sua mulher, antonio jorge da silva é mandado para uma casa de repouso com outras pessoas de faixa etária semelhante.
Nesse novo lar, o senhor silva chega muito a contragosto. Não quer saber de socializar com os outros moradores do lugar. Não quer saber do filho que nem se dignou a comparecer no enterro da mãe. Não quer nem encontrar com a filha que o pôs lá. As coisas mudam de figura quando ele conhece o senhor esteves. E lhe juram que foi ele o rapaz que inspirou Fernando Pessoa a construir o personagem em seu famoso poema Tabacaria. Desconfiado a princípio, senhor silva demora a acreditar que tal figura emblemática não apenas existiu, como está ali, morando consigo, no mesmo lugar.
Ao passar do tempo vai fazendo amizades. Sempre refletindo sobre sua vida, como a velhice não lhe trouxe assim tanta sabedoria, como o remorso é um sentimento que sempre vai existir em qualquer vida que já tenha sido necessário fazer escolhas, como ao envelhecer não se quer mais aprender, e sim começar a esquecer das coisas. Cada personagem é único dentro do lar feliz idade. Uma pequena nação se cria ali dentro. Todos com suas mais tremendas peculiaridades. Porém, como era de se esperar, muitos deles não terminam o livro conosco. Ficam por entre as páginas, nos deixando suas memórias como nos foram ditas. Suas desilusões, suas casmurrices. Mas sempre com algo a nos deixar encantados, render boas risadas. Porque ficar velho não parece dizer manter-se constantemente com a ideia de morte iminente, mas sim uma fase da vida como outra, com suas próprias dificuldades e preocupações e momentos agradáveis.
A parte política do livro também é muito forte. O título vem da ideia de como Portugal seria um país que cria seus cidadãos juntamente com vontade de deixá-lo. E está sempre a pontuar o fascismo que até os bons homens cometem diariamente.
O livro não usa letras maiúsculas a não ser por dois capítulos dos vinte e dois. O mesmo vale para travessões, aspas, pontos de exclamação e interrogação e até mesmo a justificação das linhas. A princípio a estranheza causa certa dificuldade para entender. Principalmente nas primeiras duas ou três páginas. Depois disso o mecanismo começa a ser compreendido normalmente e a gente nem sente falta dessas marcações que parecem tão impossíveis de viver sem.
O livro está repleto de sentimento. Não só amor, não só remorso. Mas amizade. Coisa que senhor silva teve de esperar muito para conhecer. Ele nos narra a paixão por seus amigos e demais colegas no lar quase com a mesma intensidade que fala da falecida esposa. E mesmo que pássaros negros venham aparecer na sua janela quase toda noite, ele tem onde recorrer. O atribuir de significado que damos às coisas e às pessoas torna tudo diferente. E nunca se está velho demais pra aprender isso.
Claro que saudade é outra coisa que não poderia ficar de fora. A despedida forçada nos traz esse desconforto generalizado, essa sensação de impotência.
Queria fazer uma resenha séria sobre esse livro. Poder demonstrar ao máximo o quanto ele é bom. Despertar o interesse em cada pessoa que lesse esse meu texto de procurar algo mais sobre ele e lê-lo o quanto antes. É assim que a gente se sente depois de se deparar com um trabalho de gênio. E o pior de tudo, é que não dá pra pensar direito em como pontuar tudo isso. Acho que direcionei sentimentos demais para esse livro pra poder analisá-lo friamente. Quem sabe ele tenha ou me dado em demasia ou me tirado por completo a metafísica.
Chegando ao final do livro, fiquei temendo o último ponto -- como se fosse, também, fosse terminar minha própria vida. Talvez estivesse enlouquecendo, mas poderia jurar que ouvia o senhor medeiros, aquele senhor que, diziam, já se encontrava impossibilitado de falar, a me chamar de filho da puta e me desejando a morte. Mas é provável que fosse apenas uma voz externa, de outro mundo, a me dizer que era hora de deixar o feliz idade e dar lugar a outro ocupante. Como a maioria das despedidas, foi difícil. E quando o momento veio, fechei o livro com a certeza que voltaria a admirar aquelas lápides, nem que fosse apenas para dançar em cima das flores.
Um trecho, por fim:
“preparem-se sofredores do mundo, o tempo não é linear. o tempo vicia-se em ciclos que obedecem a lógicas distintas e que se vão sucedendo uns aos outros repondo o sofredor, e qualquer outro indivíduo, novamente num certo ponto de partida. é fácil de entender. [...] perdemos alguém, e temos de superar o primeiro inverno a sós, e a primeira primavera e depois o primeiro verão, e o primeiro outono. [...] e também é preciso superar a primeira saída de carro a sós. o primeiro telefonema que não pode ser feito para aquela pessoa. a primeira viagem que fazemos sem a sua companhia. os lençóis que mudamos pela primeira vez. as janelas que abrimos. a sopa que preparamos para comermos sem mais ninguém. o telejornal que já não comentamos. um livro que se lê em absoluto silêncio. o tempo guarda cápsulas indestrutíveis porque, por mais dias que se sucedam, sempre chegamos a um ponto onde voltamos atrás, a um início qualquer, para fazer pela primeira vez alguma coisa que nos vai dilacerar impiedosamente porque nessa cápsula se injeta também a nitidez do quanto amávamos quem perdemos, a nitidez do seu rosto, que por vezes se perde mas ressurge sempre nessas alturas, até o timbre da sua voz, chamando o nosso nome ou, mais cruel ainda, dizendo que nos ama com um riso incrível pelo qual nos havíamos justificado em mil ocasiões no mundo.”
Indicação do Guilherme
[parangaricutirimírruaro]
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