“Porque não adianta só a primeira vista.”
Sim, o nome desse livro é o mesmo daquele do Locke. E por
mais que eu não seja um cara que manje dos empiristas (ou de filosofia, mesmo), não consigo acreditar
que isso seja só mera coincidência. Quer dizer, que as duas obras não dialoguem
em diversos níveis além daquilo que consigo perceber com meu conhecimento
restrito do assunto. Enfim...
O livro consiste de vinte e quatro contos, sendo que a
maioria tem uns dois ou três contos que são diretamente interligados entre si.
Como? Tipo assim: um conto chama Bienal
(s. Med. pat. req.) 2 e mais pra
frente aparece um que se chama Bienal (s.
Med. pat. req.) 1. E elas tão assim mesmo, nessa ordem. Ou uns que chamam Investigações filosóficas (1), (2) e (3). Tem ainda mais outros exemplos, mas o ponto é: há uma grande
unidade nos contos desse livro. Eles não são um punhado de escritos que o autor
criou ao longo dos anos e resolveu compilar. Nada está ali – naquele lugar,
naquela ordem – por acaso.
Mas falando dos contos: uma das coisas Galindo consegue
fazer muito bem (e faz por boa parte do livro) é dar voz direta a alguém.
Muitos contos consistem em apenas uma personagem falando. Mesmo que ele não
esteja falando sozinho, geralmente é só sua voz que aparece. Diversos tipos nos
encontram nesse meio. Pessoas com éticas duvidosas, sinceras demais, suicidas, adúlteros,
gente com dúvida da própria índole. Nisso o título escolhido vem bem a calhar.
Os que chamam Bienal
que eu citei são bem interessantes: tratam-se de descrições de esculturas. Como
elas devem aparecer ao público, onde devem ficar, suas proporções etc. Sempre
num aspecto apenas visual. Sem entregar pro leitor qual seria o tal do
significado da obra. Alguns outros são mais “convencionais”. Como um que chama O grande escritor, esse o próprio autor –
e meu professor – me disse ser realmente, como suspeitei *mostraorgulho*, sobre
David Foster Wallace. Aliás, a influência de DFW nesse livro é bem clara. Não é
pra menos. Galindo traduziu há uns meses o Infinite Jest e é um grande leitor do
cara. Mas não é uma cópia. Ele soube, sim, dar sua cara pro livro.
Alguns contos meio que me doem. Tocam em pontos sensíveis
da natureza humana. Essa coisa de projetar uma imagem sua sobre o outro
esperando uma reação específica do interlocutor é uma delas. Toda vez que penso
nisso dá um ruim (esse sou eu, querendo me passar um cara sensível e letrado
pra alguns leitores de internet – tipo isso). Mas entender o ser humano deve
doer muito mesmo. Não que Caetano Galindo entenda completamente, esse livro é
um ensaio, né, não?, mas mesmo assim, autoconsciência é uma coisa meio cabreira.
O livro ganhou o segundo Prêmio Paraná de Literatura na
categoria conto. Imagino que os jurados tenham lido esse livro mais vezes e
mais atentamente do que eu, mas, sinceramente, acho que fizeram uma ótima
escolha. É a estreia de Galindo na ficção, sem deixar de lado a belíssima
carreira de tradutor e professor. O livro pode ser meio difícil de achar fora
das bibliotecas públicas, a princípio, por causa da tiragem baixa (e por ser
meio que esse o intuito inicial do prêmio), mas não duvido que tenha uma
reedição. Merece, pelo menos.
Sem mais, na íntegra, o conto de abertura do livro:
“ela
Não, aí a gente lá na loja e eu, Bem, e esse aqui?
Porque já estava difícil, e eu sozinha sem nenhuma ajuda.
Desinteressado mesmo. Total.
E eu cansada de carregar o sujeito nas costas, sabe?
Aí eu, Bem, e esse aqui?
E ele, Meio demais, né...?
Cê acredita?
“Meiodemais”...!
E eu, como “meiodemais”? É exatamente o mesmo que a Vanda
tem lá na casa dela e que você disse, que ele tinha dito mesmo, que quando você
esteve lá na casa da Vanda, lá na Villa Paris, a Vanda minha colega de escola,
um doce, fazia anos que eu não via, um amor. E ele tinha dito que era bonito. “Legal”.
Lá na casa dela. Legal lá na casa dela, decerto.
E eu, Você acha a Vanda a maior perua, então...? Porque
ela tem exatamente esse aí lá na casa dela...
E ele, Não sei. Sei lá. De repente aqui no mostruário eu
não consegui ter noção direito.
E eu, Mas diz de uma vez, criatura, que eu já estou
cansada, gostou ou não gostou. E eu até dei uma olhadinha pra moça, pra
vendedora, que já tinha sacado tudo. Mulher, né? Deve ter um igualzinho em
casa.
E ele me faz uma puta cara de quem ta analisando e,
É...no fim aqui que ia ficar bacana, Mô.
Aí eu não guentei, né.
Ai, me poupa. Vai crescer. Seja homem.
Um pouco de autenticidade também, né. Fala sério...”
Indicação do Guilherme
[parangaricutirimírruaro]