“Encontrei um bicho horrível debaixo do fogão. Poderia ser uma aranha mas mais se assemelhava a um verdugo. Eu estava ajoelhado e o esmaguei com a base do lampião.”
Um poeta marginal de dezenove anos que perambula pelas ruas de Porto Alegre, sem dinheiro no bolso nem perspectivas de vida que não a exclusão social. Abandonado pelo pai, mora num edifício abandonado com sua mãe, assim como mais umas tantas famílias.
Após sua mãe o deixar sozinho para ir morar em outra cidade, acaba condenado por um crime e vai para uma instituição correcional. Fica lá por algum tempo (não sabe quanto) e chega a hora de sair. Quando vai embora, entretanto, é adotado por uma casal de alemães que vive um pouco mais no interior do estado gaúcho e passa a viver sob os cuidados dessa nova família, que não lhe exige nada em troca.
Escrito em capítulo único e em primeira pessoa, Noll dá vida à um personagem que está confuso com sua própria vida e que não percebe a velocidade com a qual ela passa. De repente se dá conta e alguns anos ficaram pra trás, causando uma sensação de estranheza no leitor, como que fazendo uma não-linearidade disfarçada. A linguagem usada por ele também é típica dos jovens marginais, ao mesmo tempo seca e lírica, com frases longas que seguem a linha de raciocínio imediatista do jovem protagonista anônimo.
Muitas vezes ele não entende até onde vai sua liberdade dentro de sua nova casa. Ao mesmo tempo que se sente acolhido, se sente um intruso naquele lugar. Tenta se aproximar, mas sem chegar perto demais. E anota tudo mentalmente, pra talvez depois escrever um poema. Descreve os sentimentos alheios com muito mais precisão que os seus, percebe a raiva causada pela morte, seguida pelo desamparo, ficando sem reação, a não ser seguir seus instintos, meio certeiro, meio desconfiado, como um bicho cabisbaixo que sabe a hora de vir e a hora de ir embora, dizendo muito mais com os silêncios do que com grunhidos.
Como sempre, um trecho:
“O que ele fazia ali, na cozinha, com os braços sobre a mesa, a luminária baixa aclarando principalmente as mãos de veias dilatadas, o que ele fazia ali àquelas horas da noite quando cheguei no casarão, o que fazia ele, Kurt, como eu nunca o tinha visto, parecia que tinha como que encolhido, sim, ele antes tão imponente agora um homem todo acanhado no tamanho, ali sentado na cozinha debaixo da luminária baixa, ah, havia um copo, mais adiante a garrafa de uma cachaça chamada Isaura, ao lado uma de coca-cola, vazia, viva o samba-em-berlim rosnei, peguei o guardanapo de papel com o poema que eu guardava no bolso desde o embarque no Galeão, ainda não me ocorrera um nome para ele, me perguntei se “O quieto animal da esquina” não seria o título que aquele poema estava pedindo, Kurt veio com olhos para mim, levantou o copo como se me saudasse, ah, ele estava bêbado, não sabia o quanto, apenas o silêncio daquele copo na mão, eu na porta da cozinha pensando ser a primeira vez que via Kurt bêbado, fiquei pensando na porta da cozinha se eu queria realmente entrar, continuar a farsa que agora se desfraldava assim, Kurt segurando trêmulo o copo no alto, me saudando, eu não o suportaria bêbado, Kurt não, a noite estava por um fio, eu pressentia, aquilo que eu observava era um convite,(...)”
Indicação do Guilherme
[parangaricutirimírruaro]
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